quinta-feira, dezembro 31, 2009

Mais do mesmo em fim de ano

Ontem, a popularíssima república chinesa executou por injecção letal um inglês com problemas mentais, Akmal Shaik, que servira de correio de heroína a proveito de traficantes da província de Xinjiang, possivelmente sem o perceber. Foi um de milhares a ser executados durante o ano no Império do Meio, aquele no mundo que mais condena à morte. Apenas causou um pouco mais de efervescência por ser um europeu: segundo a imprensa, o primeiro-ministro britânico criticou a ocorrência em “termos fortes”, ao lamentar que os pedidos persistentes de clemência não tenham sido satisfeitos.


A força destes termos nem deve ter chegado para perturbar a hora do chá da nomenclatura chinesa. Afinal, um demente longínquo cabe na cova do dente ao partido que tem no currículo o Grande Salto em Frente, a maior fomeca jamais fomentada pelo homem, que no final dos anos cinquenta matou inadvertidamente uns muito largos milhões ou a Revolução Cultural dos anos sessenta, com o seu cortejo de tropelias a afectar outra vez uma data de milhões, centenas de milhar dos quais no seu próprio direito à vida. Isto só para citar dois dos disparates mais evidentes.


À estonteante força verbal britânica, as autoridades chinesas reagiram nestes termos pacatos: “Ninguém tem o direito de dizer mal da soberania judicial da China. Expressamos o nosso forte desagrado e determinada oposição às injustificadas acusações britânicas. E instamos o Reino Unido a corrigir os seus erros e a evitar prejudicar as relações bilaterais.” Por outras palavras: “se queres continuar a fazer negócio, deixa-te de tretas.” Claro que se vão deixar.


A persistência da pena de morte neste malfadado planeta mostra como nos encontramos, globalmente, ainda tão longe de ser civilizados. A pena de morte é a barbárie com papel passado. Não há razão ética que justifique que homens terminem a vida de outros tendo como alternativa não fazê-lo. E qualquer uma das razões práticas que frequentemente se invocam em sua defesa não passa de um mito. Não existe qualquer correlação positiva entre a aplicação da pena de morte e a redução de criminalidade. O número de erros judiciais que se descobrem “a posteriori” da execução diria só por si o suficiente. Ineficaz e iníqua, a pena de morte serve apenas para ajudar ditadores a resolver os seus problemas ou para acalmar as ânsias por um mundo sem riscos de mentes pequeno-burguesas que seriam incapazes de serem elas a fazer o trabalho sujo.


Dizia Camus, a pensar nos valentes de peito feito que clamam por rigor extremo contra a bandidagem, que só não desprezaria um defensor da pena de morte se este fosse o próprio a apertar o gatilho.


Não serve como consolo o facto de os países que mais levam a cabo execuções corresponderem normalmente a sociedades de menor calibre civilizacional, como a China, o Irão, os Estados Unidos, a Arábia Saudita ou o Paquistão. Todos os outros, que não praticam, fecham rapidamente os olhos assim que há algum dinheiro em cima da mesa ou por baixo dela.


Mas, surpreendentemente, pode haver pior. Tal como há infinitos com mais números que outros, também há horrores mais deprimentes que outros. Na Arábia Saudita, neste 2009 que agora expira, uma mulher de 75 anos, Khamisa Mohammed Sawadi, foi condenada a quarenta chicotadas, quatro meses de prisão e deportação para a Síria, de onde é originária. O seu crime: ter sido apanhada pela Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, a polícia religiosa saudita, no mesmo espaço físico de dois homens que lhe tinham vindo trazer pão, uma vez que a senhora é doente e pobre.


Acontece que, na Arábia Saudita “wahabita”, a simples presença simultânea de homens e mulheres que não sejam parentes no mesmo espaço físico configura potencialmente um crime religioso. Que isto assim seja indicia uma deformação psicológica e uma tara sexual, graves, numa parte significativa da população saudita. Digamo-lo sem medo das palavras: esses tipos são atrasados mentais. E só assim se compreende que condenem a chicotadas igualmente os homens que, ao trazer pão à senhora, evidenciaram apenas uma das mais nobres características humanas: a solidariedade.


Não existem muitas diferenças entre quem promove esta Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício que chicoteia velhotas e os nazis que organizaram a “Solução Final” que asfixiava velhotas e crianças em campos de extermínio. Apenas uma: a Arábia Saudita produz e regula o preço do petróleo de que o Ocidente necessita. O que explica muitos silêncios. Ficamos a pensar que se a Alemanha, em 1939, possuísse o monopólio de alguma matéria-prima fundamental talvez tivesse podido invadir a Polónia com maior tranquilidade, sem provocar aquele banzé todo.


Nesta quadra em que jornais e revistas elegem o facto mais relevante ocorrido no ano, a condenação a quarenta chicotadas de Khamisa Mohammed Sawadi poderia muito bem ser candidata ao título. Mas não teria o meu voto: eu elegeria, pelo que tem de revelador sobre quem nós somos na realidade, a discrição comprometida com que o resto do mundo aceita que se torture uma velhinha a troco de barris de petróleo.


Apesar destas desgraças, Mataspeak deseja a cada um dos seus leitores um Feliz Ano Novo.


segunda-feira, dezembro 28, 2009

Missa da aurora

25 de Dezembro, oito e meia da manhã. Lisboa dorme a sono solto, digerindo com esforço os excessos da quadra, o chão da casa pejado de papel rasgado e fitas coloridas. Em frente à igreja de Benfica, a calçada generosa lembra o recato de uma praça de aldeia: com o silêncio deserto que a passagem de uma silhueta atabafada meramente sublinha e o tapete negro da estrada esperando a viatura ocasional que se ouve ainda distante. As lojas, engalanadas, repousam do frenesim dos dias anteriores em que facturaram meio ano à conta do sentimento de obrigação de retribuir. Algumas, ainda iluminadas, pintam de um tom amarelado a cacimba ténue que como um mistério aconchega a cidade enregelada.


Entro, passado tanto tempo, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo, onde há quase quatro décadas recebi primeira comunhão pelas mãos da figura severa do padre Proença, hoje perenizado num busto de bronze como um Han Solo de adro. No centro paroquial adjacente fui bom aluno de catequese, ministrada por moças de cabelo apanhado por um gancho e pesados óculos de massa, de trás dos quais contavam com voz doce histórias dos evangelhos que não me fizeram mal nenhum, antes pelo contrário, acho eu. Um dia anunciei em casa que já não valia a pena ir por não acreditar naquelas coisas, para certo desconforto de minha mãe. De repente, Deus ficou sem espaço na minha vida, substituído por fés mais prometedoras (aos doze anos pareciam) como a ciência ou a humanidade, e partiu sereno. Também, não Lhe devo fazer grande falta.



