sexta-feira, dezembro 31, 2010

Feliz ano novo de 2009

O momento mais natalício de 2010 li-o num artigo do Público de 22 de Dezembro intitulado “Filha, a mãe está desempregada”. A matéria versava sobre como dizer aos filhos, de forma suave, que se foi parar ao olho da rua. Infelizmente tema de interesse, potencial ou real, para muitos portugueses.

Uma mãe, recém-despedida, contou sobre a reacção da sua filha pequena: “Ela primeiro ficou impávida, a olhar para mim. Mas quando me viu chorar começou logo: ‘Ó mãe, não chores, não faz mal. Se precisares de dinheiro, partimos o meu mealheiro. Vais ver que arranjas um emprego melhor.’”

Esta história pode ter mesmo ocorrido ou resultar apenas da imaginação da jornalista, mas possui aquela realidade intrínseca que qualquer um de nós, que tem ou teve crianças, aceita sem problemas que possa ser verdade. A frase desta criança é uma súmulazinha do verdadeiro espírito natalício, aquele que existia antes de haver filas para embrulhos nos corredores dos centros comerciais e filmes sobre o nazareno na têvê, com apóstolos todos louros e de olhos azuis. A frase desta criança contem amor, partilha, despojamento, alívio e esperança. E representa, tal como no original, um choque entre duas éticas. Antes, a de Cristo contra a dos Herodes, dos Pilatos, dos Caifás. Agora, a desta menina contra a prevalecente no mundo em que nasceu. À dela poderemos chamar, com razoável aproximação, “o Bem”; à última, também com pequena margem de erro, “o Mal”.

Porque hoje – e provavelmente dantes também – tendemos a esquecer-nos destes conceitos simples, o Bem e o Mal. O Natal celebra o nascimento de um homem cuja existência culmina, pela ressurreição, numa vitória exemplar do Bem sobre o Mal. Com o risco de parecer simplista, ou acreditamos que o universo não passa de um local onde partículas interagem sujeitas a regras descritíveis por fórmulas matemáticas ou, se quisermos algo mais, temos que introduzir conceitos de Bem e de Mal que dêem algum sentido às nossas existências. Eu não sou crente e até sei que sou um agregado de partículas aqui a teclar no computador, mas pertenço à segunda categoria.

O Bem e o Mal são noções variáveis, escorregadias, volúveis. Há muitos tons de cinzento para um só de branco e outro de preto. Mas tal não nos deve amedrontar: o sofrimento de uma criança, por exemplo, é uma manifestação do Mal, uma genuína dádiva de solidariedade, uma prova do Bem.

As sociedades justificam-se se servirem para maximizar o Bem e minorar o Mal. Ao longo da História verifica-se uma certa tendência favorável, pelo menos nalgumas geografias: as crianças morrem menos, os velhos vivem mais e melhor, há menos guerras, menos pestes, menos fome na Europa dos nossos dias do que há cem, quinhentos, mil anos atrás. Claro que houve progressos e retrocessos, fracassos e sucessos, incoerências várias. Mas avançou-se.

Para avançar, há que olhar em frente e ter fé que melhor é possível, senão mesmo obrigatório. Foi preciso acreditar que havia terra para lá do mar, que a abóbada não cairia, que as asas sustentariam o voo, que inocular vírus de varíola bovina numa criança a podia salvar da varíola. Do mesmo modo, foi preciso acreditar que era possível acabar com a escravatura, com o analfabetismo, com os direitos divinos. Nalguns sítios e nalguma extensão, conseguiu-se.

Entramos no novo ano com o ânimo de náufragos numa tormenta. Tudo parece inevitável: a crise, a degenerescência, a vinda do FMI, a recessão, a miséria e tudo o mais. O sentimento é de impotência diante das “leis” do mercado, dos ditames dos recém-licenciados das agências de “rating”, da inevitabilidade da falência de uma sociedade mais solidária.

A crise que vivemos é uma crise de crença. Não posso aceitar como boa e incontornável uma sociedade em que a ganância seja a mola motora do seu funcionamento, assim sem mais. Adam Smith que me desculpe, mas sabe a pouco e parece obra do demo. Até porque a ganância é a mais vil das causas do Mal: pode ter alguma desculpa o desesperado que rouba para comer, o louco que mata por desvario, mas a ganância, a fria e cerebral ganância… Não é virtude sobre a qual se construa uma sociedade.

Não sei o quê, mas algo terá que ser feito, no futuro. Jenner também não sabia, quando cometeu a loucura improvável de inventar a vacina, mas fez alguma coisa. Terá que haver rasgo, decisão, força, conjunto. Aceitar que a criança do início deste texto tem que sofrer porque é o que convém, situação que é a “conventional wisdom” dos nossos dias, representa um retrocesso civilizacional. E se estamos a andar para trás a única coisa que vos posso desejar é um feliz ano novo de 2009.

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Exposição fotográfica (XXVI)

Kerala, Índia, Novembro 2010






sábado, dezembro 18, 2010

Wikinóias

“Benjamin felt a nose nuzzling at his shoulder. He looked round. It was Clover. Her old eyes looked dimmer than ever. Without saying anything, she tugged gently at his mane and led him round to the end of the big barn, where the Seven Commandments were written. For a minute or two they stood gazing at the tatted wall with its white lettering.

"My sight is failing," she said finally. "Even when I was young I could not have read what was written there. But it appears to me that that wall looks different. Are the Seven Commandments the same as they used to be, Benjamin?"

For once Benjamin consented to break his rule, and he read out to her what was written on the wall. There was nothing there now except a single Commandment. It ran:

ALL ANIMALS ARE EQUAL
BUT SOME ANIMALS ARE MORE EQUAL THAN OTHERS


After that it did not seem strange when next day the pigs who were supervising the work of the farm all carried whips in their trotters.”


George Orwell, in “Animal farm”


Tenho lido excitações várias a propósito do caso de Julian Assange e das por si desviadas duzentas e tal mil mensagens do Departamento de Estado norte-americano que, a conta-gotas, nos vão dizendo do mundo em que vivemos.


Surpreendentemente, e falando apenas de Portugal, algumas das argumentações mais pindéricas vêm de jornalistas de estatuto, como Miguel Sousa Tavares, Teresa de Sousa ou José Manuel Fernandes, que às vezes parecem ter esquecido qual a carteira profissional que levam na carteira.


A ver:


Argumento 1: o gajo só faz essas maldades aos Estados Unidos e não à Rússia ou à China ou ao Irão; logo está feito com essas potências malévolas.


