segunda-feira, dezembro 29, 2008

O ermitério

Neste período natalício, em que minguam as notícias sérias, os telejornais entretêm-se a multiplicar pequenas e ingénuas peças sobre a quadra, como se uma professora primária lhes tivesse dado de castigo o dever de realizar uma redacção filmada subordinada ao tema “o Natal”. Os nossos repórteres de exteriores lá puxam pela cabeça e temos o natal das velhinhas do lar, a feitura do bolo-rei, os cantoneiros que trabalham na noite de consoada, etc., etc., etc.

A SIC, por sua vez, usou de imaginação e, na noite de vinte e quatro, apresenta-nos ao serão o natal de uma família alemã que vive em eremita algures na serra do Marvão, e que de vez em quando as televisões se comprazem a exibir num paralelo com o lobo da Peneda-Gerês e o lince da Malcata.

O pequeno clã teutónico, pai, mãe e ranchada de filhos, vive numa eco-casa de fabrico próprio, erigida com materiais reciclados e dotada de ventilação natural, também conhecida em certos anéis de periferia urbana pelo nome injusto de barraca. Cultiva umas cenas ali à volta, nas quais baseia um regime alimentar crudívoro. A câmara indiscreta não se poupou a primeiros planos sobre malgas cheias de caules de plantas rasteiras, com pinta de dieta de tempo de penúria, mas hoje muito em voga nos restaurantes finos franceses sob o nome de guerra de “crudités”.

O patriarca, uma versão engelhada e passada por lixívia do Roger Daltrey, lá vai dizendo num português bastante solto mas com uma inconfundível pronúncia germânica, que ali não se passa frio porque quem só come vegetais crus tem um sangue mais fluido. Passando rapidamente sobre o facto de uma coisa não parecer ter nada a ver com a outra, não conseguimos deixar de imaginar este senhor a chegar a esta finisterra lá para os finais dos anos setenta, num Volkswagen torradeira a cair de podre e com emblemas “atomkraft nein danke”, com a sua companheira de túnica indiana e sandálias de cabedal, e a iniciar naquele local perdido uma nova vida longe dos malefícios da civilização, cujo mais próximo representante, uma mercearia em Castelo de Vide, distaria uma prudente dúzia de quilómetros.

Num tom justiceiro, a SIC faz-nos notar que, este Natal, o senhor tem uma preocupação adicional. Recebeu uma carta da Segurança Social que lhe quer fazer umas perguntas sobre os seus filhos. O homem lamenta-se que se metam na vida dele e inquieta-se que lhe queiram vacinar as crianças, o que “vai ter” consequências graves e imediatas para a saúde delas. Em nota de rodapé a finalizar a peça, a SIC ventila a ameaça, proferida pelo patriarca, de pegar nos tarecos e na prole e marchar-se para a Guiné-Bissau, onde julgará – a meu ver mal – que lhe vão chatear menos a corneta. Ficamos incomodados.

Não vou dizer que esta reportagem fosse apologética do modo de vida deste senhor, porque seria exagero afirmá-lo, mas o tom, por vezes, foi um pouco “burocracia cega que ataca a liberdade individual e o direito à diferença do coitado do alemão que come legumes crus”. E, como é costume numa peça jornalística, passou ao lado do essencial.

E o que é essencial? Vejamos: este senhor tem todo o direito a gozar a liberdade de apanhar frio à noite e de papar agrião a toda a hora. Que lhe faça bom proveito. Mesmo achando eu que a visão deste homem nasce do medo e da ignorância e que é profunda e caracteristicamente reaccionária, detestaria viver numa sociedade onde ele não tivesse o espaço para a praticar. Tem até o direito de afirmar, com a segurança de um catedrático de Imunologia, que as vacinas causam danos imediatos e graves nas crianças que as tomam. Defendo este seu direito, como defendo o meu de considerar o homem um perfeito idiota, desavergonhadamente a falar do que não sabe. Há sempre doutores astrónomos da mula russa a garantir que a Terra é plana, mas desde que não interfiram com o bem-estar de terceiros, não me incomoda que o façam.

Só que os direitos do alemão acabam onde começam os direitos dos filhos do alemão. E aqui já me parece bem que a sociedade inquira se certos mínimos estão a ser cumpridos. Porque os filhos têm que estar ao abrigo da inépcia dos pais. Vejamos o caso das vacinas. Eu, por exemplo, não tenho a vacina do tétano em dia. Cada vez que vou ao médico ele recomenda-me que a tome e cada vez que me corto arrependo-me de não o ter feito ainda. Sei que não me fazia mal nenhum, antes pelo contrário. Mas o Estado não anda atrás de mim de seringa na mão, e a meu ver bem, porque sendo eu maior, embora no caso em apreço não-vacinado, se quero ser parvo é cá comigo. Conheço as vantagens e os riscos, estou informado, tenho capacidade de decisão, eu que me apresente no posto médico de manga arregaçada, se quiser.


Mas com as crianças passa-se de modo diferente. Não têm nem a consciência informada das vantagens e desvantagens que lhes permita tomar uma decisão destas, nem os meios materiais para a levar a cabo. Por isso, nesta como noutras questões, alguém tem que tomar decisões por elas, na defesa do que se espera ser o melhor entendimento possível dos direitos e interesses delas, crianças. Em geral, a nossa sociedade encarrega os pais deste papel, e verifica-se que acertadamente. Com muitas variantes no modo de o fazer, com mais rigidez ou mais tolerância, com mais carinho ou mais frieza, com maior ou menor desafogo financeiro, os pais, movidos por esse sentimento tão intrinsecamente humano, o amor para com os filhos, lá levam a carta a Garcia.

Mas existem excepções e por vezes há parentes que, de forma mais ou menos evidente, falham nas suas obrigações. Antigamente, quando tal ocorria, a sociedade resignava-se. Se alguém arrebentava com os filhos à pancada de grosso que estava ou não os enviava à escola: coitadinhos, tinham nascido em mau berço. Entre pai e filho, como entre marido e mulher, não se metia a colher. Hoje, felizmente, a sociedade tem evoluído para uma atitude de firme reprovação destes casos. Já se aceita pacificamente que o Estado intervenha quando os direitos da criança à vida, à saúde ou à educação se encontram em risco sério. Não compreenderíamos, aliás, que não o fizesse e por isso vemos indignação para com as instituições quando uma criança morre vítima de maus-tratos dos pais porque a Segurança Social não a retirou atempadamente aos progenitores.