Lá dentro, sou surpreendido pelo burburinho sumido de uma casa cheia, sentada ordeira nos bancos corridos, numa presença humana que contrasta com o vazio da rua e a mudez vertical do templo, um grosso caixote oitocentista, de um barroco modesto, a que o tempo conferiu mais vigor do que beleza. São sobretudo mulheres idosas, envoltas em pesados casacos escuros e cachecóis tricotados, que esperam pacientemente o início das palavras mágicas que, para muitas, encherão algum do vazio criado pelas saudades dos que foram e pela ausência dos que ainda cá estão. A cada minuto, bate a porta de entrada e entra mais uma, que busca um lugar como que guardado para ela, arrastando atrás de si um bichanar de cumprimentos murmurados.


Encosto-me a um pilar de lado e permaneço de pé. Assim faço sempre numa igreja. Não me sento, não me ajoelho, não me benzo: mantenho-me quietinho, o que atrai alguns olhares entre o curioso e o desconfiado. Não poderia ser de outra maneira: aquilo que para outros simboliza o divino, como um sinal da cruz, feito por mim que não creio seria um mero macaquear e uma suma falta de respeito. Ali me quedo em silêncio.


Começa a eucaristia, passo a passo, iguais a cada dia e a cada século, como uma procissão centenária que percorre sempre as mesmas capelas e as mesmas esperanças. A dado momento, o padre cita alguns nomes a que a celebração especialmente se dedica. Um deles o do meu pai, razão da minha presença ali, inicialmente mal referido pelo cura: “Mota”. O velho Mata ter-lhe-á lançado lá de cima algum aperto fulminante porque logo emenda, ajustando os óculos: “Perdão, Mata. Américo Mata”.


Durante o sermão, dedicado ao sentido da celebração natalícia, o padre, recorrendo a uma linguagem jornalística, comenta que o Natal pode estar em alta, mas Jesus está em baixa. E alerta para que não se faça confusão entre a simplicidade, que o Natal deveria inspirar, e a simploriedade que a nossa sociedade transpira e que neste final de Dezembro parece que se amplifica. Por momentos identifico-me com aquele homem de paramentos do qual tudo me separa mas que me traz numa bandeja a palavra que me faltava para perceber as correrias aos centros comerciais e os ramos de azevinho digitais no canto dos ecrãs televisivos: simploriedade.


A missa termina, as portas abrem-se, a luz matinal ofusca, atraindo a romaria bamboleante dos fiéis que, de pé, se vai lentamente libertando dos bancos corridos. Descubro a minha mãe no meio da multidão, surpresa de me ver ali, deixo-a em casa e regresso à minha, onde tudo dorme ainda, onde restos de papel acetinado ainda juncam o soalho e o cheiro dos doces se evapora pela porta da sala.

terça-feira, dezembro 01, 2009

Abdulix entre os helvéticos

« -Alors, Obélix, l’Helvétie c’est comment?

- Plat. »


Goscinny e Uderzo, in « Astérix chez les Helvètes »


Anteontem, a Confederação Helvética decidiu em referendo proibir novos minaretes no seu território. Dos vinte e seis cantões, que são a modos como umas freguesias lá deles entaladas entre penedos e comunicando umas com as outras por túneis onde circulam comboios da Marklin em ponto grande, vinte e dois votaram contra as fusiformes construções.


Quando li a nova no jornal ainda fui traído pela minha crescente falta de vista: admiti, por momentos, que a conhecida paranóia suíça pela limpeza os tivesse levado a interditar certas badalhoquices indignas de tão asseado território. Mas esfregados os olhos e focada a notícia, verifiquei que treslera: era de minaretes que se tratava. Mais grave, portanto.


A ideia partiu de dois partidos tidos como ultra-conservadores, a UDC e a UDF, como não podia deixar de ser tendo ambos a palavra “democrático” no nome, que viam nas torres das mesquitas obstáculos à “manutenção da paz entre os membros das diversas comunidades religiosas”. Não sei bem porque é que a visão dos minaretes haveria de fazer perigar a paz religiosa. Possivelmente, a UDF e a UDC acharão que os católicos e os protestantes suíços são uma horda de selvagens que, irritados com a imagem de um minarete recortada contra os níveos picos alpinos, pegarão em catanas e caçadeiras e sairão pelas ruas de Zug ou Appenzell, decepando mulheres de “chador” ou fuzilando crianças com ar moreno. Eles lá saberão a malta que lá têm.


Tudo isto não augura nada de bom. A facilidade com que se vota na Europa em partidos inapresentáveis e em propostas que só à bofetada preocupa-me seriamente. Significa duas coisas: que estamos a perder a batalha contra a intolerância, atirando os balázios sistematicamente para os nossos próprios pezinhos; e que já nos esquecemos do perigo de brincar com o fogo. De facto, passaram setenta anos.


Poderíamos aliviar as nossas consciências considerando que o suíço é um ser tendencialmente esquisito, entalado no dicionário entre o suicida e o suídeo, na linguística entre o alemão e o francês e na geografia entre todo o tipo de montículos que lhe limitam os horizontes. Que durante séculos aquela terra pedragulhosa só produzia mercenários às riscas e buracos no queijo. Que em 1990 ainda havia um semi-cantão em que as mulheres não podiam votar. Que o suíço tem fama e proveito de tudo regrar e de entrar em parafuso quando as regras se desregram, rodopiando sobre si próprio à procura de uma lei que o sossegue.


Poderíamos, mas não podemos. O parágrafo anterior é meramente anedótico. Na verdade, a confederação tem origem numa das mais antigas associações políticas de homens livres, tão velhinha quanto 1291, a sua divisa diz “um por todos e todos por um” e a democracia directa e o reconhecimento da iniciativa, da contribuição e do valor de cada indivíduo são factos historicamente estruturais da especificidade helvética. A Suíça soube manter-se independente entre vizinhos poderosos e tornar-se um sociedade afluente e educada, com cidades cosmopolitas como Genebra ou Zurique que atraem sedes de organizações internacionais, capitais miscelâneos e bons concertos de “rock”.