Não sei se está feito ou não e também é totalmente irrelevante. Acho muito mais provável ele não ter conseguido sacar nada aos russos ou aos chineses, que pelos vistos são mais profissionais nessas coisas do secretismo. Mas pergunto: uma fonte de informação (que é o que ele na prática é) ou um jornal (que são o que são o Le Monde, o El País, o The Guardian, o Der Spiegel e o New York Times) têm que se preocupar com esse equilíbrio do terror na produção de notícias? O Bob Woodward e o Carl Bernstein, quando mandaram o Nixon de carrinho num contexto de Guerra Fria, deveriam ter tido em conta que não estavam a dar o mesmo tratamento ao Brejnev e ter-se patrioticamente recusado a pôr o Watergate nas rotativas?


Argumento 2: o gajo com essas revelações está a pôr em perigo a luta contra o terrorismo.


Não vejo que esteja e assim sendo é totalmente irrelevante. A informação foi entregue a cinco jornais dos mais prestigiados do mundo que vão tratando editorialmente a informação em bruto. Neste aspecto ele foi ou esperto ou prudente. E será ou não importante sabermos (e não apenas suspeitarmos ou conjecturarmos) que uma petrolífera corrompe governos, que uma farmacêutica persegue magistrados que investigam mortes causadas por testes de medicamentos seus ou que o nosso Zé deu o seu aval à utilização do nosso território para transferências de presos para Guantanamo e mentiu sobre esse facto aos eleitos em representação do povo (que, já agora, somos nós)? A mim parece-me de algum interesse público. Que diríamos de um jornalista que mantivesse esta informação para si? Certamente que tinha um jota pequenino.


Argumento 3: o gajo está a usar informação criminosamente roubada.


Quase de certeza mas também é totalmente irrelevante. E é por ser totalmente irrelevante que o direito ao sigilo sobre as fontes é uma pedra basilar da actividade jornalística nas democracias. Voltando ao Watergate, quase de certeza que o “Garganta Funda”, quando passou a informação cá para fora, não se chibou em total respeito pela legalidade. Mais uma vez, deveriam por isso Woodward e Bernstein ter ficado calados?


Argumento 4: o gajo andou a dormir com umas suecas.


Que lhe tenha feito bom proveito mas também é totalmente irrelevante. Aqui, os americanos tiveram azar. Logo agora que eles precisavam que isto não acontecesse e que tudo mantivesse um ar respeitável, aparecem estas tipas e fica logo o pessoal todo (que é maldoso) com a pulga atrás da orelha a dizer que estas duas não surgiram por acaso. E para mais com umas acusações que só traduzido do sueco: “sexo de surpresa” ou “sexo com ela meio a dormir”. Maravilha! Até eu já às vezes ando meio a dormir. Ainda vou parar aos tribunais.


Argumento 5: o gajo tem aquela cara.


Sim! Já li este argumento em letra de imprensa! Sem palavras. Totalmente irrelevante, claro.



Vamo-nos cingir ao que interessa. Cinco dos maiores e melhores jornais mundiais estão a seleccionar e publicar informação diplomática norte-americana, confidencial, sobre os mais variados assuntos e países. Obtiveram licitamente esse material de um fulano que o recebeu de terceiros, terceiros esses que ilicitamente promoveram a fuga. A veracidade dos conteúdos não foi desmentida. No global, as duzentas e cinquenta mil mensagens permitem-nos perceber o paternalismo suficiente com que o Império nos trata. Só os ingénuos se surpreenderão. Algumas dessas mensagens indiciam ou provam factos realmente graves. A situação é muito embaraçosa para a diplomacia dos Estados Unidos, que já se viu obrigada a começar a rodar diplomatas.


A única diferença face a outras vulgares fugas de informação está no volume, só possível nestes tempos de “terabytes” fáceis, no facto de a fonte dos jornais – Julian Assange – se manifestar publicamente em vez de ficar quietinha no anonimato e de ter um “site”, o Wikileaks, que tem como propósito divulgar publicamente informação que empresas, estados ou outros gostariam de manter confidencial. No Wikileaks podemos encontrar em bruto as tais duzentas e cinquenta mil mensagens.


Não muito surpreendentemente, os Estados Unidos querem a cabeça do homem e pressionaram empresas fornecedoras de serviços ao “site” (Amazon, Paypal, etc.) para rescindir com ele, tentando vaporizá-lo do ciberespaço. Também não muito surpreendentemente, a manobra não lhes saiu bem. A “internet” é mar para enguias e facilmente o “site” foge e se replica, existindo hoje na rede mais de dois mil espelhos do mesmo.


Mais surpreendentemente, muita imprensa (nomeadamente a portuguesa, mas não só), em vez de se atirar de cabeça a esmiuçar a informação disponibilizada e as suas consequências, prefere conjecturar sobre as “reais” intenções de Assange ou sobre a sua “verdadeira” personalidade ou dissertar sobre o carácter “voyeur” ou anarquista do “site” Wikileaks. Relatórios minoritários. O que admira e preocupa é ninguém se admirar ou preocupar. Deste estado espantoso só ouvi o Lula da Silva comentar, intrigado, no seu jeito pernambucano e com aquela sagacidade de quem perdeu um dedo no torno: “Oi! Ninguém vem defender a liberdade de opinião, não?”


Como gosto de saber sabido, visitei o “site”, julgando – à vista da sanha – que iria encontrar textos de Kropotkine ou arengas de Ossama Bin Laden. As únicas citações de políticos que lá encontrei pertenciam a Thomas Jefferson e James Madison, senhores cuja carantonha circula nas notas de dólar. Encontrei um “site” normalíssimo de uma ONG de recorte anglo-saxónico com um propósito declarado: revelar, da forma mais segura possível para as fontes, segredos que achem que o público deve saber. Apresenta uma política de confirmação de informação com a qual a nossa imprensa poderia aprender qualquer coisa. O “site” refere ter ganho prémios, da Amnistia Internacional e outro patrocinado pelo The Economist, pela sua actividade em prol da liberdade de expressão. Fui verificar e é verdade.


A Democracia tem aquela virtude binária que caracteriza a virgindade: ou sim ou não. Claro que faz parte do trabalho dos governos manterem informação confidencial em matérias cuja divulgação possa lesar gravemente o interesse colectivo dos países que governam ou a segurança dos seus habitantes. Convinha já agora que essa componente fosse controlada, por exemplo por comissões parlamentares. Por seu lado, a imprensa pode e deve, quando tem acesso a informação desta, analisá-la e divulgá-la se a considerar do interesse público. E é particularmente do interesse público quando o segredo serve para defender interesses privados. A este escrutínio podemos chamar sem medo “checks and balances”. E os governos democráticos ou aceitam estas regras do jogo ou passam a ser meramente governos, “tout court”.


