quinta-feira, outubro 07, 2010

A coisa pública

Sempre percebi à minha volta, na minha infância e juventude, uma associação de ideias entre a figura da República e o progresso, a igualdade e a liberdade. Ouvia dizer sobre velhotes venerandos que haviam sido republicanos, o que era uma maneira de afirmar que tinham demonstrado valentia ou propalado ideais. Geralmente complementava-se o “republicano” com “opositor ao regime”. Mau grado o tal regime, o Estado Novo, se corporizar ele próprio numa república. Tal associação entre republicanismo e oposição ao fascismo reforçou a imagem da Primeira República como momento áureo e iluminado das liberdades em Portugal, ideia comummente adoptada pelas fatias da oposição que vieram a dar origem aos dois partidos do actual arco do poder.

Como lado B deste conceito, aparecia a monarquia enquanto anacronismo reaccionário. De “per se”. Ideia ainda frequente nos actuais livros escolares e nas reportagens de televisão neste ano de centenário do 5 de Outubro.

Ora se a estatística não for uma batata, nem a História outra, há aqui muito que não se aguenta bem de pé.

Pegando na lista dos países com maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH), uma medida usada pela ONU que agrega indicadores de esperança de vida, literacia e riqueza “per capita”, no topo reside uma monarquia (a Noruega). Dos três primeiros, dois são-no também. E entre os primeiros dez, seis. E nos vinte primeiros, doze. Claro que são monarquias constitucionais, com monarcas com campos de actuação limitados e simbólicos. Por isso se diz, quando alguém não possui nenhum poder efectivo, que é uma rainha de Inglaterra. Exactamente a mesma em quem alguns destes países, sem complexos de soberania, como o Canadá, a Austrália ou a Nova Zelândia, delegaram o papel de “chefe de Estado”: num monarca estrangeiro!

Isto não demonstra que um regime monárquico promova mais o desenvolvimento do que um republicano, nem o inverso. Mas permite pelo menos afirmar que a monarquia não constitui um “handicap” ao progresso ou um óbice à democracia. E impõe alguma prudência: quando chegarmos ao nível de uma Noruega, já não digo em IDH, mas meramente em dedos de testa, talvez os republicanos portugueses não façam figuras ao associar automaticamente regime monárquico e noite das trevas.

Por outro lado, analisando friamente alguns números da nossa Primeira República, podemos concluir que as coisas não correram lá muito bem. Algo que tornou menos fácil viver em Portugal nesse período foi o facto de se morrer mais: entre 1910 e 1920, a mortalidade por mil habitantes aumentou 19% e a mortalidade infantil uns impressionantes 36%. O produto nacional por cabeça, medido em libras-ouro, desceu no mesmo período uns robustos 40%. Entretanto, o valor da moeda dividira-se por sete. O país viu-se mais pobre e emigrava-se duas vezes mais. Apesar do pequeno aumento da população, o número de eleitores inscritos baixou ligeiramente e manteve-se na casa de uns meros 20% da população adulta. O número de hospitais decaiu. Apenas na educação se verificou de facto alguma evolução, especialmente no ensino liceal, e a taxa de analfabetismo baixou nesses anos de 75 para 71%.

A democraticidade do regime seria nos nossos dias qualificada de musculada, apresentando-se com liberdades formais mas tolerando – senão promovendo – assaltos aos jornais adversários e bandos de moca em punho à caça de oponentes. Parece evidente que a defesa e a disseminação da Liberdade não estavam entre as preocupações centrais do regime, ao contrário do que claramente aconteceu a seguir ao 25 de Abril. Neste particular, os progressos face ao período da monarquia não entusiasmam, se por acaso os houve. E o papel das mulheres na vida pública continuou menorizado pelos homens do poder.

À guisa de cereja em cima do bolo, a instabilidade política foi permanente. A dado momento, houve governos que duraram dias… Não surpreende muito que a mesma burguesia que aclamara a República em 1910 aceitasse pacificamente o golpe de 1926 e tudo o que veio a seguir e que a meu ver não trouxe nada de bom.


Apesar do que acima expus, e que serviu apenas para esclarecer que acho a discussão sobre o tema, em Portugal, muito mal centrada e feita de ideias feitas, eu sou republicano. Por duas razões. Uma, porque na prática se verifica que o bom governo da nação é igualmente possível numa república ou em monarquia. A Suécia tem um rei e a Finlândia um presidente. E também se constata que uma péssima governação pode aparecer em qualquer um dos sistemas: no Iémen republicano como na monárquica Arábia Saudita.

A segunda, que se esteia na primeira, é que, podendo qualquer um dos sistemas funcionar, não me parece que haja grandes justificações teóricas para que se escolha um regime em que um cidadão tem um certo grau de poder político, por pequeno e ilusório que seja, reservado só para ele e para a família. Tão simples quanto isto.

Entendo que uma família real funcione como referente aglutinador de um povo, como traço de união, como espelho da memória dos tempos. Percebo que nalguns países, como a Bélgica, ou até a Espanha, um rei constitua hoje em dia um dos mais fortes alicerces da unidade nacional. Percebo que noutros a realeza seja um tradicional traço diferenciador de um povo, como acontece no Reino Unido. Mas, percebendo, não me chega.

E em Portugal ainda menos se justifica. O comboio da História não pára e a nossa monarquia quedou-se numa estação já muito lá para trás, no dia em que Manuel Maria Filipe Carlos Amélio Luís Miguel Rafael Gabriel Gonzaga Xavier Francisco de Assis Eugénio de Bragança Orleães Sabóia e Saxe-Coburgo-Gotha, “aka” D. Manuel II, embarcou na Ericeira no iate real “Amélia” rumo a Gibraltar. Que me desculpem os meus amigos monárquicos.


Dito isto, não senti grande motivação para celebrar os cem anos da instauração da República. Talvez porque não haja assim muito para festejar. A “res publica” está cada vez mais coisa e cada vez menos pública. Talvez porque não seja um assunto essencial: o que nos distingue da Noruega não é ela ser uma monarquia; o que nos separa é ela ser uma democracia a sério, mais solidária, mais participada, mais equitativa, exemplar até quando a constituição garante que parte dos rendimentos do presente se destinam às gerações futuras, contrariamente a cá, em que vamos chutando para cima dos desgraçados que hão-de vir a dívida, o desemprego, as longas carreiras contributivas e outras malvadezas a que habilidosamente nos safámos.

Mas já que estamos numa de celebração e memória, que daí tiremos pelo menos algum proveito. Para tal, mais do que assinalar como a Primeira República começou, convinha lembrar bem como terminou. Para que a História não se repita. É que o Diabo, tal como os PECs, tece-as.

1 comentário:

NunoF disse...

A minha posição, que é análoga à tua, é resumida com laivos de genialidade num sketch brilhante do filme Monty Python and The Holy Grail:

Rei Artur: The Lady of the Lake, her arm clad in the purest shimmering samite, held aloft Excalibur from the bosom of the water signifying by Divine Providence that I, Arthur, was to carry Excalibur. That is why I am your king!

Camponês: Listen. Strange women lying in ponds distributing swords is no basis for a system of government. Supreme executive power derives from a mandate from the masses, not from some farcical aquatic ceremony.
You can't expect to wield supreme power just 'cause some watery tart threw a sword at you!

Dennis, The Constitutional Peasant