Assim sendo, este voto não traduz nem tradição ditatorial, nem ignorância, nem fome, nem nenhum outro estado precário que justifique desvarios. Traduz sobretudo medo e ódio, e um ódio consciente de quão vergonhoso: nas sondagens, tendo do outro lado do telefone uma pessoa, os suíços afirmaram ir votar contra a proibição. No escurinho da cabine de voto, sem ninguém para topar, votaram maciçamente nesse disparate cujo único efeito prático será humilhar a comunidade muçulmana local.


Esse ódio vai fazendo o seu caminho, sufragado aqui e ali pelo voto de muitos europeus que se acham mais clarinhos e civilizados: em Itália, na Áustria, na Holanda, em França, na Polónia, os populismos ignorantes vão crescendo como bolores nas fendas abertas pelos regimes democráticos.


Certamente, o fundamentalismo islâmico é hoje um inimigo das democracias. Queira-se ou não, há um choque ideológico em curso. O que não quer dizer que tenhamos que colocar todos os muçulmanos no mesmo saco. Ter uns milhares de inimigos será chato. Mas ter uns milhões é estúpido. E a melhor maneira de tornar muitos dos muçulmanos que vivem connosco numa vanguarda dos fundamentalistas é humilhá-los gratuitamente, empurrando-os para o lado de lá. Como os suíços, essa cambada de “Einsteins”, acabou de fazer.


Surpreende-me ainda o relativo pouco barulho que o assunto causou na imprensa europeia. Quando os “talibans” no Afeganistão arrebentaram com estátuas de Buda, caíram, para além dos budas, o Carmo e a Trindade, que pior barbárie não havia. E com magotes de razão: os “talibans” representam uma versão caricatural e perigosa do que mais básico a imbecilidade humana é capaz. Ora os suíços acabaram de mandar abaixo com minaretes que ainda não foram construídos. Parca diferença e vitória de Pirro. Por cada voto de um suíço rosadinho contra a altura dos minaretes haverá um “taliban” a cofiar a barba, satisfeito por verificar que a sua intolerância é contagiosa.


No fim do dia, o Ocidente tem que meter este conceito na cabeça: ou ganha usando os seus valores fundamentais como armas ou perde. E os fundamentais deverão ser a tolerância e a liberdade, não a proibição e o sectarismo.


Escreveu o barão de Montesquieu, em 1748, no “Do espírito das leis”, o seguinte: “Quando as leis de um Estado crêem dever sofrer várias religiões, é preciso que elas as obriguem a se tolerar entre elas. É um princípio que toda a religião que é reprimida torna-se ela própria repressora: porque assim que, por qualquer acaso, puder sair da sua opressão, atacará a religião que a reprimiu, não enquanto religião, mas enquanto tirania.”


Na Suíça como na Europa, infelizmente, vai sobrando em leis aquilo que falta em espírito.

sexta-feira, novembro 27, 2009

Exposição fotográfica (XXI)

Mais do passeio por Alfama de domingo passado.


Único gato do bairro que não fugiu de mim.


Outra vez o boca-de-sapo.

Junto à igreja de Santo Estevão.


O cacilheiro.


Cantinho do churrasco no beco dos Paus.

Atrasada para a missa em Santo Estevão.

segunda-feira, novembro 23, 2009

Exposição fotográfica (XX)

Este fim-de-semana fiz mais um curso de fotografia, já o terceiro, com o António Sá no Espaço João Sousa Valles, ao Restelo. Desta feita sobre fotografia de viagem. O António é professor por natureza, com o humor, a categoria, a sábia persistência, a proximidade, o prazer de dividir que só os grandes mestres põem no ensino. Sendo ele próprio viajante inveterado, nunca falha com uma boa história sobre a vertente humana que as suas voltas pelo mundo lhe vão permitindo descobrir. Nas suas próprias palavras: mais importante que as fotografias, são as vivências.


Quando em trabalho na Mongólia, onde passou dois meses a efectuar uma reportagem, o António pediu ao seu guia que lhe arranjasse, numa dada aldeia, muito pobre, uma família que o acolhesse durante uns dias para que ele visse como se vivia por essas bandas. Logo na primeira casa da aldeia, o assunto ficou resolvido. Não falava a língua deles, nem eles nenhuma que o António soubesse. Fotografou os hábitos dos seus anfitriões, partilhou as refeições, dormiu na divisão comum da casa, num canto onde por vezes lhe chovia em cima durante a noite, obrigando-o a mudar de sítio. De manhã, quando os mongóis viam o colchão num local diferente, faziam cara de espanto e passado um pouco António ouvia-os no telhado, tentando reparar a cobertura.


No último dia, quando António quis pagar a sua estadia, dando o mesmo dinheiro que lhe cobrariam num hotelzito noutro local da Mongólia, os donos da casa recusaram por mais do que uma vez, acenando com as mãos que não queriam. O António teve que insistir bastante até finalmente aceitarem esse dinheiro, pouco para os nossos padrões. Então, a mulher do casal pegou no dinheiro, saiu e voltou passado pouco tempo com umas botinhas para a sua filha, que até aí andava descalça.


Esta história diz muito sobre eles, mas mais sobre nós.


A aula prática foi na manhã de domingo, em Alfama, sujeita ao tema “um olhar diferente”. No fim de duzentos e dezoito cliques a minha selecção de cinco, para apresentar aos colegas e baseada no visionamento no LCD, foi a que se segue. Agora, depois de as ver ampliadas no ecrã, seria talvez outra.


Reflexo num Citroen DS, um boca-de-sapo, estacionado na Rua dos Remédios.


“Grafitti” em crioulo junto a uma laranjeira: no meu gueto manda quem lá está. Lembrou-me a do Marão, que mandam os que lá estão. Quando a maior parte dos “grafitti” não quer dizer nada, um que quer. Escadas entre a Rua dos Remédios e a Rua do Jardim do Tabaco.


Cores de Alfama em frente ao Beco dos Paus.


Um candeeiro, tradição de Alfama, na esquina da Rua de Santo Estêvão.


Nas vielas castiças de Alfama abrigam-se, ontem como hoje, dramas de solidão como o desta senhora, já visivelmente ébria, agarrada ao meio-dia a um litro de tinto, com o seu cãozinho preso ao banco. Uma vizinha passa e vai conversando, aceitando a situação como coisa habitual.

domingo, novembro 15, 2009

Ab equo ad asinum

The instrument (the telescreen, it was called) could be dimmed, but there was no way of shutting it off completely.