Lá no alemão do Marvão, de uma forma subtil mas evidente, é o direito dos filhos à vida e à saúde que está essencialmente em causa. Se demonstração fosse necessária, podia-se pegar nos gráficos de evolução da mortalidade infantil nos últimos cem anos e ver o papel que a vacinação teve no aspecto descendente da curva. Por isto, do mesmo modo que nos pareceria a todos intolerável que o homem desancasse as crianças ou as tivesse à fome, devemos também indignarmo-nos que as crianças corram riscos desnecessários por, por opção pessoal dos pais, não estarem vacinadas. Acho pois bem que a Segurança Social lhes faça umas perguntas, que promova as vacinações que forem necessárias e, já agora, que verifique se essa pequenada tem as letras que devia ter.

terça-feira, dezembro 09, 2008

Exposição fotográfica (VII)

Passeio fotográfico matinal por Alfama, com um amigo, em seis de Abril deste ano. Canon 400D.

Escadinhas de São Miguel, com as velhinhas a espreitar a que vinham os fotógrafos.


São Vicente, o próprio do largo de fora, ao sol do meio-dia.

Oficinas de São José.



Beco da Caridade. Sol à espreita e flores nos vasos.

Casas restauradas por trás do Terreiro do Trigo.

domingo, dezembro 07, 2008

Biénio Mataspeak

Quase que, distraidamente, ia deixando passar em claro a efeméride: Mataspeak soprou duas velinhas a três de Dezembro.

Chegou ao octogésimo “post”, quase mantendo no segundo a média do primeiro ano. Para este número contribuiu uma novidade: a exposição fotográfica, originalmente pensada para encher chouriços numa fase de menor inspiração, mas que acabou por arregalar a vista à clientela e ter algum “feed-back” favorável, do tipo “tão boazinhas”.

A numerosa equipa que concebe, produz e leva até vós o Mataspeak juntou-se numa pequena festa privada, no restaurante Lux . Foram vários os colegas que quiseram contribuir. Na foto, o momento em que a Luísinha da contabilidade saiu do bolo surpresa.


Mataspeak vai continuar mais um ano. O esquema de cores, segundo a DECO a principal causa das 3.275.339 reclamações recebidas até à data naquela instituição de protecção do consumidor, vai-se manter tal e qual: letra branca sobre fundo preto, com títulos a verde. Aos clientes reclamantes, recomendo a Multi-ópticas.

quinta-feira, novembro 27, 2008

Os axiomas

Este “post” retira alguma inspiração da monumental calinada da Dra. Ferreira Leite sobre uma hipotética suspensão semestral da democracia, em prol de “arrumar a casa”, mas mais ainda de certas frases ouvidas a amigos, um pouco suspirantes por autoridade.


A boa democracia é como a boa matemática. Desenvolve-se sempre em coerência com alguns princípios básicos, que não conseguimos provar, mas que tomamos como verdadeiros. Na matemática, chamam-se axiomas. Com meia-dúzia deles, deduzem-se inúmeros teoremas, páginas e páginas de resultados, grossos volumes de conhecimento. Mas se, em qualquer momento, o matemático verificar que uma das suas deduções é incoerente com qualquer um dos axiomas, sabe de ciência certa que se equivocou: beliscar a autoridade dos axiomas implica a ruína de todo o saber que deles emana. Este é, aliás, um poderoso e muito usado método de prova. Se uma hipótese for coerente com todos os axiomas, poderá eventualmente estar certa. Se contrariar nem que seja, apenas, um deles, está errada de certeza.

Na matemática, os axiomas são quase sempre evidentes, tão evidentes que nos parece estranho como poderiam sequer ser postos em causa. Por exemplo, se quisermos definir o conjunto dos números reais, o conjunto infinito de números que para nós é o mais intuitivo, e com eles elaborar muitos resultados de grande utilidade para construir aviões ou produzir electricidade, temos primeiro que estabelecer como axioma que um é diferente de zero – na linguagem matemática, que os elementos neutros da adição e da multiplicação são distintos. Sem avançar à cabeça esta proposição tão singela, que um não é igual a zero, não construiríamos os números reais e as contas de somar e multiplicar tais como as conhecemos. Construiríamos outra coisa qualquer, se calhar mais exótica, mas porventura menos útil.

A Democracia, com dê grande, vive igualmente dos seus axiomas: que todos nascemos iguais em dignidade e direitos; que temos direito à vida e à segurança; que temos direito à liberdade, de pensamento, de opinião, de religião, de associação; que a tortura e os castigos cruéis, inumanos e degradantes são pura e simplesmente inaceitáveis; que todos somos iguais diante da lei; que todos temos o direito a uma defesa, se acusados, e somos presumidos inocentes até prova em contrário estabelecida para além de dúvida razoável; que todos temos direito de participação na definição do modo de funcionamento da nossa sociedade; que os poderes legislativo, executivo e judicial que resultam dessa definição devem ser independentes e mutuamente controlados; e mais alguns …

Tal como os seus pares matemáticos, estes axiomas também nos parecem, à maioria de nós, de simples bom senso. Por alguma razão terá sido que, ao referir-se a vários deles, as cinquenta e seis pessoas que, em quatro de Julho de 1776, assinaram a declaração de independência dos treze estados unidos da América inscreveram nela a seguinte frase: “We hold these truths to be self evident”. “Auto-evidente” parece-me uma feliz adjectivação.

Sobre estes axiomas, as sociedades democráticas estruturam-se e criam hábitos, desenham organizações e desenvolvem processos, tudo regido por vastos conjuntos de legislação, muitas vezes confusa ou hermética. Tal como na matemática, se o resultado de uma lei ou de uma acção qualquer de um qualquer poder contrariar um dos axiomas, nunca será este último que estará errado: o que tem que ser descartado é essa lei ou acção. Se um decreto interferir com a liberdade de opinião, ou permitir uma forma de tortura, ou violar a presunção de inocência, é esse decreto que atenta contra a Democracia. Não são, evidentemente, a liberdade de opinião, o horror à tortura ou a presunção de inocência que põem em causa a Democracia.

Por isso, quando o verboso raciocínio de um político, ou o nosso próprio, nos levar a uma posição incompatível com um dos axiomas, não incorramos no pecado de orgulho de proclamar que estamos certos e os axiomas errados. Aceitemos candidamente o nosso engano, como o matemático tem que fazer quando o teorema em que tanto investiu se virou contra as verdades básicas que construíram o universo em que ele trabalha.