O Wikileaks não é um fenómeno vulgar. Surge como mais uma das novidades da “Internet” que muda o modo como vivemos o mundo. Traz consigo um comboio de novas interrogações sobre novas formas quer da liberdade, quer da sua irmã gémea, a responsabilidade. Admito que poderá ter aspectos discutíveis e criticáveis – valerá a pena ler sobre isto o que escreveu Pedro Lomba no Público. Mas matar o Wikileaks a golpes de poder político e económico parece-me muito perigoso. E aceitar placidamente ainda mais. O que tenho visto nos dias recentes cheira nauseabundamente a perseguição e não me deixa descansado.


Por isso recuperei para nossa leitura o longo parágrafo em epígrafe tirado de “O triunfo dos porcos”, onde aparece a célebre “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. A frase faz todo o seu sentido se lermos o que está imediatamente antes e o que vem logo a seguir. Os animais acabaram de ver o porco Squealer andar de pé, de chicote na mão, contradizendo o primeiro dos sete mandamentos da revolução animal que foram pintados na parede do celeiro: “tudo o que anda com dois pés é inimigo”. Baralhada, a égua Clover pede ao burro Benjamim, um dos poucos animais que sabe ler, que lhe diga o que está escrito na parede. Benjamim, que, à medida que os porcos iam alterando em seu proveito os sete mandamentos, várias vezes tinha mentido – por medo, piedade e cinismo – sobre o que lia, diz finalmente a verdade. Mas tarde de mais: no dia seguinte, todos os porcos usavam um chicote.


Se aqueles que podem falar se calarem, ou forem calados, mais facilmente os suínos se põem de chicote. Quanto aos Miguéis, Teresas e José Manuéis deste mundo, Orwell, preclaro, não os esqueceu: a quinta tinha uns carneiros que baliam sempre o que dava jeito aos porcos que fosse balido.


Curiosamente, o meu exemplar de “O triunfo dos porcos” foi-me oferecido nos meus doze anos, nos idos do PREC, por um casal amigo da minha mãe que era de direita e militante cristão, numa altura em que essa posição não era cómoda. Eles não tiveram dúvidas que uma fábula sobre a aspiração dos oprimidos à liberdade e sobre o modo como o poder pode corromper essa aspiração, escrita por um socialista, seria excelente leitura para um miúdo. Perdi-lhes o rasto e aproveito para lhes agradecer, se por improbabilidade lerem este texto. Não esqueci o exemplo do seu gesto. De facto, há pessoas para quem a Democracia é como o ar que se respira e outras para quem é como a roupa que se veste. Ou que se troca.

terça-feira, dezembro 14, 2010

Passagem pela Índia

Novembro de 2010 foi o primeiro mês sem “post” desde o início do Mataspeak. Trabalho, trabalho, muito trabalho, o “stress” da crise, preocupações várias mataram no ovo os poucos fogachos de inspiração e vontade que possam ter crepitado nos meus neurónios. Pelo meio uma viagem a Cochim, capital do estado de Kerala, “terra natal de Deus” como eles lá se orgulham.

Em Cochim morreu o homem da volta do mar largo, o alentejano Vasco da Gama, e aí ficaram seus ossos até o seu irmão Paulo os recuperar e levar para casa. Em Cochim aterrei eu após escalas em Veneza e Dubai, depois de um dia inteiro para voar meio mundo: ainda assim pouco comparado com os seis meses de caravela do meu ilustre antecessor naquelas paragens.

Na ida larguei de Dubai à noite: a filigrana que luzia cá em baixo não diferia de qualquer outra cidade do mundo. Por sorte, aterrei no regresso com a alvorada. Olhando pela janela à medida que o Airbus descia mansinho vi sucessivamente a vastidão ocre do deserto bordando o Índico, apenas riscada pelas linhas negras de estradas imperturbadas, rectilíneas durante quilómetros e quilómetros. Depois bairros e mais bairros de vivendas de açoteia, pardacentas do pó que sopra do interior da península arábica. À medida que o avião rodava para aproximar à pista, desenharam-se no horizonte já cálido da manhã os arranha-céus multiformes da Dubai dos negócios, milagres da tecnologia e da finança improvavelmente nascidos num antigo acampamento nómada. Apesar de àquela hora as ruas já regurgitarem de SUVs brancos e táxis, ao longe Dubai parece uma cidade fantasma de tão imóvel, uma metrópole de outro planeta cuja população antes gloriosa tivesse desaparecido misteriosamente.

Mas não é. O aeroporto de Dubai fervilha. Na enorme nave, de um luxo ostentatório que grita a nova riqueza em berros de cromado e néon, cruzam-se árabes de “dish-dash-ha” imaculadamente branco, a cabeça coberta pelo “shumagg” de reticulado vermelho, anglo-saxónicas de um rosado ridículo em trânsito para a Ásia, grupos nipónicos em sentido contrário, indianos de regresso a casa, apinhados de bagagem, filipinos de volta ao trabalho nos restaurantes e nas obras dos Emirados. Passeiam com ar interessado nas lojas da Rolex e da Boss, abocanham “Big Macs”, fazem filas enormes junto às portas de embarque onde altifalantes num inglês de sotaque oriental chamam para Roma, Bombaim, Cairo ou Dacca, num burburinho miscelâneo que reverbera pelas paredes de cristal. O Dubai é digno sucessor dos entrepostos comerciais de outras eras, onde se cruzavam rotas da seda e das especiarias e as muitas e desvairadas gentes que Fernão Lopes citava na Lisboa quatrocentista.

Já o aeroporto de Cochim é modesto. Em vez das formas arrojadas dos mais caros estiradores de arquitectura, dos vidros e dos perfis metálicos, linhas quadradas, em alvenaria pintada de rosa, com telhados de quatro águas em telha de barro vermelho. Nos serviços fronteiriços, o meu primeiro indiano é circunspecto, pequeno, de bigode fino. Olha para os meus documentos com desconfiança, passa-os num leitor com desconfiança e escrutina o ecrã do computador com desconfiança. Pergunto-me se no sistema informático ainda estarão crimes ou dívidas dos meus antepassados por estas bandas. Não seria de admirar. Os historiadores indianos têm dos portugueses a imagem que os polacos terão dos russos, ou os gregos dos otomanos. Facínoras sacanas, provavelmente merecida. Pergunta-me a que venho e parece reconfortá-lo o facto de eu vir assistir a uma conferência e não estabelecer uma feitoria. Desata num festival de enérgicas carimbadelas no passaporte, nos formulários, talvez mesmo em cima da mesa. O som surdo que sai das várias cabines soma-se num exótico festival de percussão. Devidamente carimbado, saio para o bafo da manhã de Kerala.