George Orwell, in “Nineteen eighty-four”


Para dar lustro a artigos e discursos, imprensa e políticos costumam referir-se ao cafarnaum em que vivemos como “sociedade da informação”. De facto, porque não? Ele é “Internet”, cem canais de cabo a acotovelar-se do ecrã para fora, “esse-eme-esses” a apitar ao minuto, caixas de correio electrónicas atulhadas com cinco mil mensagens para abrir quando um dia houver tempo, redes sociais que nos convidam para ser amigos delas, a TSF a lixar-nos o juízo logo pela manhã na fila de trânsito, a edição livreira a oferecer-se colorida nos hipermercados ao lado da banca dos espargos, os chatos dos “chats”, o tele-trabalho que nos persegue quando saímos do trabalho, música privada nos micro-auscultadores em passeios alucinados pela rua, jornais à borla nos semáforos e tudo o mais que vá passando pela cornadura do demo, que há séculos que não se divertia tanto.


O pessoal, com tanto brinquedo na mão, atrapalhou-se e fez confusão. Baralhou a “sociedade da informação” com a informação da sociedade e deduziu que andava informado. Erro grave. Anda muito menos informado que dantes, no tempo não tão longínquo das cabines telefónicas e da moeda para comprar o diário.


Define-se “sociedade de informação” como uma sociedade em que a produção, troca e manipulação de informação tem um peso económico, político e cultural relevante. E estamos claramente nessa. Uma parte muito importante do produto dos países mais abonados provém hoje de actividades económicas ligadas à informação. Os governantes e as oposições gerem a sua agenda em função de critérios informativos, que consequente e imediatamente se tornam critérios políticos. E em termos culturais, não haja dúvida sobre a relevância: ficar sem bateria no telemóvel gera hoje um pânico semelhante ao que teriam sentido nos tempos das Descobertas os náufragos agarrados a um madeiro quando percebiam que estavam a dez dias de nado da costa do Malabar.

No campo dos comportamentos, mudou-se muito e às vezes muito comicamente. Por exemplo, ainda temos no nosso vocabulário a expressão “andar a falar sozinho” para referir um tipo que não bate bem da bola. Mas hoje já não nos surpreendemos se o desconhecido que desce tranquilamente a avenida ao nosso lado de repente começar a debitar inanidades como se lhe tivesse partido um pistão no cerebelo. Provavelmente terá um auricular sem fios pendurado na orelha e o telelé no bolso e lá seguirá, ligeiramente errático, arriscando o atropelo nas passadeiras, falando por farrapos.


Outro efeito comportamental engraçado advém do sentimento de isolamento que estas traquitanas induzem. A malta pensa que está sozinha. Quando ouço um telefone a tocar numa mesa vizinha no restaurante, já sei que vou ouvir o que não me faz falta: de meras instruções para não esquecer de fazer a cama a picantes revelações sobre o modo como a cama foi desfeita. Tudo em voz muito alta, porque o ser humano se esquece que inventaram o microfone justamente para não ser preciso berrar.


Perante o cenário, apetece gozar com aquele anúncio da Zon Multimédia: “Lá em casa somos dois nhurros, três alienados e um jerico. Se podia viver sem esta bodega toda? Podia, mas não era a mesma a coisa.” De facto não era, porque informação e conhecimento não são a mesma coisa. Estar informado passa por perceber o que é central nas causas e nas consequências dos factos, por outras palavras por conhecer, por saber.


Ora o grande problema são dois. Por um lado, a transformação de informação em conhecimento não opera por milagre. Levar com a SIC Notícias no plasma da sala de espera do consultório, enquanto se aguarda pela broca do dentista, não nos informa só por si. Há que levantar o cu da cadeira, criticar a informação recebida, procurar outra se essa não servir, pensá-la. Por outro, a quantidade da informação hoje disponível parece inversamente proporcional à qualidade, que é muitas vezes miserável. Esta fraca valia da informação oferecida obriga a uma ainda maior iniciativa na procura da verdade.


A disponibilização maciça de informação, na “net” por exemplo, fomentou uma descida da nossa capacidade de selecção e, consequentemente, uma mais fácil divulgação do disparate. Antes, se eu quisesse saber qualquer coisa sobre plantio de couve-galega, procurava quem soubesse algo ou ia à cata de um livro sobre o tema e verificaria se o autor tinha algumas credenciais relevantes (ter canudo de agrónomo, por exemplo). Hoje farei uma pesquisa no “Google” e vou poder escolher entre 2,520 interessantes entradas contendo “plantio”+”couve”+”galega”. Naturalmente vou-me ficar pelas dez primeiras, que algum obscuro algoritmo binário decidiu por mim serem as mais relevantes. E poderei não ter a certeza se o que vem nesses “sites” é verdade ou mentira.


“Googlar” pode ser um exercício divertido, com resultados surpreendentes: a única visita que o “Mataspeak” recebeu de Angola foi de um senhor que queria saber – e “googlara” – “onde se vendem comprimidos de alfafa em Lisboa”. Acabou no meu texto “a porra da dieta” que contem, isoladamente, todas essas palavras. Ficou a conhecer as minhas angústias sobre os níveis de HDL mas continuou a zero sobre qual a botica alfacinha onde comprar tão salutares pílulas.

Para além de não corresponder sempre ao que nos interessa, a maioria da informação da “Internet” não presta, pura e simplesmente. Há tempos li num blogue que acompanho uma notícia sobre casamentos organizados pelo Hamas entre guerrilheiros barbudos e meninas de sete, oito anos. Na fotografia lá estavam eles de fatinho e elas de vestido branco, numa variante pedófila das noivas de Santo António. Pesquisei na rede e noventa e muitos por cento dos resultados do “Google” corroboravam esta horrível versão. No entanto, uma pequena minoria de “sites” apresentava uma panorâmica diferente. Tratava-se de um casamento colectivo entre membros do Hamas e viúvas de guerrilheiros mortos na última invasão da Faixa de Gaza por Israel, todas para cima de vinte e cinco anos. As verdadeiras noivas estariam vestidas de negro, assistindo à cerimónia em lugar diferente dos homens e as miudinhas eram familiares dos noivos. Os poucos “sites” que assinalavam esta menos odiosa versão pertenciam a jornais ocidentais. Muitos destes citavam um repórter do canal britânico “Sky”, que assistira e filmara a cerimónia. Os restantes, que propalavam convictamente a má natureza dos árabes que violam criancinhas eram na sua maioria blogues ou comentários, em grande parte anónimos. Na “net”, o erro tem a vida fácil, ao coberto da impossibilidade de tudo verificar. Concluo que na “Internet” funciona a máxima de Goebbels: uma mentira mil vezes repetida torna-se uma verdade.