Por vezes, a complexidade, a imperfeição, a incerteza da vida levam-nos a pensar que os valores mais profundos da Democracia talvez pudessem ser aqui e ali contornados, adaptados, suspensos ou amolecidos. O facto de a nossa existência ser, por essência, arriscada pode fazer com que, em tempos mais cinzentos, nos pareça mais segura a tentação totalitária. Mas não esqueçamos, então, as palavras de Benjamin Franklin, um dos cinquenta e seis acima referidos: aquele que aceita pôr a sua segurança acima da sua liberdade, não merece nem uma, nem outra. E, como a História demonstra, acaba por perder as duas.

domingo, novembro 16, 2008

McObama

Until the colour of a man's skin
Is of no more significance than the colour of his eyes
Me say war.

Bob Marley, in “War”

Ontem, numa tabacaria do aeroporto de Barajas, os escaparates tinham uma só cara, a de Barack Obama, reproduzida até ao enjoo em grandes planos de papel acetinado. A imprensa mundial rendia-se, mais à evidência do que ao homem: século e meio depois da guerra de secessão ter acabado com a escravatura teórica, meio século após a luta de Luther King contra o “apartheid” sulista, Obama vai sentar o seu “black ass” na cadeira de “presidente do mundo”, como bem titulava o “Der Spiegel”.

Para o bem e para o mal, a elevada taxa de melanina na epiderme de Obama acabou por ser factor dos mais relevantes nas análises pré e pós-eleitorais. A nova cor do presidente valeu por si só como mensagem de mudança num país e num mundo bastante necessitados de mudança. Mas não foi muito notado, por exemplo, que os americanos tivessem eleito um doutorado em Direito por Harvard, facto para mim com algum simbolismo ao fim de oito anos em que andaram pelas ruas da amargura, de Guantanamo ao edifício do Congresso, o primado da Lei e os direitos fundamentais que os pais fundadores tanto recomendaram.
Mas, já que falamos de cor de pele, seria bom que a eleição de um presidente negro no país mais poderoso do mundo servisse para normalizar o uso das palavras “preto” e “negro”, passando-se a poder usar preto (ou branco) como se faz com louro, moreno, alto ou magro: apenas como a descrição de uma característica física, sem mais.

Detesto aquelas expressões em teoria politicamente correctas, como “pessoa de cor” ou “idoso”, mas que, no seu âmago, são essencialmente depreciativas, muito mais do que dizer, com naturalidade, preto ou velho. Que são aquilo que as pessoas são. E sendo-o, ou o seu contrário, podem ser bons ou maus seres humanos, porque o físico nada tem a ver com o moral. A expressão “de cor” aplicada a um negro nem faz sentido: fisicamente, preto é ausência de cor e branco a saturação de cor. Só que este tipo de eufemismos invade a nossa sociedade e é inculcado às nossas crianças. Lembro-me de uma vez que assistia na televisão a um jogo de futebol, ao lado do meu filho mais novo, que teria uns quatro ou cinco anos. A dado momento, a câmara focou-se na cara espantada de um jogador de um negro retinto, o suor brilhando sob os holofotes, que acabara de ver o cartão vermelho. O meu miúdo mirou para o ecrã e soltou um “não gosto deste tipo”. Pareceu-me sentir ali um racismo latente e repreendi-o: “não se diz isso só por o homem ser preto”. Do fundo do sofá, ele lançou-me um olhar redondo e esdrúxulo, e largou, num tom seco de censura: “não se diz preto, diz-se senhor de cor”. E juro que não fui eu que lhe ensinei isto.

Dito isto, fiquei satisfeito que o sistema político americano tivesse conseguido gerar, desta vez, dois candidatos interessantes. É bom que as democracias fomentem o aparecimento dos melhores. Não exactamente igual ao que temos tido em Portugal, onde o que tem aparecido mina a confiança do pessoal no sistema. Sobre este tema do papel de elites meritocráticas num sistema democrático, leia-se o interessante “O futuro da liberdade”, de Fareed Zakaria, editor de política da revista Newsweek.

O nível de ambos viu-se nos discursos da noite eleitoral. Obama teve um discurso envolvente, carismático, empenhado, grandiloquente, entendendo perfeitamente o valor dos símbolos e a historicidade do momento. Sente-se que é um grande político e que poderá fazer, se se rodear da gente certa, uma boa presidência, de que o mundo anda bem necessitado. Mas gostei mais do discurso de McCain, de uma hombridade, de um cavalheirismo e de um patriotismo positivo como raramente ouvi. A democracia também se faz da aceitação da derrota – esta é mesmo uma das características que a diferencia de outros regimes – e serve-se um país ganhando ou perdendo. McCain mostrou ser um senhor, que não merecia as manadas de básicos que constituem parte significativa do eleitorado republicano e de que Sarah Palin constitui acabado exemplo.

Uma última palavra, de apreço para os americanos e para a lição de abertura que deram à Europa. Parece, ainda hoje, impossível que um alemão de origem turca seja eleito chanceler na Alemanha, ou que um português filho de angolanos se torne cá presidente, ou que um tipo chamado Ahmed chegue ao Eliseu. Mas os Estados Unidos, uma sociedade que eu considero ainda muito imperfeita e longe de ser a “maior democracia do mundo”, como alguns dizem, têm uma casa dos representantes e um senado com filhos de cubanos, de portugueses, de coreanos, brancos, negros, amarelos, etc. E um presidente de uma cor que ainda há dois anos se diria ser impossível.

sábado, novembro 08, 2008

Exposição fotográfica (VI)

Tiradas durante um fim-de-semana de verão no final de Outubro, em Tavira, com a Canon 400D.



Pousada do Convento da Graça. Rock am Ring.


Pousada do Convento da Graça. O cubo.

Pousada do Convento da Graça. O cê cedilhado.
Praia do Barril. Auto-retrato.

Praia do Barril. A bóia.

O dia do colaborador

Há dias, durante uma conferência sobre aquelas marmeladas de redução de custos que consultores apinocados vendem às incautas companhias e que me teve afretado uma manhã inteira, assisti à seguinte pérola: tendo um dos oradores referido a participação dos trabalhadores numa determinada metodologia, a moderadora, como quem corrige um garoto de escola, interrompeu-o para lhe dizer “nós aqui gostamos mais do termo colaboradores”.

Passemos sobre a atenuante da interruptora não me ter parecido de uma inteligência faiscante. Na realidade, tratava-se de uma daquelas meninas dos departamentos de comunicação. Já perceberam, com certeza, aquilo que eu quero dizer. E limitou-se, por isso, a papaguear o que uma certa “conventional wisdom” cá da paróquia vem propalando um pouco por todo lado, dos relatos dos telejornais aos discursos nas empresas: que ser colaborador é fino e, portanto, que ser trabalhador é grosso.

