sábado, março 17, 2018

Exposição fotográfica (LI)

Esta semana, em Bratislava...

Um antiquário com um toque Klimtiano, rua Palackého

A cruz eslovaca

O Danúbio pardacento. Disseram-me que após uma garrafa de vinho dos Cárpatos, fica azul.

O castelo e à frente o Dunajský Pivovar, barco, restaurante e fábrica de cerveja

Hans Christian Andersen: esteve três horas em Bratislava numa paragem tipo Canal Caveira entre Budapeste e Viena e foi o suficiente para lhe fazerem uma estátua

Lado sul da cidade e ao fundo um horizonte eólico já em território austríaco

O observador, por Viktor Hulik. A estátua tem um sorriso maroto, diz-se que por causa do que consegue ver deste ângulo

Rua Zamocnicka

Entrada da Filarmónica Eslovaca

Tocador de harpa na rua Rybárska Brána

sábado, março 10, 2018

Oresteia ou a derrota dos tablóides



Fui há dias ao CCB, a que eu muitas vezes por lapso cavaquiano continuo a chamar, passados todos estes anos, Centro Comercial de Belém, ver a trilogia Oresteia de Ésquilo. Picado o bilhete, um átrio pequeno para tanta gente abrigava os pagantes do frio da noite de Fevereiro. Não se viam as portas da sala e civilizadamente uma fila foi-se formando, com fim mas sem princípio, uma vez que desembocava numa mole desordenada que ocupava o fundo da salinha. Acabámos por ser dos primeiros a entrar, involuntariamente à tuga.

Apesar de uma acústica deficiente e de um ou outro lapso de memória dos actores, não dei por perdidos tempo e dinheiro. Era o último dia e sabia pelas resenhas que lera que nos iriam servir uma versão modernaça, pontuada pela música dos Dead Combo. Gostei do que vi e ouvi: plasticamente a encenação é muito bela no seu despojamento e no jogo das luzes e das sombras sobre um cenário simples de panos translúcidos e o som minimalista mas obsessivo dos Dead Combo aviva o ambiente de tragédia que vamos acompanhando. Trata-se afinal de teatro: o que aparece em palco não é como no cinema uma realidade total, fotográfica, mas meramente os símbolos que são a essência da realidade narrada; portanto um mínimo basta e mais do que isso até pode ser demais.


Apreciei também que, embora reinventada, o encenador não se tenha esquecido que de uma peça grega clássica se trata, vergando-se subtil mas humildemente aos respectivos cânones: as máscaras, as poderosas falas do coro, os enfáticos monólogos das personagens dilaceradas pela tragédia, até as botifarras com que os actores entram em palco lembrando os coturnos que há vinte e cinco séculos os seus antecessores usaram para se altear ao público.

Oresteia compõe-se de três peças, Agamémnon, Coéforas e Euménides. As duas primeiras vão beber à maldição que atormenta a casa real de Agamémnon, rei de Micenas e líder dos gregos durante a guerra de Tróia. Ainda antes de a acção começar, os personagens já vêm marcados pela tragédia. Com efeito, Atreu, pai de Agamémnon, quando descobre que a sua mulher Aérope o andava a enganar com o seu irmão gémeo Triestes, decide vingar-se. Em vez de resolver o caso com uma espadeirada, vá uma cornada, o refinado Atreu assassina os filhos do irmão e serve a sua carne num banquete para o qual o convida, antes de o expulsar de Micenas. 

Educado nesta família algo disfuncional, em que a mãe come figuradamente o tio, o pai mata os primos, o tio come não-figuramente os primos e o pai exila o tio (e à época era pior ignomínia ser exilado do que guisado), não surpreende que o pobre Agamémnon tenha ideias estranhas. Por isso, quando um tal Calchas, oráculo de profissão na modalidade de interpretação de voo dos pássaros, lhe sugere que sacrifique a sua própria filha Ifigénia para ver se os deuses mandavam algum vento para empurrar até Tróia a encalhada armada grega, Agamémnon não se faz muito rogado. Hesita inicialmente mas pressionado pelos restantes comandantes gregos, que lhe vão dizendo que nem a guerra começava nem eles almoçavam, lá manda vir a cachopa para a degola sob o pretexto enganoso de a casar com o herói Aquiles. Para apimentar a situação, a falta de vento devia-se a uma birra da deusa Artemisa, que ficara chateada quando Agamémnon acidentalmente matara um veado num bosque sagrado que lhe era dedicado – veja-se o risco dos acidentes de caça. Agamémnon tem portanto dupla responsabilidade na morte da filha.