Isto também ocorre porque as pessoas conferiram à “Internet” uma autoridade que ela não tem. Num dos meus primeiros “posts” mandei uns bitates sobre uma pintura de Brueghel, o Velho. Para minha surpresa, esse texto está no “site” de uma escola secundária, posto lá por uma professora de História, para proveito dos seus alunos. Muito me honra, mas sou tão especialista em pintura flamenga como em alinhar calçada portuguesa. Não teria sido melhor ir à biblioteca buscar um livro de história da arte escrito por alguém que percebesse?


Umberto Eco, no seu livro “A passo de caranguejo”, explica esta apetência por aceitar cegamente tudo o que sai de um “gadget” electrónico com o seguinte e curioso raciocínio. Segundo ele, a tecnologia ocupou nas sociedades modernas o espaço que a magia (ou a superstição) ocupava na Idade Média, ambas opondo-se, cada uma em seu momento, à ciência. A tecnologia (e antes a magia) proporcionariam visões fáceis e apetecíveis sobre a realidade. A ciência, o conhecimento, em todo o tempo implica esforço e é por isso mais chata.


Mas isto não pára aqui. Em paralelo, talvez porque a formação dos jornalistas e a sua preocupação com a verdade se tenha deteriorado, talvez porque as circunstâncias do mercado mediático a isso obriguem, a qualidade da informação prestada pelos meios ditos “sérios” (jornais de referência, telejornais) também vem fraquejando. Hoje, os jornalistas parecem orientar-se mais para um negócio de gestão de expectativas dos leitores e espectadores do que para uma honesta tentativa de aproximação à verdade. A notícia passou a ser desenhada em função do eco que vai encontrar nos destinatários. Por isso, cada vez é mais “sound byte” e “slogan” e menos conteúdo e raciocínio. Antes isto chamava-se sensacionalismo, mas temo que o termo mais correcto já seja fascismo mediático.


Poderia apresentar como exemplo o modo como o mito da gripe A se constrói diariamente na televisão: as pessoas querem medo, dê-se-lhes medo. Mas vou usar outro, ocorrido em 2008, quando se verificaram tumultos no Tibete reprimidos pelas autoridades chinesas. Na televisão e na maioria dos jornais a versão era “chineses maus reprimem tibetanos bons”. Citava-se a opinião do Dalai-Lama como notícia verdadeira e a versão contrária do governo chinês como notícia falsa confirmadora da notícia verdadeira. Isto é típico. No mercado ocidental da informação, a cotação do PC Chinês é baixa, na minha opinião de forma mais que merecida. Já o Dalai-Lama cota muito alto: representa um povo ocupado por tipos antipáticos que busca a auto-determinação, tem aquele ar avozinho, emana exotismo oriental. Está nitidamente na moda. Nunca ninguém lhe pergunta se instauraria no Tibete um regime teocrático como o que lá estava antes dos chineses ou se se submeteria a eleições correndo o risco de passar o poder para um não-iluminado. Também não interessa: o Dalai-Lama é um refúgio confortável para as boas consciências ocidentais. Ora a versão oficiosa parecia-me pouco convincente. Fui por isso à procura do que se teria passado. Consegui encontrar, em “sites” de jornais neozelandeses e australianos as versões de jornalistas que tinham testemunhado os acontecimentos “in loco”. Aparentemente, os tibetanos tinham orientado a sua fúria contra tudo o que apanhassem pela frente que fosse diferente: população chinesa local, minoria muçulmana, agredindo e inclusivamente matando. Por outras palavras: racismo puro e duro. Afinal, os tibetanos, quando em turba, comportam-se como os outros. Muito pouco conveniente face ao que as pessoas estariam à espera e por isso simplesmente silenciado pelos “media” que julgamos muito livres.

Neste mundo mais de ruído que de verdadeira informação, que fazer então? Desconectar-se da rede, lançar o telemóvel pela janela, ir morar para uma cova nas serranias? Não. As tecnologias de informação são o nosso presente e o nosso futuro. São ferramentas utilíssimas de trabalho que podem promover riqueza, gerar conforto, fomentar arte e salvar vidas. Temos simplesmente que perceber que não lhes devemos mais consideração que a um serrote ou uma chave-inglesa. E que a luxuriante era de informação abundante e disponível ao toque de um dedo não nos alivia da tarefa de pensar e procurar a verdade. Pelo contrário. Neste admirável mundo novo, podemos ser mais capazes mas também mais facilmente seremos manipulados se nos pusermos a jeito. Por isso temos para com nós próprios uma obrigação de ser mais críticos, de procurar mais, de pensar mais, de ler mais, de estudar mais. Em suma, de agir mais. De ser mais exigentes. Senão, andaremos de cavalo para burro mais depressa que julgaríamos possível.


Tive um professor no Técnico que nunca usava a palavra “computador”. Dizia-nos: “agora, é só usar a máquina estúpida”. Lição verdadeira e magistral: por muito sofisticada e glamorosa que pareça, a máquina tem que ser estúpida e nós temos que ser inteligentes.


E, de vez em quando, desligar tudo e passear de mão dada à beira-mar.


sexta-feira, outubro 30, 2009

Um dia numa vida

I read the news today, oh boy


The Beatles, in “A day in a life”


Pela manhã, entrando no prédio onde trabalho e uma colega vestida de negro saindo. A um velório: uma amiga a quem morrera o filho, vinte e oito anos, assaltado numa caixa de Multibanco, projectado ao chão, três dias de coma e um fim inglório logo a começar o meu dia.


Subo ao meu piso e sobre uma mesa encontro um DN. Na capa, ilustrando o atentado da véspera em Peshawar que matara uma centena de pessoas, uma fotografia de uma das crianças vitimadas. Um homem carregava o pequeno corpo alquebrado, um homem velho de ar atarantado, não sei se pai, se parente, se apenas um gajo perdido no meio da confusão a quem tocara naquele dia sobreviver para carregar um miúdo morto nos braços. Pensei mostrar aqui essa imagem mas não a encontrei na “net”. Provavelmente ainda bem.


Na caixa ao lado, noticia-se a morte da primeira criança portuguesa vítima da gripe da moda, trágica e involuntária vedeta por uns dias: se saudável ou já doente, se assistida a destempo ou não, se e se e se… Se ao menos interessasse… Penso: não se estilhaçou já o sentido disto tudo, não se rasgou já o universo ao meio? Vezes e vezes sem conta por esse planeta fora e ainda são só nove e tal da manhã.