A utilização de eufemismos para referir quem trabalha não se limita aqui ao burgo. Dei uma volta na “internet” pelas páginas de grandes sociedades inglesas ou francesas e encontrei empregados, assalariados, recursos humanos e até – felizmente de forma mais rara que em Portugal – colaboradores. Trabalhadores não constavam. Aparentemente, ninguém anda a fazer nenhum por esse mundo fora.

Os termos “empregado” ou “assalariado”, ou o neutríssimo “recursos humanos”, ainda se engolem. Possuem, pelo menos, a desculpa da objectividade. De facto, os trabalhadores contam com um emprego e auferem um salário e são humanos na óptica da biologia e recursos na perspectiva da teoria económica. Pelo contrário, já a expressão “colaboradores” me horripila um bocadinho. E não apenas por me recordar, intuitivamente, o abaixamento e a bufaria característica dos regimes totalitários, de Vichy a Ceausescu. O primeiro sentido de colaborador no dicionário é “que ajuda outrem nas suas funções”. Quando, nos relatórios e contas das companhias, a administração agradece o empenho dos colaboradores, está no fundo a significar que o mérito é dela, que as outras centenas ou milhares apenas contribuíram com uma episódica ajuda. Apetece-me lembrar Brecht: “Mas foram os reis que carregaram as pedras?”

No moderno jargão dos “media” e da gestão, o pobre trabalhador tornou-se vocábulo sem cotação, que quase ganhou um sentido de excluído, daquele que está do lado errado da vida e do progresso e azar o dele. Nas notícias dos periódicos, são trabalhadores os que, surpreendidos, dão com o nariz na porta de uma fábrica nortenha que se deslocalizou. Nas soltas dos telejornais, trabalhador é o que se manifesta pela avenida, filmado em plano rasante, de bandeira e boné, enquadrado em sindicatos. Estes e não outros. Porque os outros são os tais que colaboram nas empresas, serenos nas suas qualificações e arrumadinhos nos seus fatos e gravatas, atrás dos “flat screen” cintilantes com que os amarram doze horas diárias, convictos de pertencerem a um admirável mundo novo no qual os primeiros não cabem e até atrapalham. Olham para estes com a sobranceria vaga com que se contemplam realidades tristes mas distantes, como a fome ou a guerra. E nesta alienação não se apercebem que formam um novo proletariado, alimentando com anos de vida uma máquina que os ultrapassa, por medo do mal maior do desemprego e de passar para o lado de lá de uma barreira que mentalmente lhes criaram.

Quando a palavra “trabalhador” ganha assim contornos pejorativos, estamos conversados em relação à ética do trabalho na nossa sociedade. Na educação que me deram, na casa como na escola, o trabalho afirmava-se como valor mais do que respeitável: uma obrigação para com os outros que nos promovia como seres humanos e que deveria ter duas formas de compensação, uma material e outra moral, associada à satisfação do cumprimento do dever. Qualquer trabalho, do mais “humilde” ao mais “sonante” possuía igual nobreza: um dos primeiros provérbios que ouvi foi o francês “il n’y a point de sôt métier”. Consequentemente, abominava-se a preguiça, essa sim uma vergonha pessoal e social. Tudo isto já o dizia Péricles, por outras palavras, no seu discurso aos atenienses, dois mil e quinhentos antes da moda dos colaboradores.

A dignidade do trabalho e a memória da construção dessa dignidade devem ser património de qualquer democracia que se tenha na devida conta. Ainda em Portugal uma pessoa podia ir presa por festejar o primeiro de Maio, já eu folgava nesse dia, cortesia da escola francesa que frequentava. Porque na França de De Gaulle se festejava o dia do trabalhador.

O primeiro de Maio tem curiosa origem num facto prosaico: era o primeiro dia do ano fiscal norte-americano, quando terminavam os contratos a prazo e por isso foi a data escolhida pelos sindicatos para iniciar, em 1884, uma luta pelas oito horas diárias. Este processo veio dar a origem a uma sequência de acontecimentos que terminaram com o enforcamento de cinco sindicalistas anarquistas, num dia de 1887 que ficou conhecido como “Black Friday”.

Três anos depois, em Paris, a Segunda Internacional decidiu escolher o primeiro de Maio para realizar manifestações pela imposição, agora na Europa, da tal jornada de oito horas, numa semana de quarenta e oito. As autoridades não deliraram com a medida: no dia um de Maio de 1891, durante a “Fusillade de Fourmies”, no norte de França, um destacamento militar dispara galhardamente sobre manifestantes desarmados. Nove mortos, um homem de trinta anos, dois rapazes de vinte, duas crianças de onze, quatro raparigas entre os dezassete e os vinte. Provavelmente, perigosos subversivos. A coisa não foi portanto fácil.

O dedicar de um dia feriado de homenagem ao trabalhador e à sua luta por melhores condições de vida é universal no mundo democrático. Nos Estados Unidos ocorre na primeira segunda de Setembro, o “Labor Day”, em homenagem aos ferroviários em greve que em 1894 enfrentaram doze mil tropas em Kensington, perto de Chicago. No Reino Unido e na Irlanda, vai na primeira segunda-feira de Maio, para proporcionar um fim-de-semana prolongado. Na antípoda australiana, com os seus bichos únicos, têm uma data diferente consoante a província. Na Europa, na América do Sul e na Ásia, serve o primeiro de Maio. Até a Santa Sé institui desde 1955, a um de Maio, a festa de São José, trabalhador do sector da carpintaria.

A percepção de que os direitos dos trabalhadores e a nobreza do trabalho constituem um avanço civilizacional que merece ser celebrado, nem que seja com uma valente folga, é por vezes entendida como património da esquerda. Não é evidente: muitas democracias ocidentais governadas à direita instituíram e mantiveram a celebração de um dia do trabalhador. A América e a França formam exemplos. Vide o caso gaulista, acima citado. Mas isto não deve surpreender: existem muitas direitas, algumas respeitavelmente democráticas, por vezes conservadoras, outras vezes liberais, às vezes libertárias.

