sexta-feira, dezembro 31, 2010

Feliz ano novo de 2009

O momento mais natalício de 2010 li-o num artigo do Público de 22 de Dezembro intitulado “Filha, a mãe está desempregada”. A matéria versava sobre como dizer aos filhos, de forma suave, que se foi parar ao olho da rua. Infelizmente tema de interesse, potencial ou real, para muitos portugueses.

Uma mãe, recém-despedida, contou sobre a reacção da sua filha pequena: “Ela primeiro ficou impávida, a olhar para mim. Mas quando me viu chorar começou logo: ‘Ó mãe, não chores, não faz mal. Se precisares de dinheiro, partimos o meu mealheiro. Vais ver que arranjas um emprego melhor.’”

Esta história pode ter mesmo ocorrido ou resultar apenas da imaginação da jornalista, mas possui aquela realidade intrínseca que qualquer um de nós, que tem ou teve crianças, aceita sem problemas que possa ser verdade. A frase desta criança é uma súmulazinha do verdadeiro espírito natalício, aquele que existia antes de haver filas para embrulhos nos corredores dos centros comerciais e filmes sobre o nazareno na têvê, com apóstolos todos louros e de olhos azuis. A frase desta criança contem amor, partilha, despojamento, alívio e esperança. E representa, tal como no original, um choque entre duas éticas. Antes, a de Cristo contra a dos Herodes, dos Pilatos, dos Caifás. Agora, a desta menina contra a prevalecente no mundo em que nasceu. À dela poderemos chamar, com razoável aproximação, “o Bem”; à última, também com pequena margem de erro, “o Mal”.

Porque hoje – e provavelmente dantes também – tendemos a esquecer-nos destes conceitos simples, o Bem e o Mal. O Natal celebra o nascimento de um homem cuja existência culmina, pela ressurreição, numa vitória exemplar do Bem sobre o Mal. Com o risco de parecer simplista, ou acreditamos que o universo não passa de um local onde partículas interagem sujeitas a regras descritíveis por fórmulas matemáticas ou, se quisermos algo mais, temos que introduzir conceitos de Bem e de Mal que dêem algum sentido às nossas existências. Eu não sou crente e até sei que sou um agregado de partículas aqui a teclar no computador, mas pertenço à segunda categoria.

O Bem e o Mal são noções variáveis, escorregadias, volúveis. Há muitos tons de cinzento para um só de branco e outro de preto. Mas tal não nos deve amedrontar: o sofrimento de uma criança, por exemplo, é uma manifestação do Mal, uma genuína dádiva de solidariedade, uma prova do Bem.

As sociedades justificam-se se servirem para maximizar o Bem e minorar o Mal. Ao longo da História verifica-se uma certa tendência favorável, pelo menos nalgumas geografias: as crianças morrem menos, os velhos vivem mais e melhor, há menos guerras, menos pestes, menos fome na Europa dos nossos dias do que há cem, quinhentos, mil anos atrás. Claro que houve progressos e retrocessos, fracassos e sucessos, incoerências várias. Mas avançou-se.

Para avançar, há que olhar em frente e ter fé que melhor é possível, senão mesmo obrigatório. Foi preciso acreditar que havia terra para lá do mar, que a abóbada não cairia, que as asas sustentariam o voo, que inocular vírus de varíola bovina numa criança a podia salvar da varíola. Do mesmo modo, foi preciso acreditar que era possível acabar com a escravatura, com o analfabetismo, com os direitos divinos. Nalguns sítios e nalguma extensão, conseguiu-se.

Entramos no novo ano com o ânimo de náufragos numa tormenta. Tudo parece inevitável: a crise, a degenerescência, a vinda do FMI, a recessão, a miséria e tudo o mais. O sentimento é de impotência diante das “leis” do mercado, dos ditames dos recém-licenciados das agências de “rating”, da inevitabilidade da falência de uma sociedade mais solidária.

A crise que vivemos é uma crise de crença. Não posso aceitar como boa e incontornável uma sociedade em que a ganância seja a mola motora do seu funcionamento, assim sem mais. Adam Smith que me desculpe, mas sabe a pouco e parece obra do demo. Até porque a ganância é a mais vil das causas do Mal: pode ter alguma desculpa o desesperado que rouba para comer, o louco que mata por desvario, mas a ganância, a fria e cerebral ganância… Não é virtude sobre a qual se construa uma sociedade.

Não sei o quê, mas algo terá que ser feito, no futuro. Jenner também não sabia, quando cometeu a loucura improvável de inventar a vacina, mas fez alguma coisa. Terá que haver rasgo, decisão, força, conjunto. Aceitar que a criança do início deste texto tem que sofrer porque é o que convém, situação que é a “conventional wisdom” dos nossos dias, representa um retrocesso civilizacional. E se estamos a andar para trás a única coisa que vos posso desejar é um feliz ano novo de 2009.

1 comentário:

durindana disse...

Carlos,
Muito boa crónica como é teu hábito. E muito a propósito no tempo.
O modo “suave” como aquela mãe informa a filha que está desempregada, faz-me recordar uma pessoa que trabalhando nos serviços sociais de uma Importante Empresa foi encarregada de informar uma senhora de que o marido tinha morrido num acidente de trabalho.
Bateu à porta e quando senhora atendeu e perguntou-lhe:
- A senhora é que é a viúva de J.B.?
- Não, não. Eu sou a mulher dele!
- Vai uma apostinha?

Nota à margem:
JB são as iniciais Justerini & Brooks.

Mais a sério:
Dizes que “vivemos uma crise de crença”
Mas não explicas qual o tipo de crença a que te referes.
Caramba, a crença deve ter um pai e uma mãe.
Não será qualquer deles o culpado? Ou ambos?

Para crer, preciso de um sinal.
Se ele viesse do Além faria como Clóvis (não pelas mesmas razões claro está).
Se viesse deste mundo, votava imediatamente no emissor.
Um grande abraço.
A.M.