Olho pela janela. Na Rotunda, vistos de cima, os carros circulam concêntricos num simulacro de ordem. O frenesim do trânsito chega coado pelo vidro e pelos oito andares de altura. À minha volta gente afadiga-se, circulando de papéis na mão ou teclando metodicamente, olhando para um ecrã. Algures na memória de um computador longínquo, acumularam-se “bits” importantes que me estavam ao que parece destinados. Respondo a essas mensagens. A propósito de uma, falo ao telefone em “portunhol”. De outra, calculo uns números. Outra ainda, preparo uma reunião. Penso: curioso como a caixa de correio electrónica me chefia mais do que as minhas chefias.


Durante estas tarefas continuo assombrado pelos fantasmas sem cara dos três rapazes. Em momentos assim sinto-me grato por ser ateu. Sempre é mais fácil aceitar que o mundo se construiu ao acaso, estúpido e caótico, como uma cidade de castelos de cartas que se desmoronam com um sopro mas em que vivem pessoas que talvez ilogicamente desenvolveram uma aspiração pela felicidade. Penso: o que deve ser mesmo insuportável, dolorosamente insuportável, é encaixar os acontecimentos da manhã nos conceitos de omnipotência, bondade superlativa e sei lá mais o quê de um criador qualquer. Só por masoquismo.


Saio para a minha reunião, subindo a pé a Fontes Pereira de Melo. Penso: hoje estou vivo e bem e quem eu amo também e devo estar grato por um dia assim. Por cada dia assim. Por não ter nascido em Peshawar e por não me deslocar ao mercado para morrer esfacelado ou carregar um morto nos braços, correndo como um louco, salpicado de sangue e carne. Por ter um almoço à minha espera antes da reunião, que pagarei com um cartão de plástico e não com anos de vida. Por viajar para o estrangeiro na TAP e não nos caminhões de caixa fechada dos engajadores. Por ser razoável esperar que os meus filhos, já entradotes, me verão um dia partir com o sentimento de que foi porreiro.


Tenho a minha reunião, numa mesa comprida demais. Parecemos formigas num pau de gelado. Corre razoavelmente. Saio para dar uma aula. Corre bem: vejo caras interessadas, ao princípio inquisitivas, depois serenas. De vez em quando um riso abafado, o riso dos vinte anos. Sinto-me útil pela primeira vez no dia. Talvez mesmo na semana. Regresso ao trabalho a pé. Cruzo-me com muita gente. Penso: estatisticamente, todas jantarão hoje, nenhuma morrerá de malária, a maioria tomará um banho de mar no verão ou entrará num café num dia frio do próximo Inverno para gozar uma bica quentinha; também estatisticamente, umas quantas andarão a ansiolíticos, procurando a infelicidade ao virar de cada esquina de Lisboa. Para tal, mais fácil em Peshawar. As pessoas são estranhas, cantava o estranho Jim Morrisson.


Volto para casa. Cruzo-me com o vizinho de cima. Um tipo óptimo, que não dispensa um sorriso e um bacalhau, apesar de não sabermos bem o nome um do outro. Que aproveita os seis pisos de viagem do elevador para falar em vez de olhar para os pés ou para o tecto.


Durante o jantar, assisto a Mário Crespo a entrevistar António Lobo Antunes. Contrariamente a Saramago, que está mumificado, Lobo Antunes está velho, optimamente velho. Com uma humanidade de eleito, fala como escreve. Diz a frase que vale o dia: “Tenho que viver com os meus amigos que já morreram. É uma responsabilidade fazer com que eles vivam dentro de mim com dignidade, com a mesma dignidade com que viveram fora”. Mais ou menos isto. Penso: no meu pai. Comovo-me um pouco, mirando os restos de salada que ajardinam o fundo do prato.


Dou uma volta pela casa. Um dos rapazes lê Vítor Hugo, resignado, pressionado pela data de um teste, iminente. Abençoados testes que velam pela vitória de Hugo sobre Horatio Caine, que à mesma hora ajeita os óculos escuros após mais um crime desvendado no AXN.


Sento-me ao computador, coloco os auscultadores, oiço o “Sticky Fingers” dos Stones, escrevo este estado de alma. A dado momento, no “iPod”, Mick Jagger canta o “I got the blues”. Comovo-me outra vez, desta vez com direito a lágrima ao canto do olho e tudo.


Penso: o vizinho de cima, Lobo Antunes, Mick Jagger. Nestes tempos pouco bíblicos, os anjos andam à paisana.

sábado, outubro 17, 2009

Vidas difíceis

Hoje, caiu-me no meio dos megabaites da caixa de correio uma oferta de emprego. Assistente administrativa, liceu feito, inglês e espanhol davam jeito. Dinamismo e forte sentido de responsabilidade. Não sabia que o sentido de responsabilidade se podia graduar.


Claro, o dinamismo! Qualquer anúncio de trabalho exige dinamismo, nestes dias “stressados” em que por assim dizer vivemos. Nem que seja para faroleiro ou sentinela no palácio de Buckingham. Na realidade, a palavra dinamismo está lá para duas coisas: lembrar ao candidato que é para bulir, por pouco que paguem, e dar da empresa uma imagem mundana. Uma empresa que não exija dinamismo deve sentir-se atacanhada. Como se não tivesse “Internet” ou máquina de café na copa. Pedir dinamismo faz cóceguinhas ao ego corporativo.


Continuando, oferecia a fartura de cento e quarenta mocas brutas, o vezeiro subsídio para galão e croquete às treze e (parte melhor) a integração numa empresa sólida. Nestas coisas dos empregos, convém às empresas reclamar-se da solidez. A solidez duma companhia é como a frescura do peixe. Se não constar, é que nem vale a pena. Então porquê oferecê-la como se fosse parte do vencimento?


Requeriam currículo e foto. Como quem diz: se ostentares cara de garoupa, nem mandes os papéis. Adicionalmente, como se vê pelo a no fim de administrativa, não se supõem rapazes para o lugar. Gajas girinhas, portanto. Podiam pôr por extenso. Facilitava a vida a toda a gente.