Em Portugal, a esquerda tem como preconceito que a direita é básica e reaccionária. A tal “parti pris” não será alheio o facto de a direita portuguesa ser de facto maioritariamente básica e reaccionária. Donde vir de lá tanta prosápia com os colaboradores, como se ser trabalhador – eu sou – envergonhasse. Se não nos precatamos, ainda aparece aí um dia do colaborador. Provavelmente o vinte e nove de Fevereiro, para não afectar a produtividade.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Exposição fotográfica (V)

Todas tiradas em Preston, em Inglaterra, em Julho de 2004, com uma Sony Cyber-shot P72 de 4 MPx. Uma cidadezinha notável para quem gosta de cor.


domingo, outubro 12, 2008

Não é santo quem quer

Vasco Pulido Valente – de seguida VPV para poupar o teclado, indiscutível campeão nacional da maledicência científica, categoria pesos pesados e versão “world series”, meio século de carreira e vinte anos de solitária liderança, ao pé do qual os do “Eixo do mal”, os da “Noite da má-língua”, a bancada do Bloco de Esquerda e o Paulinho das feiras – já para não falar de mim próprio – não passamos de garotos imberbes, aventurou-se por razões incógnitas a dizer bem de alguém e espalhou-se. Tinha que ser.

Na sua crónica de sábado último no Público, VPV dá uma mãozinha ao Papa Bento Ratzinger, que veio recentemente a público defender o seu precursor Eugénio Pacelli, “aka” Pio XII, das bordoadas de certos historiadores que o acusam de leniência ou cagarolice, consoante queiramos manter o nível da conversa, diante dos regimes fascistas e nazis que atingiram o pico da folia durante o seu pontificado.

Com o rigor dos factos que o caracteriza, VPV explica que, diante das perseguições dos nacionais-socialistas aos católicos do sul da Alemanha, Pacelli negociou naturalmente com Hitler uma concordata em que trocou o silêncio da Igreja para defender os seus bens materiais e o direito de culto, de ensino e de assistência. Que embora protestasse em privado contra as facinorosices de Hitler, não o fazia em público, por pensar que tal contribuiria para ainda mais violência. Que, informado, não disse uma palavra sobre os massacres de judeus e só tardiamente e em pequena escala permitiu que a Igreja protegesse alguns deles. Conclui VPV do seguinte modo: “Só que Pio XII punha o interesse da Igreja institucional à frente de qualquer outro. E, com prudência, com astúcia e uma diplomática abstenção perante os males deste mundo, chegou a 1945 com uma igreja forte e quase intacta. O que faz dele um político de talento e um santo difícil de engolir.”

Santo? Ena, pá! É o que dá ser Papa. Houve outros que tentaram a mesma abordagem “soft”, tão “naturalmente” como Pio XII, se calhar imbuídos das mais prudentes razões políticas, e que acabaram nos manuais escolares como frouxos e otários, como o Chamberlain e o Daladier, ou como traidores, caso do Pétain. E possivelmente com toda a justiça, porque até o próprio Daladier, quando foi aclamado pela multidão no retorno de Munique, terá dito a quem com ele estava: “Ah! Les cons!”.

Para VPV (e aparentemente para Bento XVI), no limite, o papel da Igreja diante dos males do mundo dos homens (“este mundo”, que parece não ser o da Igreja) resume-se “naturalmente” a preservar a sua base material e política, e não a intervir em defesa dos que sofrem e em favor de um conceito de Bem. Tem que se ser, antes de tudo, prático. Lembra-me outro Bento, este também Paulo: o importante é haver muita tranquilidade.

Quem me ajuda a contrariar tão fraca tese?

Talvez São Paulo, na sua carta aos Efésios: “Por isso vesti a armadura de Deus para que, no dia mau, possais resistir e permanecer firmes, superando todas as provas.” Ou ainda, na segunda carta aos Coríntios: “ Este é o nosso motivo de orgulho: o testemunho da consciência de que nos comportámos no mundo, […] com a santidade e sinceridade que vêm de Deus.” Ou, finalmente, na carta aos Filipenses: “Uma só coisa: comportai-vos como pessoas dignas do Evangelho de Cristo. Deste modo, indo ver-vos ou estando longe, que eu oiça dizer que estais firmes num só espírito, lutando juntos numa só alma pela fé do Evangelho, e que não temeis os vossos adversários.”

Talvez Jesus Cristo: “ … sereis presos e perseguidos; entregar-vos-ão às sinagogas e sereis metidos na prisão; sereis levados perante reis e governadores, por causa do meu nome. Isso acontecerá para que deis testemunho. Portanto, tirai da cabeça a ideia que deveis planear com antecedência a própria defesa; porque Eu vos darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater. Sereis entregues até pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. Sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas não perdereis um só cabelo. É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida.”


Ou o mesmo Cristo, quando se sacrifica para nos salvar a todos, incluindo por dever de ofício o Pacelli, o Ratzinger e o VPV.

Firmeza diante da adversidade. Orgulho na consciência. Dignidade diante dos opositores. Testemunho. Naquela época difícil da Segunda Guerra, felizmente houve muitos, crentes ou ateus, que encontraram nestes conceitos a força para fazer melhor figura que o Papa Pio XII, senão a coisa podia ter corrido ainda pior.

Cristo teria certamente perdoado a Pacelli pela fraqueza e a Ratzinger pela hipocrisia. Afinal, nem todos são da massa de que são feitos heróis ou santos. Como nem todos possuem a arte do elogio. Por isso, VPV, não afagues. Limita-te a desancar.

domingo, outubro 05, 2008

Exposição fotográfica (IV)

Todas tiradas na Casa da Música, no Porto, em 21 de Março de 2008, com uma Canon 400D.



Guindaste 1.

Guindaste 2.

A floresta.

Os raios azuis.

Os cabides.

A nona arte

O jornal Público, que quando toca a acompanhar os seus jornais de “ofertas” prima pela excelência das colecções, vai lançar a série completa dos trabalhos de Edgar Pierre Jacobs, o criador de “Blake e Mortimer”. Ao tomar conhecimento desta boa notícia, veio-me à memória uma missiva que escrevi há tempos a uma pessoa que, julgava eu, não gostaria de banda desenhada. A carta acompanhava a minha prenda aniversariante a esse bom amigo: três volumes escolhidos da melhor “bêdê” ou, porque não dizê-lo, da melhor literatura, a ver se o endoutrinava.

É esse texto que segue aqui abaixo, só com pequenas adaptações, num testemunho da minha gratidão pelo muito que me trouxe a nona arte e a excelência dos seus mestres.


“Caro …,

A minha mãe tem um hábito prudente e algarvio de gabar previamente as prendas que dá, não vá o recipiente passar ao lado da valia do embrulho que lhe estão a pôr nas mãos. Mania que nunca lhe critiquei e que só desta vez vou imitar para dizer bem destes livros. Eles merecem.