Um carro espera-me para me conduzir ao hotel. Como é habitual a leste do Suez, o ar condicionado está calibrado para os dez graus centígrados. O médico avisara-me sobre a malária, mas o verdadeiro risco é a pneumonia. Vou tiritando e observando a paisagem. Do céu, pudera ver uma vegetação generosa e densa de palmeiral, raiada de rios curvando e recurvando. No chão, vou passando as palmeiras e cruzando pontes. Guia-se teoricamente à esquerda, uma das heranças coloniais que os ingleses deixaram, juntamente com o críquete e a “common law”, para além de uns milhões de mortos, claro. Mas o meu condutor divide-se equitativamente entre as duas faixas, evitando “in extremis” a sucessão de obstáculos buzinantes que vão aparecendo na longa recta. Em miúdo, jogava no Apolo 70 numa máquina cujo objectivo era exactamente este: evitar o acidente tanto tempo quanto possível. Provavelmente para cortar o ângulo de visão e evitar que eu me assuste em demasia, o carro ostenta suspenso do retrovisor um penduricalho gigantesco, o maior que eu já vi, e que poderia servir de “abat-jour” numa sala de jantar senhorial.

Entramos em Cochim. O trânsito adensa, sem se tornar caótico. Há carros, motoretas-táxi, motas com o pai de capacete e a família de cabeça descoberta, camiões de carga batidos, cisternas para águas limpas e águas sujas. Um enxame de cores etiópicas, ziguezagueando de amarelo e encarnado e letras hindus verdes, buzinando, ultrapassando-se, evitando peões ligeiros que safam a pele no último segundo. Nem todos: os autocarros, uns caixotões Tata batidos, sem vidros nas janelas e pintados de um vermelhão vivo, são conhecidos por “red killers” pela mossa que fazem nas estatísticas de mortalidade. Verifico que enquanto o motor aguentar, não há conceito de carga máxima. Na faixa ao lado crepita uma lambreta puxando um atrelado de um metro quadrado no qual se empoleiram duas vacas que tremelicam assustadas, as pernas magricelas bamboleando.

Cochim não tem passeios. Entre o alcatrão e as casas ou os muros há um espaço de lama, poça, lixo e erva rala que ondula por quilómetros e que une democraticamente vivendas finórias, barracos de venda de fruta, modernos stands de automóveis, prédios baixos com ar cansado. Quando a correnteza de construção hesita, dando espaço a um baldio, logo se acumulam montes de lixo em sacos brancos, que os corvos vêm depenicar.

Apesar da sujidade, Cochim revela-se bonita na sua anárquica girândola de cores. Aparentemente, os indianos adoram cores fortes. Óptimo, eu também. Os cartazes nos comércios, os “outdoors”, desproporcionados, as casas, os veículos, compõem-se num festival de tons. Não há camionista que não combine o amarelo vivo, o vermelhão, o azul forte. As igrejas (há muitas em Kerala) parecem casas de bonecas azuis e laranjas com uma cruz num pináculo. Os hotéis populares, à beira da estrada, são encimados por um anúncio berrante de lado a lado, identificando-se como vegetarianos ou mistos “vegetarian and non-vegetarian”. A este caleidoscópio ajuda o apurado sentido de “marketing” dos indianos. Qualquer boteco em chapa de zinco com uma mesa e duas cadeiras, onde sirvam chá, possuiu um gigantesco cartaz encarnado com letras garrafais a anunciar o “great deluxe international coffee shop”.

O hotel que albergou a conferência (e, mais importante, a mim), um Méridien, é tido como um dos melhores de Cochim. O acesso dá-se por umas cancelas fabricadas na metalo-mecânica da esquina. À sua frente, alguns bidões batidos e garatujados com um “stop” ingénuo formam uma chicana para prevenir imaginários arrombamentos. A recepção e as zonas comuns do hotel são numa construção baixa e quase luxuosa. Por trás, um longo passadiço conduz a um cais onde se apanha o barco para uma torre modesta, onde ficam os quartos. É a primeira vez que fico num hotel com rio pelo meio. Também é a primeira vez que o meu hotel oferece ioga às seis da manhã. Prescindi em prol de um muito ocidental roncanço até às oito.

Os cinco minutos de trajecto de barco entre os dois pólos do hotel foram dos momentos mais agradáveis dos três dias que ali estive. As margens, pujantes de palmeiras, tinham um ar de selva, apesar de estarmos numa cidade maior que Lisboa. Pelo rio desciam farfalhudos magotes de umas plantas aquáticas a quem Darwin instalara uns flutuadores nos caules. A meio-caminho entre os dois ancoradouros havia uma rede chinesa. As redes chinesas são um dos ícones de Cochim: uns aranhiços toscos de madeira, altos como uma casa, que seguram nos braços uma enorme rede de malha fina. Normalmente, os ícones turísticos são mais turísticos que ícones. Lembro-me das casas de telhado de colmo de Santana, que tudo visita e onde já ninguém mora ou dos palheiros da Costa Nova, meros justificativos da barbárie construída que os cerca. Ao contrário, neste ícone indiano trabalho um indiano que dele retira seu sustento. Saindo da barraca de chapa que construiu na margem, mete-se pelas águas espessas, baixa a rede e sobe-a, à distância tão vazia antes como depois.

Os rios são, em Cochim, ruas e estradas. Em frente à torre onde dormi, um barqueiro transportava gente de uma margem para outra, remando de pé à popa. No último dia da minha estadia demos um passeio de barco até ao esplêndido espelho do lago Kumarakom, onde jantámos juntos, centena e meia de congressistas e vários milhares de besouros e outra bicharada sortida. Seguimos vários braços de água estreitos. Ao longo das margens fluía uma correnteza de casas, lojitas, “outdoors”. Havia paragens para barcos de transporte público, com gente à espera. Aqui e ali um restaurante, um templo, uma igreja, uma loja da Vodafone, pessoas que lavam a roupa, fumam o cigarro, carregam um menino. Cá, os rios separam as margens, lá na Índia ainda as unem.

No regresso, de autocarro, seguíamos por uma longa recta ladeada de boas moradias com jardins generosos quando o motorista travou a fundo, de repente. Uma jibóia com bons três metros, gorda como um braço, arrastou-se lentamente pelo alcatrão e a camioneta só arrancou quando a cauda desapareceu na vegetação da beira da estrada. Suponho que os privilegiados proprietários daquelas casas deverão ter de vez em quando direito a uma jibóia na cozinha, como nós temos aranhiços ou lagartixas. Talvez Índia sem uma cobrazita não seja Índia.

Três dias de Índia não são nada. Pouco sabia dela, pouco continuo a saber. Deram para perceber que é pobre, suja, desigual, injusta. Aqueles que invejam o dinamismo da jovem sociedade indiana e lamentam a inércia da velha Europa não sabem do que falam e ignoram o tiro nos pés que dão com essa filosofia barata. A maior parte dos muitos indianos que vi mudava-se para a periferia de Lisboa, Berlim ou Milão na horinha, sem pestanejar.