Isto passa-se antes do início da Oresteia, já que neste assistimos ao regresso a casa de Agamémnon, após dez anos de guerra de Tróia. Regressa vitorioso e com ele traz Cassandra, uma vidente. Clitemnestra, a mulher de Agamémnon – serão o casal com os nomes mais trava-línguas da história – andou dez anos a remoer a morte da filha e também não fica muito satisfeita com a presença de Cassandra, que ela vê imediatamente que serve mais para o marido ver o padeiro do que ver o futuro. Ressabiada, apunhala o marido na banheira – aos olhos da época uma agravante já que não só mata como fá-lo no sacrossanto recato do lar, onde o seu dever é atender o marido e não assassiná-lo – e de caminho limpa a Cassandra também, indo-se depois justificar em conversa com o coro. Nisto aparece Egisto, o amante de Clitemnestra – dez anos são muito tempo para quem não se chama Penélope – e este revela que a morte de Agamémnon foi premeditada e planeada também por ele. Para Egisto, trata-se de uma vingança já que ele é um filho não jantado de Triestes. Neste ambiente algo filme série bê acaba a primeira peça da trilogia.


Na segunda, Orestes, filho de Agamémnon e Clitemnestra e portanto irmão de Ifigénia, regressa a casa de um longo exílio na companhia do seu primo Pilades. Orestes também consultou o oráculo, onde o próprio deus Apolo lhe mandou matar a mãe para vingar o pai para ficar tudo quite. Orestes encontra a outra irmã, Electra, e envolve-a no plano assassino. Usando o velho truque de não ser reconhecido (para isso é que eles ficavam muitos anos fora) e com alguma ajuda do pessoal do coro, entra no palácio e trata primeiro do Egisto. Nesse momento a mãe entra na sala. Orestes hesita em matá-la tal como o pai hesitou em matar Ifigénia, só que está lá o Apolo em pessoa – melhor dizendo, em divindade – que o aperta um bocado, lembrando-lhe o combinado. Orestes acaba por perpetrar o matricídio o que tem como consequência desencadear a fúria das deusas Fúrias, umas precursoras do trio Mr. Smith/Mr. Brown/Mr. Jones do Matrix. Perseguido por estas, Orestas foge galhardamente do palácio pondo fim à segunda peça.

 Até aqui, temos tragédia grega no seu normal: os azares acontecem e há que pagar a conta, cumprindo o destino, repondo equilíbrios cósmicos. Atreu matou os filhos de Triestes, um outro filho de Triestes mata o filho de Atreu, Agamémnon. Agamémnon matou Ifigénia, a mãe de Ifigénia mata também Agamémnon, que leva por dois lados. Orestes, filho de Agamémnon, tem que reequilibrar o marcador matando os matantes do pai. Por muito bons que sejam os seus motivos, um crime tão horrível não pode ficar sem desforra e à falta de pessoas de carne e osso que o façam, as deusas Fúrias vão tratar do assunto.

Só que ao entrarmos na terceira peça, Eumenídes, o conceito muda radicalmente. As Fúrias perseguem implacavelmente Orestes e este, com alguma ajuda de Apolo, lá se vai safando até encontrar a deusa Atena, a quem pede ajuda. Atena cria então um tribunal no areópago de Atenas, onde a decisão vai ser tomada por jurados (nesta encenação o próprio público) que constituem um júri. Após ouvir Apolo e a Fúria-chefe, que funcionam como advogados de defesa e acusação, Atena conta os votos dos jurados: metade dizem culpado, a outra metade inocente. Atena usa o seu voto de qualidade para inocentar Orestes e quebrar a cadeia trágica de morte e vingança. Consegue convencer as Fúrias a aceitar o veredicto e muda-lhes o nome para Euménides, que significa “as amáveis”, pedindo-lhes que sejam uma força de vigilância e não de vingança. Atena acaba de criar o primeiro tribunal entre os homens, passando-lhes de caminho a responsabilidade pelos seus actos. Será o Direito dos homens e não mais os oráculos dos deuses ou a força do Destino que decidirão da culpa e da inocência.