Sei que não aprecias muito Banda Desenhada. Pois eu decidi oferecer-te uma prenda de que não gostas, mas cheio de fé de que gostarás. Estes três volumes têm a difícil mas provável missão de te fazer mudar de ideias e de te abrir as portas de um mundo novo, rico de humor e tragédia, de fantasia, de luta, de sonho ou de mensagem. Neste caso são volumes, enfim, “sérios”, mas podiam ser também “cómicos”, de um Goscinny, de um Gotlib ou de um Franquin. Vinha dar ao mesmo.




A “Balada do Mar Salgado”, do italiano Hugo Pratt, é a primeira e uma das mais célebres histórias da sua principal criação, o marinheiro Corto Maltese. Nascido em La Valetta, filho de um marujo inglês da Cornualha e de uma cigana de Gibraltar, Corto cresceu no bairro judeu de Córdoba e vive, quando lá vive, na Antígua ou em Hong Kong. Em jovem, cortou com uma faca a sua linha de vida, na palma da mão, traçando ele próprio o seu destino.

Destino esse que o leva a encontrar-se permanentemente com a História, por vezes num palco principal, muitas num canto escondido, quase sempre discreto mas sempre do lado do mais fraco, mesmo quando este está votado à derrota. Apesar do seu cinismo quase diletante, que usa como ferramenta de sobrevivência do mesmo modo que refere a sua imperial cidadania britânica, Corto Maltese é um herói romântico, que aceita com naturalidade o seu papel nos acontecimentos com que se cruza, sem os evitar mas também sem se apropriar deles. É um homem vivido, um lobo solitário e só, um alforge de qualidades que gostaríamos de ver nos nossos filhos: bravura, solidariedade, caridade, amizade, inteligência prática.

As histórias de Corto Maltese ocorrem num período que abarca o antes, o durante e o depois da primeira Guerra Mundial, quase sempre num cenário conturbado de conflito ou guerra. Cobrem uma monumental diversidade geográfica, do Pacífico à Irlanda, da Sibéria ao Império Otomano, de África a Veneza. Vão de um grande realismo a incursões pelo fantástico, sonhado ou mesmo mágico. Nelas, Corto Maltese vai-se travando de amizades com assassinos e professores universitários, com feiticeiras de “vudu” e ricos herdeiros, com militares britânicos e selvagens negros, ou seja com quem quer em quem ele identifique o bem essencial por contraponto a qualquer aparência mais enganadora. Esta miscelânea reflecte a crença do autor de que não têm valor as diferenças ideológicas, religiosas ou nacionalistas e de que algo bem mais profundo une todos os homens, mesmo quando por trás os cenários se desagregam e os separam.

A “Balada do Mar Salgado” começa por ser uma história de piratas trabalhando para um misterioso personagem, “o Monge”, que traz uma nota de fantástico e aproveita a envolvente da primeira Grande Guerra no quadro inesperado dos Mares do Sul. Pouco a pouco, a “Balada” vai evoluindo para uma bela história de amizade e amor, em que as fortes relações que se vão construindo acabam por ser mais importantes que os belíssimos panos de fundo de um exotismo exuberante que é tão característico de Pratt.

Nota, neste volume, o recorte cinematográfico dos planos, de que é exemplo a pungente sequência da página 187, com as lágrimas de Pandora, que sempre me comoveram tanto como as da Debbie Reynolds na cena final do “Serenata à Chuva”: “Hey! Stop that girl!”. O desenho de Pratt é rápido, por vezes só aparentemente tosco, mas de uma grande eficácia. As personagens podem ter uma subtil expressividade, como na serenidade triste de Pandora despedindo-se, na página 198, ou no olhar malévolo de Rasputine por detrás de um livro, na página 38.

O trabalho foi originalmente desenhado só a tinta-da-china e colorido numa edição já muito posterior. Talvez a versão a preto e branco seja superior (podes vê-la cá em casa). Ainda assim, muitas imagens desta nova edição guardam a memória do original: o mar negro em que voga o catamarã na página 38, as cenas de naufrágio nas páginas 61 a 63, com as gaivotas brancas esvoaçando no céu de breu ou as cenas subaquáticas das páginas 100 a 102, em que as formas se decompõem num zebrado surrealista.

Corto Maltese é um personagem invejável de referências culturais. Se pode lembrar os grandes clássicos de juventude, como Stevenson ou Jack London, pelo lado aventuroso, a riqueza, o colorido e o inesperado das personagens vão buscar ao estranho mundo de um Jorge Luís Borges e à sua “História Universal da Infâmia”, roteiro de bons e maus piratas. A edição que te ofereço contem um intróito onde encontrarás, para além de imagens referentes aos Mares do Sul, uma explicação do próprio Hugo Pratt e um ensaio de Umberto Eco, como que confirmando que “les bons esprits se rencontrent”.


“A Marca Amarela” é uma obra-prima noutro estilo. O seu autor, o belga Edgar P. Jacobs, ocupa na BD o lugar que na literatura pertence a Verne, a Wells ou a Bradbury. Com uma longa carreira de desenhador e argumentista, Jacobs só produziu oito livros da série “Blake e Mortimer”, um dos quais não terminou antes de morrer. Todos são livros de primeira linha: “O segredo do Espadão”, “O mistério da Grande Pirâmide”, “O enigma da Atlântida”, “A armadilha diabólica”, e por aí fora. Jacobs escreve e ilustra uma ficção científica quase realista, só uns anos à frente do passado, que com o passar do tempo ganhou uma soberba “patine”, tornando-se um futuro que nunca aconteceu.

Uma das razões pelas quais Jacobs publicou tão pouco está no rigor que pôs no desenho dos cenários. Muitos destes, como por exemplo de uma casa, podem resultar de centenas de fotografias, tiradas pelo próprio ou recebidas do Cairo, do Afeganistão, de onde fosse. Construiu maquetas de objectos ou bustos de personagens para se certificar que a sua representação era a correcta sob qualquer ângulo. Redesenhava diversas cenas sob outras perspectivas, que não iriam ser publicadas, apenas para verificar a sua coerência. Certa vez esteve três semanas com o trabalho parado, à espera de fotografias dos caixotes de rua em Tóquio – detalhe importante. Neste aspecto lembra o escultor que talhou o “Auriga”, na Grécia Antiga: embora a estátua estivesse colocado no topo do frontispício de um templo, só visível da cintura para cima, todo o resto do corpo, e sobretudo os pés, está esculpido com uma impecável perfeição, porque se é para se fazer bem, é para se fazer bem!