Mas só as três primeiras horas chegaram para entender que a Índia é diferente de tudo o mais e bela para além das suas chagas. Fiquei marcado para voltar. Por pouca Índia que fosse, esta visita pareceu o olhar de um rapariga que se cruza com o nosso numa estação de metro e que, mesmo nada sendo, nunca se esquece.

domingo, outubro 24, 2010

Exposição fotográfica (XXV)

Do baú digital, mais tiradas em Alfama.










quinta-feira, outubro 21, 2010

Histórias da crise

História 1


Carvalho da Silva da Intersindical e João Proença da UGT foram mancomunadamente entregar no Ministério do Trabalho, na londrina praça, o pré-aviso da segunda greve conjunta desde o vinte e cinco de Abril.

Convocaram as televisões e estas foram, diligentes. À porta, os dois sindicalistas declararam as habituais declarações. Carvalho da Silva antevia uma “boa greve”, com um sorriso de evento de quem antecipa um grande jogo de bola.


Eis senão quando surge uma velhota. Que manifestamente não gostava deles. Começou a invectivá-los, a mandá-los trabalhar, puxando galões de reformada após uma longa vida laboral. E logo diante das câmaras: que maçada! Ao princípio, os dois homens tentaram ignorá-la mas ela, para cão ignorado, ferrava bem a mandíbula. A polícia acudiu democraticamente, não fosse a anciã pôr em risco a sindical compostura. As câmaras viraram-se para a senhora e os dois homens. O caldo entornou e o tom empepinou.


A Carvalho da Silva e João Proença falta-lhes aquela sagacidade milenar das culturas africanas ou japonesa, nas quais um velho não se contradiz: ouve-se ou no limite atura-se com bonomia, que os anos e os cabelos brancos são para respeitar. A certo momento, Carvalho da Silva – como sói dizer-se – passou-se. Dirigindo-se à senhora, largou repetidamente:


- Quem é que a mandou cá?


De facto, a retórica estalinista é uma coisa notável, de uma homogeneidade perene e imaculada. Podem botar em cima doutoramentos em sociologia e gravatas de seda que na hora do aperto o sistema fechado, como lhe chamava Karl Popper, vem ao de cima. E neste sistema o povo não exprime o seu desagrado livremente: foi mandado como é próprio de quem obedece, manipulado como é próprio de quem não pensa, telecomandado por interesses com tempo e paciência para estas coisas.


Quando Carvalho da Silva finalmente foi embora, vieram as equipas dos serviços municipalizados e passaram a tarde a varrer do passeio as lascas do verniz.



História 2


Em 20 de Janeiro de 1961, John F. Kennedy proferiu o seu primeiro discurso como 35º presidente norte-americano: o mais jovem de sempre, com 43 anos, o primeiro irlandês, o único católico e o único, também, a deixar a marca presidencial no maior “sex symbol” do planeta da época coeva. Nessa alocução, consta que inspirado numa frase do poeta libanês Kahlil Gibran, Kennedy disse a célebre “Ask not what your country can do for you - ask what you can do for your country”.


Com certeza aflita com a crise que caiu em cima, a estação de rádio TSF anda a perguntar a toda a gente que vagamente dê ar de figura pública, com a voz de Kennedy em “jingle”, sobre o que é que podem fazer pelo país. Por acaso a frase de Kennedy não se referia a nenhuma acção relacionada com a economia. O contexto do discurso era o da Guerra Fria e a frase alude à defesa da liberdade.


Assim, por estes dias, ligo o rádio do carro e lá vêm os presidentes de uma empresa ou de uma associação agrícola, ou um vereador do Pinhal Interior, ou um promotor cultural de Cinfães, todos intentando tranquilizar-nos com o que têm em mente para ajudar Portugal e nos tirar deste mau passo em que nos achamos. Para minha grande surpresa, todos começam o seu minuto a afirmar que pensam continuar a fazer rigorosamente aquilo que têm feito até agora.


Pois. Mas não foi exactamente assim que aqui chegámos?



História 3


Hoje. No telejornal da TVI, Pedro Passos Coelho afirma à jornalista Constança Cunha e Sá quais as magnas razões que o levaram a escolher o caminho de arame e a alavancar a negociação do Orçamento de Estado. “En passant”, eu acho que ele foi totó e que se vai entalar (o que não me preocupa) e que corre o risco de nos entalar (o que já me inquieta um pouco mais), mas não é disto que quero falar agora.


A dado momento, a periodista, com a voz de um grave tabágico e aquela pose altiva de quem tem um Sá para lá no meio dos apelidos, começa:


- Mas para que os portugueses percebam…

- Os portugueses perceberam muito bem, respondeu Coelho.


De facto eu e todos os portugueses já tínhamos percebido muito bem porque, não possuindo embora as capacidades einsteinianas da Constança, não somos completamente imbecis. Fiquei por isso contente com a resposta de Passos, que me vingou de vezes sem conta em que tive que aturar esta, a Fátima Campos Ferreira, a Maria Elisa, a Manuela Moura Guedes, a Judite de Sousa e esse monte de gajas a quem malfadadamente pespegam um microfone nas mãos, a traduzirem-me para português “do povo” uma frase que se percebia à primeira. Bem hajas, ó Pedro. Só nesta, claro…



Moral das histórias


Moral? Bem, moral não têm, mas explicam muita coisa.


domingo, outubro 17, 2010

Princeps

Príncipe, meu príncipe
Possam ventos de auspício enfunar tuas velas
E cintilar no breu, chamando, tuas estrelas
Possas tu ser artífice
De noites adamantinas, de dias dourados
Que com eles bordejes qual arminho
O longo veludo que feito caminho
Te conduza aos destinos almejados

Príncipe, meu príncipe
Teu reino sem ti agora sombreja, estranho
Bruxas voando sobre memórias d’antanho
Lampejam como ápices
Átomos de esplendor, risos na sala do trono
Um passado sem mácula nem obstáculo
Numa torre em que no mais alto pináculo
Florescia a rama verde do sonho sem sono

Príncipe, meu príncipe
Lá longe, da tua nau bruxuleia a chama
Por cá, de teus passos a saudade clama
Príncipe, meu príncipe
Que venças seguidas tuas duras pelejas
Não erre teu olhar como Orfeu para trás
Sussurremos nós, por onde quer que vás
Prece sofrida pela vitória que ensejas

terça-feira, outubro 12, 2010

A casa meretrícia do Gogol


Dizia o velho Mata, referindo-se a certos agrupamentos políticos, que pelo andar da carruagem se vê quem lá vai dentro. Aplico muito essa máxima na aquisição de livros e discos: compro por impulso, pela pinta do invólucro. Aliás a música é palavra feminina, por isso extrema o cuidado com a aparência para melhor seduzir. Boas capas nem sempre significam boa música, mas quem faz boa música não se contenta com uma capeca qualquer. Às vezes nem têm que ser grandes: basta que pisquem o olho. De vez em quando enfio barretes até ao calcanhar, mas felizmente vou não resistindo, com mais sucessos que fracassos.


