quinta-feira, setembro 16, 2010

Férias IX : Os marcianos divertem-se


Um dos primeiros livros de texto corrido, sem imagens, que eu li, certamente há mais de trinta anos, foi uma compilação brasileira de “short stories” de ficção científica que o meu pai adquirira numa altura em que lhe deu uma urgência pelo género e aviou uns duzentos volumes seguidos da colecção Argonauta. Essa primeira leitura avivou-me o gosto pelo estilo e fui picando na prateleira dos argonautas, apreciando então particularmente as situações delirantes de Clifford Simak e os estranhos mundos de Stefan Wul.


Dessa compilação, que depois levou sumiço, recordo-me apenas de dois contos de entre dezenas e mesmo destes esqueci autores e títulos.


Um deles contava a história de um ataque repentino à Terra por naves vindas do espaço, seguido pelo envio pelos terráqueos de uma expedição punitiva que parte no encalço dos atacantes. Quando depois de muito navegar essa expedição detecta as naves inimigas num planeta, ataca-o violentamente. Aí o fim do conto repete o texto do início e percebe-se que a expedição que atacara a Terra é a mesma que partira em busca de vingança: paradoxo espacio-temporal, universo circular e esses “clichés” clássicos do género.


O outro descrevia a chegada dos primeiros homens a Marte e do seu contacto com os marcianos. Os homens estão orgulhosos da sua proeza e querem falar com as mais altas chefias: “leve-me ao seu líder”. Só que os marcianos não lhes ligam nenhuma. Os astronautas bem tentam fazer notar que vieram da Terra, mas a dona-de-casa marciana à porta da qual bateram está mais preocupada que eles lhe estejam a sujar o chão com as suas botifarras. Os marcianos não se interessam peva, para desespero e confusão de quem julgava estar a entrar para a Eternidade. Vou ficar por aqui e não vos contarei o fim da história, se por acaso vos apetecer lê-la.


Na altura, o que me impressionou neste conto foi a abordagem iconoclasta à ficção científica que o autor propunha: nada de grandes naves ou prodígios tecnológicos. Senhoras mal dispostas e cosmonautas sem interlocutor. Um humor subtil que outros transformaram em paródia pegada como no hilariante “Os marcianos divertem-se”, de Frederic Brown, em que homenzinhos verdes invadem a terra com o único propósito de chatear os seus habitantes.



Nestas férias, voltei a cruzar-me, de forma acidental, com o conto dos astronautas incompreendidos: afinal chama-se “The Earth men” e pertence às Crónicas Marcianas de Ray Bradbury, que despachei neste Agosto. Lido com mais três décadas em cima dos ossos e no contexto das restantes crónicas, a minha percepção deste conto é completamente diversa. Efectivamente os "eu" que o leram nos idos de 1976 e agora são o mesmo, mas são diferentes. Como diferente foi lê-lo nos anos setenta, num mundo de guerra-fria e conquista do espaço e fazê-lo hoje. O livro está algo datado, o que só acrescenta ao brilho da sua “patine”.


As crónicas, algumas longas de dezenas de páginas, outras de uma folha apenas, revelam uma visão ligeira, onírica, sobre uma futura colonização de Marte pelos humanos. Na realidade, Marte é apenas um pretexto. Este livro é sobre nós, sobre os sonhos, os vícios e as capacidades que como espécie partilhamos.


Percebido isto, torna-se claro que os astronautas que se acham assim tão importantes somos nós, sempre a pôr-nos em bicos dos pés, sempre a sobrestimar-nos e confundidos e incapazes de entender quando alguém nos reduz à nossa insignificância.

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