Esta representação perfeccionista, associada ao facto de a narrativa ocorrer sempre num futuro quase presente, permitem que Jacobs aborde temas fantásticos “clássicos” sem cair na exuberância barroca da grande maioria dos outros autores. Sobriedade é a palavra de ordem, e Jacobs descreve civilizações perdidas, guerras holocáusticas, viagens no tempo ou homens artificiais como quem pinta cavalheiros de gravata a fumar um charuto após o jantar. Enquanto Hugo Pratt traz o exotismo da Polinésia para falar de corriqueiros amores e desilusões humanas, Edgar Pierre Jacobs usa de sobriedade para nos mostrar Mortimer a fugir de um “Tiranossaurus Rex”, depois de uma avaria na máquina de viajar no tempo. Nas palavras do próprio, “em ficção científica é preciso saber até onde se pode ir longe demais”.

Os heróis, o Capitão Francis Blake e o Professor Philip Mortimore, perfazem o modelo ideal e idílico do gentil homem britânico: cultos, educados, corajosos, dedicados ao bem comum, leais, patriotas, honrados e sempre impecavelmente compostos (excepto se perseguidos por “Tiranossaurus Rex”). Partilham uma amizade viril, num mundo tipicamente masculino como é o da banda desenhada franco-belga dos anos 40 a 60, em que a sexualidade das personagens era totalmente mitigada e substituída pela amizade, sentimento mais adequado a rapazes em formação (a BD não era na altura leitura própria para meninas). E assim temos Tintin e Haddock, Astérix e Obélix, Spirou e Fantasio, Alix e Enak, etc., para além, claro, de Blake & Mortimer. Só depois do Maio de 68 e da revolução sexual que se lhe seguiu, o sexo feminino – e o sexo “tout court” – entram na banda desenhada, com namoradas ou amantes dos heróis, com companheiras de aventuras ou com heroínas a título próprio. Nessa altura, a situação destes heróis misóginos foi revisitada, levando a sugestões, sem dúvida exageradas, de homossexualidade latente entre as personagens. Talvez por isso, os argumentistas e desenhadores que continuaram a série após a morte de Jacobs, e que tiveram sempre uma preocupação extrema em respeitar as temáticas, a tipologia da narrativa, o grafismo, os enquadramentos, o colorido, etc., originais do mestre, optaram por humanizar (ou melhor – “mulherizar”) neste aspecto um pouco a série: Blake e Mortimer passaram a ser mais sensíveis aos encantos femininos e surgiram revelações de amores de juventude. Em qualquer caso, Blake & Mortimer são personagens de outro tempo ou, melhor, do nosso imaginário sobre outros tempos.

Philip-Edgar-Angus Mortimer nasceu em Simla, na Índia, filho de um médico escocês do Exército Britânico das Índias. Aos onze anos, rumou à Escócia onde estudou nas melhores escolas até um BSc, após o que se especializou em física nuclear no M.I.T. e em Berkeley. Fino currículo, portanto. O seu saber não é facilmente confinável. É o investigador humanista, aberto a todos os problemas que se lhe deparam. Acumulando a ciência com a acção, Mortimore é um homem robusto com experiência de boxe, judo e karaté, o que lhe é bastante útil em muitas das situações delicadas a que o seu carácter impulsivo e a sua intransigência em questões de honra o estão sempre a atrair. Bebe Cardhu e fuma Virgínia no seu cachimbo.

Francis-Percy Blake nasceu em Llangowlen, no País de Gales, filho de um coronel do corpo de Reais Fuzileiros Galeses. Oriundo de uma família notável de militares e homens de lei, Francis preferiu a carreira castrense. Assim, após estudos em Eton, entra para o “Staff College” da “Royal Air Force”, de onde sai já com o grau de capitão. Segue-se a R.A.F. e depois a “aeronaval” como líder de esquadrilha a bordo do porta-aviões Intrepid. É daqui destacado para a Secção Especial do Almirantado em Scaw-Fell, on se leva a cabo, no maior segredo, a construção do Espadão, o submarino voador desenhado pelo Professor Mortimer. Aí nascerá a solidíssima amizade entre Blake e Mortimer.

Ao contrário de Mortimer, Francis Blake é a fleugma britânica em pessoa. Comparado com o amigo, parece frio e afastado, e absolutamente seguro das suas reacções. Mas tal aparente insensibilidade apenas se deve a um horror muito atavicamente britânico em manifestar publicamente os seus sentimentos. Blake é tenaz, perseverante, combativo, não se poupando a esforços até encontrar uma solução. Contrariamente a Mortimer, sempre pronto a mandar-se de cabeça para a aventura, Blake é circunspecto, ponderado e prudente. Mas quando chega o momento da acção, a sua bravura não fica a dever nada à do seu companheiro. Colecciona condecorações (“Disguinshed Service Order”, “Military Cross”, “St.George Medal”, “Victoria Cross”) e um título de baronete! Se bem que promovido a coronel, os colegas continua a tratá-lo amigavelmente por “capitão”, em homenagem a um longíquo antepassado que desbaratou os navios de Filipe-Augusto de França em 1213. Como bom bife da elíte, pratica desportos “snobs”: pólo, golfe e vela.

A descrição dos personagens que acabaste de ler foi adaptada de palavras do próprio autor. É óbvio que Jacobs quis criar estereótipos perfeitos, modelos pelas qualidades mas também pelo extracto social. Reflectem portanto uma visão elitista, a dos “bem nascidos e bem fadados”. Na banda desenhada de hoje, os heróis tendem a ser mais complexos, menos puros, mais torturados. Personagens como estes até serão sujeitos a chacota: há, aliás, uma sátira recente, chamada “As aventuras de Philip e Francis”, em que toda esta assepsia britânica sai coberta de grande gozo. Mas o facto de Blake & Mortimer continuarem a encantar novas gerações mostra que heróis exemplares e uma boa e emocionante história ainda encontram eco na nossa disposição para sonhar.

E a “Marca Amarela”? Uma história na essência simples: heróis contra vilões, o bem contra um mal misterioso e inexplicavelmente todo-poderoso. Um romance policial com inspirações no fantástico gótico tão ao gosto anglo-saxónico. Um filme negro em quadradinhos. Mas por cima disto, um pouco mais do que isto. Sem entrar em detalhes, para não te estragar a leitura e a descoberta, “A Marca Amarela” é também uma história de vingança, que contem uma reflexão, explícita, sobre o papel da ciência e do saber e outra, implícita, sobre a intolerância e o pedantismo daqueles que julgam ser donos da verdade. Estas são reflexões recorrentes em Jacobs, que escreve a sua obra durante uma Guerra Fria atormentada pelo risco do holocausto nuclear e dos novos demónios que o cogumelo de Hiroshima tinha libertado para a paranóia colectiva.