Exigiam-se doze anos de escola mas não mais de quarenta de existência. Talvez por ser quarentão, este último género de requisitos irrita-me. Pensem melhor. O que diriam de um anúncio de emprego que, numa linha, explicitasse “religião católica ou equivalente” ou “baixo teor de melanina na cútis” ou “orientação sexual certinha” ou ainda “anti-comunismo primário exigido”. Para além de anti-constitucional, ficava com um ar estranho, não era? Então, por que carga de água deveríamos engolir sem partir tudo limites de idade deste calibre idiota? Alguém me explica porque se dão as empresas ao direito de alardear que não vão aceitar empregar pessoas que não se encontrem no primeiro terço do seu percurso profissional?


A resposta é, como na anedota do cão contorcionista, “porque podem”. Porque as deixam. Porque não têm medo. Dizia Patton, sobre os seus soldados, “I only hope to God they never lose their fear of me”. Quando as empresas perderam o medo de infringir os limites da decência é sinal que não andamos muito bem comandados.


Nesta mesma linha de constatações, suicidou-se anteontem o vigésimo quinto trabalhador da France Telecom, empresa que introduziu a lixação periódica da vida pessoal como método de gestão de recursos humanos. Vinte e cinco cadáveres depois, vi no telejornal o presidente da companhia, Didier Lombard para vergonha do seu nome, a tartamudear para os microfones, branquinho de medo de perder o lugar como aconteceu com o seu vice-presidente, que manifestamente teve que pôr a cabeça no cepo para acalmar o ambiente. Mas pelo menos este já está com medo. Sempre é um começo.


Não creio, mas se calhar sou ingénuo, que as vidas desses homens que protestaram com a corda na garganta ou a lâmina nos pulsos valham o aumento dos lucros de fim de ano, se por acaso os houve, o que duvido. Na realidade, a France Telecom até se viu obrigada a acrescentar à demonstração de resultados o custo com cem novos assalariados contratados para gerir o “stress”. Mais uns milhões de euros por ano, para abrirem os olhos: proveitosa política de gestão de pessoal.


Mas nem tudo é injustiça neste vale de lágrimas que calcorreamos. O tal Didier Lombard até podia ser um gestor bem posto e bem parecido e o cosmos pareceria desequilibrado, com o “yin” e o “yang” todos pendurados para o mesmo lado. Mas não. Por sorte, é um sapo, um fulano de ar nojento como os lodos industriais ou a papada do Alberto João, ainda por cima com a pesporrência do francês das “grandes écoles".


Desculpem lá a maledicência, mas o sacana não merece menos e hoje é – ou acabou de ser – sexta-feira à noite.

domingo, outubro 11, 2009

Beggar State Thief

Nesta semana, uma reportagem do telejornal no campo militar de Santa Margarida, por ocasião do dia da Defesa, prendeu a minha atenção. O meu avô paterno trabalhou em Santa Margarida, no pessoal civil. Pelos meus dez anos, mais coisa menos coisa, num dia solarengo de verão, levou-me consigo pela manhã para uma das mais memoráveis jornadas que tenho na lembrança. Viajámos num autocarro militar que recolhia pelas terras da vizinhança um misto de tropas e civis de boca bocejante e olhar ensonado. Lá chegados, confiou-me a um grupo de soldados, com os bigodes e as patilhas da época, para uma volta pelas instalações:


- Esteja descansado, senhor Mata, a malta cuida dele.


E assim cuidaram. Pendurei-me em cordas no campo de treinos, macaqueando a distância segura do chão, visitei o interior de blindados, carregando em tudo o que era botão e quase caí ao chão arrastado pelo peso de uma G3 que me atiraram para os braços magricelas, rindo-se:


- Então, pá! És homem ou não és homem?


Eu, ser, queria, mas nunca imaginei que uma metralhadora pesasse tanto. Uma manhã em cheio, mas o melhor estava para vir. Próximo da hora de almoço, antes de me devolverem ao meu avô que por essa altura carimbaria requisições numa secretária não muito distante, passámos nas camaratas onde cada um tinha, junto à cama, um cacifo metálico, cada cacifo com sua porta, cada porta forrada no interior de alto a baixo com fotografias de mulheres nuas.


Senti-me invadido por um aprumo marcial como até então não experimentara. Perante o meu ar basbaque, os magalas gozavam:


-Olhó gajo…

- Em Lisboa não vês tu disto, pá!

- Ó pá! Ainda não conhecias isto, pá?


Percebi pelas deixas que tinha que pôr uma expressão entendida e balbuciei um “já, já”, tão baixinho quanto mentiroso. Mas por muito indiferença que arvorasse, o rabo do meu olho não descolava dos recortes colados com fita-cola, tanto que tive que ser levado pelo braço até ao meu avô: “Vamos, pá, já chega!”


No regresso no autocarro, o meu avô ia inquirindo sobre a manhã:


- Então, gostaste? Viste tudo?

- Vi tudo, avô – respondi, a minha mente ainda fixada na porta de chapa dos cacifos.



Foi meio-distraído por estas memórias longínquas que assisti à peça sobre os treinos militares, as participações nas missões de paz no Kosovo ou no Afeganistão, as dificuldades orçamentais. Sobre esta última questão, a jornalista foi revelando algo que me deixou quase tão varado como, na altura, a visão das fotografias com que os soldados se consolavam da solidão do quartel. Para fazer face aos encargos financeiros, a unidade contava com os rendimentos de uns eucaliptos e de uns sobreiros que existem no seu perímetro, bem como de seis rebanhos de cabras que por ali vão pastar.


Se isto é verdade, estamos no grau zero de tudo e mais alguma coisa. Uma situação destas diz muito sobre o estado a que o Estado chegou.


Vendo pela vertente cómica: a continuar assim, a Academia Militar poderia ser integrada em Agronomia com as correspondentes sinergias. Um exército que apascenta cabras não precisa de aprender estratégia ou balística. Basta-lhe saber os básicos da ordenha. A militares que exploram sobreiros não interessam conceitos tácticos ou psicologia militar, desde que consigam extrair o corcho sem ferir a árvore. Podiam tentar o trigo: a tropa que alguns acham uma seca deve-se dar bem com culturas de sequeiro. Os pátios de armas darão excelentes eiras e os mancebos, em vez de treinados para andar à bulha, aprenderiam as técnicas da debulha. Consigo imaginar, daqui, novas patentes adaptadas aos novos tempos: primeiro-tenente pastor ou alferes-ceifeiro. A Armada, essa, podia dedicar-se à pesca. E a Força Aérea a puxar ao longo das praias, durante a época estival, bandeirolas anunciando concertos do Tony Carreira e saldos no Ikea, para garantir o pagamento do pré.