Ontem fui à FNAC trocar dois “Massive Attack” que o amigo PW me oferecera de aniversário pelas minhas


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(marque com um X a resposta certa)


primaveras. Desconhecia ele o meu poder de antecipação: cumprindo promessa aqui feita, já os tinha comprado todos.

Levei em câmbio um Rigoletto, versão integral da Deutsche Grammophon com o Plácido Domingo como duque de Mântua, a preço de saldo e quando procurava a segunda troca dei com uma coisa chamada Gogol Bordello. Gostei da composição da capa e do ar marialva do bacano nela constante. Fiquei interessado. E depois lembrei-me que o meu pai se gabava, como quem fala com orgulho de uma cicatriz de guerra, de ter lido de fio a pavio os grandes chatos russos, entre os quais destacava Tchekov e Gogol. Era um sinal dos céus: venha!


Chegado a casa, quando mostrei as minhas compras, o meu júnior descartou com desprezo o Verdi para cima do sofá e ficou embevecido a olhar para o segundo: “compraste Gogol Bordello!”. Nesse momento subi quinhentos pontos na consideração dele, o que me permitiu ficar só em 12375 negativos.


O marialva da capa, líder da banda, chama-se Eugene Hütz e nasceu na Ucrânia. A banda é nova-iorquina e os músicos são ucranianos, russos, israelitas, etíopes, americanos, escoceses, equatorianos. Uma sociedade das nações a tocar música cigana enxertada em “Sex Pistols”. Vejam com os vossos próprios ouvidos:





Quando vim para aqui alinhavar isto, o rapaz disse-me: “Ouve Crystal Castles”. Assim fiz enquanto escrevia, cortesia do “Youtube”e gostei. Nisto de música andamos simbióticos: ele faz-me descobrir o brilho do presente e eu apresento-o às glórias passadas. De vez em quando leva um Focus ou um The Clash para o quarto ou para o “iPod”.

sexta-feira, outubro 08, 2010

Exposição fotográfica (XXIV)

Em Antuérpia, a 12 de Setembro deste ano


Estação Central, junto à praça Rainha Astrid, zona dos diamantes


Na rua Meir.


Junto à Groenplaats, a cor de um café quentinho


Igreja de S.Paulo, de 1517, com um dos interiores mais belos que eu já vi.


Narguilé com vinte por cento de desconto para estudantes. Há que incentivar o estudo!

Fonte Brabo na Grote Markt, a praça do mercado grande. Na Bélgica, o nome das ruas e praças nas zonas antigas das cidades ainda nos conta sobre a vida noutros tempos.

A Grote Markt. Nela tocava este "jazz band", que entusiasmou indígenas e forasteiros com uma versão muito própria do "Smoke on the water". O público aplaudiu de pé, dado não haver cadeiras.

quinta-feira, outubro 07, 2010

A coisa pública

Sempre percebi à minha volta, na minha infância e juventude, uma associação de ideias entre a figura da República e o progresso, a igualdade e a liberdade. Ouvia dizer sobre velhotes venerandos que haviam sido republicanos, o que era uma maneira de afirmar que tinham demonstrado valentia ou propalado ideais. Geralmente complementava-se o “republicano” com “opositor ao regime”. Mau grado o tal regime, o Estado Novo, se corporizar ele próprio numa república. Tal associação entre republicanismo e oposição ao fascismo reforçou a imagem da Primeira República como momento áureo e iluminado das liberdades em Portugal, ideia comummente adoptada pelas fatias da oposição que vieram a dar origem aos dois partidos do actual arco do poder.

Como lado B deste conceito, aparecia a monarquia enquanto anacronismo reaccionário. De “per se”. Ideia ainda frequente nos actuais livros escolares e nas reportagens de televisão neste ano de centenário do 5 de Outubro.

Ora se a estatística não for uma batata, nem a História outra, há aqui muito que não se aguenta bem de pé.

Pegando na lista dos países com maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), uma medida usada pela ONU que agrega indicadores de esperança de vida, literacia e riqueza “per capita”, no topo reside uma monarquia (a Noruega). Dos três primeiros, dois são-no também. E entre os primeiros dez, seis. E nos vinte primeiros, doze. Claro que são monarquias constitucionais, com monarcas com campos de actuação limitados e simbólicos. Por isso se diz, quando alguém não possui nenhum poder efectivo, que é uma rainha de Inglaterra. Exactamente a mesma em quem alguns destes países, sem complexos de soberania, como o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia, delegaram o papel de “chefe de Estado”: num monarca estrangeiro!

Isto não demonstra que um regime monárquico promova mais o desenvolvimento do que um republicano, nem o inverso. Mas permite pelo menos afirmar que a monarquia não constitui um “handicap” ao progresso ou um óbice à democracia. E impõe alguma prudência: quando chegarmos ao nível de uma Noruega, já não digo em IDH, mas meramente em dedos de testa, talvez os republicanos portugueses não façam figuras ao associar automaticamente regime monárquico e noite das trevas.

Por outro lado, analisando friamente alguns números da nossa Primeira República, podemos concluir que as coisas não correram lá muito bem. Algo que tornou menos fácil viver em Portugal nesse período foi o facto de se morrer mais: entre 1910 e 1920, a mortalidade por mil habitantes aumentou 19% e a mortalidade infantil uns impressionantes 36%. O produto nacional por cabeça, medido em libras-ouro, desceu no mesmo período uns robustos 40%. Entretanto, o valor da moeda dividira-se por sete. O país viu-se mais pobre e emigrava-se duas vezes mais. Apesar do pequeno aumento da população, o número de eleitores inscritos baixou ligeiramente e manteve-se na casa de uns meros 20% da população adulta. O número de hospitais decaiu. Apenas na educação se verificou de facto alguma evolução, especialmente no ensino liceal, e a taxa de analfabetismo baixou nesses anos de 75 para 71%.

A democraticidade do regime seria nos nossos dias qualificada de musculada, apresentando-se com liberdades formais mas tolerando – senão promovendo – assaltos aos jornais adversários e bandos de moca em punho à caça de oponentes. Parece evidente que a defesa e a disseminação da Liberdade não estavam entre as preocupações centrais do regime, ao contrário do que claramente aconteceu a seguir ao 25 de Abril. Neste particular, os progressos face ao período da monarquia não entusiasmam, se por acaso os houve. E o papel das mulheres na vida pública continuou menorizado pelos homens do poder.