O grafismo, que atinge aqui uma sobriedade extrema, está todo ao serviço da vertente negra da história. O aspecto quase sobrenatural do “Marca Amarela”, deixando a permanente dúvida se ainda estamos num policial ou já no terror, a eficácia do logótipo, a oposição entre o claro e o escuro, a representação da noite como momento do mal, tudo concorre para dar ao enredo a sua personalidade de história fantástica.


E, sobretudo, a “Marca Amarela” é Londres. Não há obra – literária, cinematográfica ou outra – que melhor represente a minha ideia de Londres do que esta. Começando logo, com a fabulosa cena inicial na Torre de Londres, sob um céu de chumbo e uma chuva intemporal. Continuando com as imagens do “Centaur Club”, em Picadilly, ou o passeio do Dr. Vernay da página 11, ou de Limehouse Dock. Sobretudo, a humidade permanente nas lajes de cimento dos passeios que calcorreei tantas vezes e que as encontrei tal e qual as descreve Jacobs em “A Marca Amarela”.



Por último, “A Caçada”, do franco-jugoslavo Enki Bilal (desenho) e do francês Pierre Christin (texto). Enki Bilal, embora aqui só desenhe, é também argumentista e autor de um universo imaginário passado num futuro inquietante (vide, por exemplo, a “Trilogia Nikopol”), com imagens cheias de simbolismo e de um primor gráfico único. É essa inquietação que imediatamente assaltará, desde o primeiro quadrado, o leitor da “Caçada” que reconheça o estilo. Pierre Christin foi escritor, argumentista de BD e cinema, jornalista, músico de “jazz”, etc. e tal. Em banda desenhada, aparte esta colaboração com Bilal, criou com o desenhador Mezières a excelente – embora por vezes um pouco delirante – série de ficção científica “Valérian”, que inclui um dos meus livros favoritos, “A cidade das águas vivas”, aventura e acção numa Nova Iorque pós-apocalíptica, mas com uma mensagem de esperança no futuro.

Quanto a “A Caçada”, é uma obra complexa e densa no enredo, na mensagem e no desenho. A história passa-se em 1983, em pleno “Breznevismo”, perto de Krolowka, na Polónia, durante uma caçada na neve em que participam proeminentes membros dos partidos comunistas dos diversos países do então “bloco de leste”. Não te irei obviamente dizer o que se passa, para que não percas o interesse, mas o personagem fulcral é Vassili Alexandrovitch Tchevtchenko, influente veterano do regime soviético, com um passado que remonta aos dias da Revolução Russa.

Através do desenrolar da acção e paralelamente através das memórias que Evgueni Golozov, seu adjunto, e os restantes personagens nos vão dando de Tchevtchenko, vamos descobrindo as diversas facetas de um indivíduo complexo, de uma pessoa real tão diferente do homem imaginado que é Corto Maltese ou dos heróis ideais que são Blake & Mortimer. Vamos descobrindo como Tchevtchenko navegou a torrente histórica da Revolução Russa, lutando, manobrando, amando e sofrendo. Ficamos, no final, na dúvida sobre quem é este homem. Um revolucionário ou uma vítima da revolução? Um grande líder ou um assassino? Um figurante sujeito aos ditames de um enredo maior do que ele ou um actor principal, com autonomia para modificar o seu papel e conduzir o desenvolver da trama?

O que faz deste livro um grande livro, capaz de repousar sem vergonha na estante ao lado de um “O estrangeiro”, de um “D. Quixote” ou de um “O jogador” é esta capacidade de nos revelar a diversidade que há no Homem, através da agregação de diferentes mas comunicantes planos, de histórias dentro da história: a história pessoal de Vassili Alexandrovitch Tchevtchenko, a da Revolução Soviética, a do processo estalinista ou mais genericamente totalitário, a análise do poder e do seu exercício.

O desvendar, lento mas inexorável, desta múltipla geometria dá-se sobre o pano de fundo do desenho de um Enki Bilal no seu melhor, em que o realismo genérico da representação é subtilmente modificado, aqui e ali, na arquitectura do hotel ou nas memórias dolorosas, para invocar os universos imaginários de outras obras dos autores, alertando-nos e inquietando-nos. O cromatismo é fabuloso, com o simbolismo vermelho de sangue da violência sempre latente, bem como o falcão, ave de mau augúrio, sobrevoando discretamente a história, ora ave, ora massa sanguinolenta como as mãos ou as consciências dos personagens.

Enfim, já me alonguei, tirando-te precioso tempo para te lançares na leitura dos três canhanhos que aí tens. Espero que no fim fiques com vontade de mais, porque há muito mais para ler, rir e chorar no mundo da BD: as reportagens desenhadas de Joe Sacco na Palestina e na Faixa de Gaza, as memórias torturadas de um sobrevivente de Auschwitz, vistas pelo seu filho, em “Maus”, o fabuloso humor de Marcel Gotlib no “Rubrique-á-Brac”, as linhas da História enovelando-se através da descoberta de uns “Dez Mandamentos” muçulmanos, na série “O Decálogo” de Giroud, o “Grito do Povo” na comuna de Paris com Tardi, o mundo a preto e branco de Will Eisner e o seu “Spirit”, etc., etc., etc.

Um abraço amigo e boas leituras”

quarta-feira, outubro 01, 2008

Exposição fotográfica (III)

Casa em Preston, no Lancashire. Uma antiga cidade operária, hoje essencialmente dedicada à sua universidade, em que o velho tijolo contrasta com ombreiras e portadas de todas as cores. Julho de 2004. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Plasma no Visionarium de Santa Maria da Feira. Março de 2008. Canon 400D, 52mm, 1/40s, f5.6.



Bancadas desertas no Estádio Alvalade XXI. "Esforço, dedicação, devoção e glória", "só eu sei porque não fico em casa" e essas coisas... Canon 400D, 200 mm, 1/200s, f6.3.



Pôr do sol em Porto Covo. Agosto de 2007. Canon 400D, 200mm, 1/100s, f5.6.



Museu da ELectricidade em Lisboa. Março de 2007. Canon 400D, 200mm, 1/800s, f11.