Este final parece-me tanto mais notável ao constituir um rasgo com um conceito muito enraizado entre os gregos antigos, que é a inexorabilidade do destino: um mal não pode ficar sem vingança e esta ocorre mais cedo ou mais tarde, senão ao causador do mal então a alguém do seu sangue que sofrerá um mal de grau comparável. Nesta visão, o Destino é uma estrutura essencial do universo e mesmo os deuses lhe estão sujeitos. Tal é amplamente retratado nas tragédias gregas em que os personagens, por muito virtuosos e heróicos que sejam, sofrem o seu destino por pouca ou nenhuma culpa directa que tenham: Ifigénia não tinha nada a ver com que o pai por acidente ofendesse a deusa Artemisa. Mas tinha o mesmo sangue e por isso o seu destino ficou selado: a sua morte aplacou a deusa e reequilibrou o cosmos. Neste conceito de universo, dois males anulavam-se em vez de se adicionar.

Mas neste final Atena, deusa da sabedoria, acaba com isso. Há aqui um reconhecimento de que a justiça não pode ser perfeita, não sendo melhor a dos deuses que a dos homens, e que a complexidade das coisas requer debate, reflexão e julgamento. Nem sempre a culpa é um conceito fácil: todos os espectadores sabem que Orestes matou a mãe, o mais nuclearmente sórdido e contra-natura dos crimes, mas Ésquilo foi suficientemente hábil para induzir nos espectadores o melhor da natureza humana e levá-los a alinhar-se com o veredicto do tribunal.

Ora reparem como isto parece todo o contrário da voz que é corrente na nossa sociedade, tal como emana das redes parece que sociais e dos tablóides, entendendo-se por tablóides não apenas o Correio da Manhã mas também por exemplo os telejornais da Sic Notícias ou da TVI 24, com aqueles “pivots” que se auto-intitulam jornalistas como noutras ocasiões se auto-nomeiam escritores. A visão de justiça que sai dos ecrãs é infelizmente a das Fúrias e não a de Atena, é a de Micenas e não a de Atenas. Hoje, o julgamento faz-se na praça pública, regido pela aparência dos factos e pela aparência das pessoas, sem contraditório e com um desprezo indisfarçado pelas garantias da lei, que existem no entanto para proteger a Orestes como a cada um de nós de uma justiça que não seja mera vingança social. O que interessa neste nosso mundo de cento e quarenta caracteres máximos de reflexão é que haja sangue e aquela mindinha presunção de superioridade moral, “a la Bloco de Esquerda”.

Suponho que para Ésquilo o trágico fosse a condenação de um inocente e não a absolvição de um culpado. Para mim e estou convencido que para muitos outros, também. O homem civilizado, passe a imodéstia, vive bem com os riscos da vida: os terramotos, a doença e a morte, a imperfeição da lei dos homens que na dúvida liberta o culpado; mas não pode sofrer a ideia que por excesso de zelo ou falta de humanidade se condene um inocente, ou até que se transforme a justiça num espectáculo circense ao nível do comentário da jornada futebolística. Não sei se os que assim pensam são maioritários ou minoritários no Portugal de hoje, mas certamente carecem de visibilidade.


Pouco se conhece sobre Ésquilo. Nasceu em Eleusis à volta de 523 A.C. e morreu próximo de 456 A.C. Escreveu setenta a noventa peças das quais só sete chegaram aos nossos dias, nem sabemos se as melhores. Foi pai de família, teve dois filhos. Possivelmente vestiria uma túnica, calçaria umas sandálias toscas e comeria com os dedos. Não tinha telefone inteligente. E há dois mil e quinhentos anos escreveu e partilhou com os seus conterrâneos conceitos que hoje parecem esquecidos numa sociedade que se julga sofisticada, formada e informada: que a democracia e a justiça são uma preciosa dádiva dos deuses. E fê-lo de uma forma tão poderosa que pelo menos durante as duas horas da peça, ali no CCB, venceu a sanha dos tablóides.