Mas olhando pelo lado sério, que é o que deve ser, temos a vertente trágica: este é apenas mais um exemplo da degenerescência que o Estado português vem sofrendo, asfixiado pela incapacidade de se reformar e por aquelas ideias idiotas que proclamam a morte e a maldade absolutas do Estado, absorvidas sem espírito crítico por políticos e periodistas, só porque outros lá fora dizem igual e porque cai bem com a gravata de seda.


O Estado tende hoje a ser mendigo ou ladrão. Por vezes pedincha, como quando vemos os bombeiros nos semáforos, de rifa em punho, batendo aos vidros dos condutores. Outras gama, como atestam certos aspectos de fascismo fiscal ou a caça à multa da EMEL ou as dívidas escabrosas a fornecedores. Noutras, simplesmente circunda a lei, como faz com os milhares de trabalhadores que o servem sem perspectivas e sem direitos, anos a fio a recibos verdes. Noutras ainda, pelos vistos, pastoreia gado caprino, o que sendo um labor honesto não será propriamente a sua vocação. Toda esta situação não é nem moral, nem saudável.


O Estado é um conceito complexo e multifacetado, em termos de ciência política, mas numa democracia não deixa de ser, ou de dever ser, uma emanação de todos nós, povo ou nação. Não é por isso moral que uma entidade que nos representa dê o primeiro exemplo de falcatrua. Sempre que o fizer, será um convite ao fartar da vilanagem.


Como dizia, não é também saudável: um Estado fraco acaba por gerar um “nós” fraco. Não quero com isto dizer que o Estado tenha que ser prepotente ou intrusivo. Existe um espaço para ele e outro para o indivíduo. Um Estado excessivo, seja soviético ou populista, fascista ou teocrático, é sempre uma emenda muito pior do que o soneto. O Estado não tem por exemplo que se meter na esfera moral individual, nem no da iniciativa económica privada. O espaço do Estado é o das funções que só colectivamente se garantem e se justificam: a defesa da segurança será uma delas, a salvaguarda dos mais desmunidos será outra, a vigilância sobre o respeito dos direitos básicos de todos, outra ainda. O espaço que um Estado fraco não ocupa rapidamente se vê preenchido por outras estruturas, muitas vezes com a pecha de não serem eleitas. E quando menos damos por isso, a regra passa a chamar-se “lei do mais forte”.


Claro que haverá aqueles que defenderão, sobranceiros, o cada um por si e ganirão que o Estado atrapalha muito. Mas, enfim, ser civilizado não é congénito. É uma decisão reflectida que uns adoptam, outros não.


Obviamente, todos os Estados possuem defeitos, porque são homens que os fazem, e anacronismos, porque os tempos mudam. Precisam, como certas casas, de permanentes melhorias. Mas é melhor fazê-las do que morar na rua, à mercê da intempérie. Que o digam os milhões com contas em bancos a quem os Estados recentemente safaram a pele.


Em Portugal, as mudanças que o Estado necessita assustam pelo volume. Nalguns casos, só mandando abaixo para construir de novo. Muitas regras básicas de gestão deverão mudar. Só para citar duas, uma simpática e outra não, deveria ser muito mais fácil premiar o mérito e despedir aqueles que abusam descaradamente, que ainda são uns quantos.


Escolhas terão que ser feitas: devemos discutir que dimensão queremos para as nossas forças armadas, que tipo de serviço devem prestar, etc. Podemos até chegar à conclusão que não as queremos de todo e entregar as chaves da nossa defesa no palácio da Moncloa (o que eu acharia um pouco arriscado). Mas tomada essa decisão, que os meios necessários sejam dedicados à sua implementação e que esta não esteja dependente do número de litros de leite que as cabras decidiram dar ou do preço do estere de eucalipto.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Exposição fotográfica - Edição especial Roma - Às compras!

L'embarras du choix.

Uma armadura de guarda suiço pode sempre ser útil, em qualquer lar!

Tirada numa Sportzone? Não: numa loja de lembranças religiosas, na Via di Porta Angelica. Pois...

O verdadeiro mercado negro de malas Louis Vuitton, D&G, etc...

Venda de material refundido dos tempos da guerra fria.

Sob a foice e o martelo, vai de tudo: Lenine, Estaline, Obama, Eisenhower, Mussolini e uma loura não identificada.

Carnaval de Veneza a quinze euros.

Vendedor de castanhas na Piazza Navona.

Momento da saída dos estúdios de José Sócrates e Manuela Ferreira Leite após o debate que... Não! Enganei-me: loja de brinquedos na Piazza Navona.

Manifestação de luvas fascistas no aeroporto de Fiumicino.

Os Beckham a vender roupa interior em Fiumicino.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Exposição fotográfica - Edição especial Roma - Vaticano

À entrada da basílica de São Pedro, recorda-se aos homens que não podem entrar de fato-de-banho de alças.

Detalhe da estatuária da praça de São Pedro.

Fonte na praça de São Pedro.

Japonês entalado na cúpula da basílica.

Praça da cidade leonina, mesmo contígua à praça de São Pedro. Temos o Bento, temos a praça, mas nem assim há milagres!

Castelo de Santo Ângelo, versão postal.

Membro dos Diabos Vermelhos, em tarefa condigna com as suas capacidades.

Exposição fotográfica - Edição especial Roma - Roma papal

Esperando o papa: clube motoqueiro na Praça de S. Pedro. Quando aquele, dirigindo-se "urbi et orbi" lhes agradeceu, retribuíram com ruidosas aceleradelas que encheram a praça. O motor de explosão continua a ser uma dádiva divina.

Esperando o papa: Guarda suiço e turista norte-americano, trocando impressões sobre sítios para comprar roupa às riscas.

Esperando o papa: Pedro, o primeiro, assistindo e Bento, o último, rezando missa.

Esperando o papa: Nas lojinhas, bentinhos do Bento a dez euros. "Jesus entrou no Templo e começou a expulsar os que lá vendiam. E disse: "Está nas Escrituras: a minha casa será casa de orações. No entanto, vós fizestes dela um covil de ladrões"." Este São Lucas era cá um lírico...

Finalmente, o papa. Ou alguém com o mesmo "outfit".

Dentro da basílica, magnífica estátua de Eugenio Pacelli, "aka" Pio XII, bronze sobre mármore lampião.

Um papa, duas horas e quinhentos e vinte degraus depois, a papal praça desenhada por Bernini.