À guisa de cereja em cima do bolo, a instabilidade política foi permanente. A dado momento, houve governos que duraram dias… Não surpreende muito que a mesma burguesia que aclamara a República em 1910 aceitasse pacificamente o golpe de 1926 e tudo o que veio a seguir e que a meu ver não trouxe nada de bom.


Apesar do que acima expus, e que serviu apenas para esclarecer que acho a discussão sobre o tema, em Portugal, muito mal centrada e feita de ideias feitas, eu sou republicano. Por duas razões. Uma, porque na prática se verifica que o bom governo da nação é igualmente possível numa república ou em monarquia. A Suécia tem um rei e a Finlândia um presidente. E também se constata que uma péssima governação pode aparecer em qualquer um dos sistemas: no Iémen republicano como na monárquica Arábia Saudita.

A segunda, que se esteia na primeira, é que, podendo qualquer um dos sistemas funcionar, não me parece que haja grandes justificações teóricas para que se escolha um regime em que um cidadão tem um certo grau de poder político, por pequeno e ilusório que seja, reservado só para ele e para a família. Tão simples quanto isto.

Entendo que uma família real funcione como referente aglutinador de um povo, como traço de união, como espelho da memória dos tempos. Percebo que nalguns países, como a Bélgica, ou até a Espanha, um rei constitua hoje em dia um dos mais fortes alicerces da unidade nacional. Percebo que noutros a realeza seja um tradicional traço diferenciador de um povo, como acontece no Reino Unido. Mas, percebendo, não me chega.

E em Portugal ainda menos se justifica. O comboio da História não pára e a nossa monarquia quedou-se numa estação já muito lá para trás, no dia em que Manuel Maria Filipe Carlos Amélio Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Bragança Orleães Sabóia e Saxe-Coburgo-Gotha, “aka” D. Manuel II, embarcou na Ericeira no iate real “Amélia” rumo a Gibraltar. Que me desculpem os meus amigos monárquicos.


Dito isto, não senti grande motivação para celebrar os cem anos da instauração da República. Talvez porque não haja assim muito para festejar. A “res publica” está cada vez mais coisa e cada vez menos pública. Talvez porque não seja um assunto essencial: o que nos distingue da Noruega não é ela ser uma monarquia; o que nos separa é ela ser uma democracia a sério, mais solidária, mais participada, mais equitativa, exemplar até quando a constituição garante que parte dos rendimentos do presente se destinam às gerações futuras, contrariamente a cá, em que vamos chutando para cima dos desgraçados que hão-de vir a dívida, o desemprego, as longas carreiras contributivas e outras malvadezas a que habilidosamente nos safámos.

Mas já que estamos numa de celebração e memória, que daí tiremos pelo menos algum proveito. Para tal, mais do que assinalar como a Primeira República começou, convinha lembrar bem como terminou. Para que a História não se repita. É que o Diabo, tal como os PECs, tece-as.

domingo, setembro 19, 2010

Férias XI : Fim de férias

Para terminar esta sequência de "posts" inspirados nestas férias de Verão, a fotografia que mais gostei de tirar. Nos Aivados, ao lusco-fusco, com 1600 ASA para garantir os derradeiros fotões. Vi o pescador aproximar-se, percebi que ia passar diante da poça e proporcionar um reflexo engraçado. Como já só conseguia uma velocidade de obturação baixa, foquei o sítio onde ele ia passar, pus-me teso que nem um carapau para não tremer e esperei. Esperei, esperei e ele nunca mais passava. Espreitei pelo rabo do olho e estava ele parado, com um sorriso, esperando ele também que eu tirasse a fotografia para avançar. Pareceu um pouco surpreendido quando lhe fiz sinal para andar mas lá foi. Tipo simpático.


Esta foto é dedicada à turma dos Aivados que patrocinou as melhores férias do mundo:

SM, JM, AM, PB, XB, M, FB, SB, CB, PB, JB+M, GB, MB, BM, AS, CS, MS, NT, MJ (F), LT, 2xMT, ZB, AV+I, CL, PC, NB, TC, MC, JC, SR, CR, JC, PC, PW, MAC, ZM, NF, GP+M, VA, AA, PHM, VE, LM e especialmente àqueles que não tendo lá passado este ano estiveram nos nossos corações: PG, PC, FC, FC, SC.

Até para o ano...

Férias X : A grande misturada

Em contraponto ao meu post “Ab equo ad asinum”, o meu amigo NF deu-me um livro intitulado “Everything is miscellaneous – the power of the new digital disorder”, de um David Weinberger. Já antes, em revolta contra as opiniões musicais reaccionárias aqui expressas, o NF me presenteara com um CD dos Beck. Incentivo os membros do reduzido clube dos leitores do Mataspeak a seguirem o exemplo do NF e sempre que estiverem em desacordo a me oferecerem qualquer coisa. Também aceito numerário e quase todos os cartões de crédito.

O livro, que li estas férias, aborda as potencialidades (praticamente sempre vistas como virtudes) que o novo mundo computorizado em que vivemos traz à organização da informação e ao acesso que a ela temos e ao uso de que dela podemos fazer. O que nos conta não deixa de ser fascinante, mas já dizia Oscar Wilde que acharmos um livro fascinante é diferente de concordarmos com ele.

A primeira parte do texto foca-se na definição de tipos de organização de informação e na história de sistemas de organização. Até ao advento da informática, a organização de objectos estava enquadrada pela natureza física dos objectos catalogados (por exemplo, livros por ordem alfabética de autores numa estante) ou da meta-informação que os referenciava (por exemplo, as fichas de biblioteca em papel). Ora o que é físico tem limitações físicas e estes sistemas têm muitas falhas de versatilidade, problemas de definição, pouca adaptabilidade, curteza de horizontes, “et caetera”. O autor vai contrapondo a estes exemplos as capacidades de referenciação cruzada e de construção de subconjuntos das modernas bases de dados para concluir, algo pedantemente, sobre as limitações dos átomos (constituintes dos livros ou das fichas) face aos “bits”, imagem que repete inúmeras vezes. Esta má-vontade para com os pobres átomos soa-me algo ingrata. Ele, da próxima vez que for a um urinol e segurar nuns átomos, que filosofe se preferia antes vir equipado com uns “bits”.

Chalaças à parte, até aqui não parece difícil concordar com ele. É óbvio que a informática abriu um mundo novo na gestão e utilização de informação. Tão evidente como ver que o motor de explosão iniciou novas perspectivas na mobilidade, as vacinas na sobrevivência infantil e a fundação do Sporting Clube de Portugal na ética desportiva. Nunca são as potencialidades do progresso que devem ser postas em causa, mas os seus riscos.

E é sobre alguns efeitos que comportam riscos que eu e o autor começamos a divergir. Isto apesar de eu ser meramente eu e Weinberger possuir um doutoramento em filosofia. Mas também ele, que é meramente um doutorado em filosofia, não se ensaia nada em zurzir Aristóteles, que defendia a existência de uma pertença perfeita de cada objecto a uma organização ela própria ideal, noção que o mundo miscelâneo das bases de dados cruzadas veio desmentir. Se Weinberger se pode pôr em bicos de pés, também eu posso. Estamos quites.

Um primeiro aspecto em que divergimos está no extâse que ele sente perante a fartura de informação que as novas ferramentas permitem. Vejamos este exemplo, em tradução livre: “O ISBN – código internacional de numeração de livros – do “Moby Dick” de Herman Melville ilustrado por Rockwell Kent é o 0679600108. No “site” da biblioteca do Congresso, uma pesquisa por esse ISBN revela que o livro foi editado pela Modern Library, possui 822 páginas, 21 centímetros de altura e foi impresso em papel reciclado e isento de ácido. No “Amazon.com”, uma pesquisa por esse ISBN liga-nos a uma análise pela Amazon das frases mais emblemáticas do livro, informa-nos que ontem a edição era o 43631-ésimo livro mais vendido mas que hoje passara para a posição 49581, que continha 208968 palavras, que o seu índice de Fog (uma medida de legibilidade) indica ser de dificuldade média, que a compra permite adquirir 14634 palavras por dólar e que 286 pessoas tinham escrito opiniões que podíamos ler, atribuindo ao livro uma média de quatro estrelas em cinco”. Pois… E o que é que esta merda interessa?

Palavras por dólar? Melville ficará mais em conta que Homero ou Steinbeck? E que tal ler a lista telefónica, com tanta palavra quase de graça? E o índice de Fog? Qual será aqui o índice de Fog do Mataspeak? Aberrante, com certeza. Este exemplo, que Weinberger toma como uma demonstração das maravilhas do novo mundo da informação miscelânea, parece-me a mim o paradigma de alguns dos maiores riscos que a “Internet” proporciona: a saturação de informação irrelevante que mascara aquela que interessa, a suposição que o mercado ou as massas podem definir a valia de um bem cultural ou, ainda mais arriscado, que são detentores da verdade.

Outra noção que Weinberger avança com a qual não concordo é a de que a “Internet” e o acesso a toda esta informação cruzada veio libertar-nos de intermediários (que ele suspeita malévolos) que faziam uma filtragem para nós. Segundo ele, a abundância da informação disponível passa para nós a responsabilidade de a filtrar e isso é muito mais livre e democrático. Estou com ele em que a vasta disponibilidade de informação na “net” cria-nos a obrigação de a seleccionar adequadamente, exigindo-nos esforço adicional. Era aliás este um dos pontos que eu salientava no meu “post” referido no início. Mas onde não concordo é que a oferta de informação por atacado da “Internet” seja estruturalmente melhor que a que pode ser facultada por um bom livro de um bom especialista, ou que esta última seja sempre absorvida passivamente e a primeira implique uma crítica activa.

Por exemplo, como eu não tenho tempo físico para ler e reflectir sobre as centenas de livros relevantes da filosofia ocidental, posso seleccionar um autor que tenha escrito uma síntese que me dê uma panorâmica satisfatória. O meu primeiro papel activo aqui será escolher um autor com credenciais que me proporcionem uma certa garantia de qualidade na análise que vou encontrar. Verificarei em que extensão estudou o tema, o prestígio que tem entre os seus pares, se parece mais ou menos sectário em relação a este ou aquele assunto. Vamos supor que, com base nesses critérios, escolho a “História da filosofia ocidental” de Bertrand Russell. O meu segundo papel activo ocorre durante a leitura. Há assuntos ou opiniões de Russell que me parecerão menos bem elaborados ou estranhos. Para esses eventualmente poderei ir à procura de outras opiniões ou ler os autores originais e julgar por mim próprio, o que será o meu terceiro papel activo.

Se utilizar a “Internet”, poderei certamente ter muitos mais “megabytes” de informação disponível. Mas no processo de filtragem recorrerei a programas de pesquisa que me orientarão segundo critérios que na melhor das hipóteses são algorítmicos e na pior enviesados por questões comerciais. A quantidade de informação será tão grande que me dificultará atingir uma visão global do tema. E, sejamos honestos, a maior parte dos utilizadores da “net” absorve acefalamente o que lhe aparece, sem perguntar porquê.

Um especialista que escreve um livro é de facto um intermediário entre mim e a informação, entre mim e, “soi disant”, a verdade. Mas isso não é obrigatoriamente mau, como o sugere Weinberger. O talhante também é um intermediário entre mim e o boi e eu prefiro usá-lo a ir caçar para a planície e esquartejar depois o bicho. E há muitos talhos, dá para escolher.


O autor apresenta como conclusão final que, nos dias de hoje, com o fartote de informação ao nosso dispor, a questão deixou de ser a construção de conhecimento (“knowledge”) para passar a ser a de sentido (“meaning”) que terá que ser construído pelo receptor a partir de uma base de conhecimento consolidada e infinitamente acessível. Temo que isto não passe de um mero jogo de palavras. Encontrar o sentido e compreender com base na informação disponibilizada é o que gera o conhecimento. E tal é válido com a “net”, com um bom livro ou com as pinturas de Altamira.

A leitura deste “Everything is miscellaneous” não alterou no geral as opiniões que deixei no meu “post”: a “Internet” e outros meios da sociedade da informação são potencialmente utilíssimos, permitem experiências muito interessantes, como a Wikipedia ou a blogosfera, e continuarão a moldar as nossas vidas. Na maioria dos casos, ainda bem. Mas de modo a sermos agentes e não vítimas desta formidável máquina, seremos obrigados a um esforço crítico muito superior, para o qual outras formas de aquisição de cultura mais tradicionais, como a leitura, o visionamento de um filme ou a apreciação de uma pintura serão mais úteis do que nunca.

Como em tudo na vida, vai ser bom e vai ser mau. E o que me surpreende na análise desenvolvida neste livro, por um doutorado em filosofia, é o de o lado mau não merecer sequer uma palavra de comentário. Por exemplo, pode a “net” ser uma arma de libertação? Sim, como os exemplos chinês e iraniano demonstram. Mas pode também transformar-se num veículo de alienação e de opressão com um alcance temível. Aliás, no que a alienação se refere, o próprio Weinberger já me parece ter ficado meio apanhado.

Ainda assim e com toda a sinceridade, obrigado, NF. Venham sempre mais.