domingo, março 31, 2013

Escatologia de viagem



A minha profissão tem-me levado até meio-mundo e permitido presenciar hábitos variados no pensar, no vestir, no comer e até no acto menos nobre a que por comer a biologia nos obriga, isto para usar uma perifrase e não o verbo brejeiro sobre o tema que nos traz aqui hoje. De facto, desenvolvemos um incómodo tão grande em relação a este assunto que nos referimos a ele usando o último dos eufemismos, “ir à casa-de-banho”, quando banho é coisa que de certeza não vamos tomar nessa ida.

Tão selectivo é o nosso cérebro em relação a isto que por norma só nos recordamos de experiências traumáticas, de desespero incontido ou nojo extremo. Eu ainda tremo ao recordar a visão da retrete nos sanitários de uma selecta pastelaria do centro histórico de Viana do Castelo, vai para vinte anos. Quem viu o filme “Trainspotting”, com a sua célebre cena intitulada “A casa de banho mais nojenta da Escócia”, poderá ficar com uma ideia do que aquilo era, mas uma ideia ténue. A nojeira de Glasgow, ao lado da de Viana, parecia a imaculada assepsia de um bloco operatório. Hércules teve como quinto trabalho lavar o esterco das cavalariças de Aúgias, para o que desviou o rio Alfeu. Pois se tivesse tido que limpar a retrete de Viana, os trabalhos de Hércules seriam onze e não doze, porque mesmo para um semi-deus aquilo era demais.  


Outra perspectiva dantesca tive-a no aeroporto internacional de Hassi Messaoud, no coração da Argélia, em pleno deserto do Sahara. Este aeroporto é internacional porque alberga serviços fronteiriços mas é basicamente uma pista perdida no meio das dunas, onde cães atravessam de um lado ao outro indiferentes aos Boeings que aterram ou levantam carregados de trabalhadores das vizinhas instalações petrolíferas. A aerogare é um caixote de betão de pinta soviética. Enquanto lá esperava pela ligação a Argel, pensei ir aos lavabos tratar de um assunto. Nesse momento, o meu colega PP, que de lá regressava, disse-me com cara de quem vira um fantasma:

- É melhor nem entrares.

É do género de frases que acirra a curiosidade e por isso não resisti a espreitar. A casa-de-banho do aeroporto internacional de Hassi Messaoud era uma vasta dependência, de uns vinte e cinco metros quadrados, de paredes lisas de cimento caiado e uma chão de betonilha. No centro da laje tinha um buraco de cerca de vinte centímetros de diâmetro. Numa das paredes existia uma torneira com um metro de mangueira agarrado, para efeitos de pós-processamento. E era isto: mais minimalista do que um quadro do Stella. Utilizar esta instalação sanitária seria um excelente treino para uma modalidade de biatlo que combinasse ginástica artística com tiro ao alvo. Pelo chão, poças de água erráticas e de natureza incerta devolviam irisada a luz forte que entrava coada por um vidro fosco na parede do fundo. Ao redor do orifício que era o centro daquele universo, manchas duvidosas insinuavam tentativas mal sucedidas de viajantes menos habilidosos. Fechei a porta atrás de mim e mentalizei-me para esperar pelo avião. Ali, um sucesso seria heróico, mas uma queda seria catastrófica.

No pólo oposto a estes soturnos exemplos está o aparato tecnológico que encontrei na casa-de-banho do meu quarto no Shilla, o hotel em que fiquei em Jeju, na Coreia do Sul. Durante os três dias que lá passei nunca deixei de sentir que havia ali um ser pensante: assim que entrava no quarto e metia o cartão na fresta que ligava a electricidade, a retrete manifestava a sua presença com uns zumbidos electrónicos satisfeitos, como que a dizer “hás-de cá vir parar”.  



O aspecto dessa retrete, de linhas aerodinâmicas, era o de uma consola Nintendo em louça de Sacavém. Um conjunto de botões num ressalto lateral, do mais moderno recorte estético, prometia funcionalidades desconhecidas a Ocidente: um traseiro estilizado suportava um esguicho; uma figura feminina, outro; um terceiro botão sugeria a libertação de um tsunami. Carreguei num que tinha uma seta e imediatamente com um ruído robótico uma haste saíu de um esconderijo na cerâmica, apontando-se sem pudor às privacidades dos utentes. Pois daqui sairiam os esguichos: lembrei-me do “sketch” do Solnado, com a história do repuxo de cima e do repuxo de baixo. Depois de ver o protuberante tubo a estender-se tão automático, decidi não carregar em mais botão nenhum. Tive medo que de algum esconderijo saísse uma mão mecânica, enluvada como as dos mecanismos do Prof. Pardal, e que se desse a liberalidades. 


 Mas mesmo não tocando em botões, o perigo espreitava de dentro. No fundo da pia distinguia-se um ponto azul, um feixe de luz, através do qual a retrete detectava a minha presença como se de um olho se tratasse. Assim que me eu me sentava, trocávamos olhares e a loiça dava-me as boas vindas ligando imediatamente o aquecimento do assento. Aquele ponto de luz lembrava-me a câmara com que o computador HAL, no “2001 - Odisseia no espaço”, via os astronautas. Por isso, de todas as vezes que me dediquei a reciclar a temperada comida coreana, estive sempre à espera de ouvir sair de algum altifalante dissimulado a célebre e recorrente tirada do filme de Kubrick:

- What are you doing, Dave?

E receei que tal como na película, a inteligência cibernética da retrete decidisse vingar a afronta engendrando algum esquema para me tramar, eventualmente com recurso a uma haste servocontrolada.


Durante esta mesma viagem à Coreia terminei de ler as memórias de Gene Kranz, director de vôo dos programas espaciais Gemini e Apollo. O que é notável no relato de Kranz é a fragilidade e o experimentalismo do conhecimento e das tecnologias que foram usadas para realizar aquele que provavelmente é o maior feito de sempre da Humanidade: pisar a Lua. Quer nos motores, quer nos computadores, quer nas comunicações, tudo era precário quando comparado com o que há hoje disponível, o que só traz mais brilho ainda à coragem dos cosmonautas e ao engenho dos cientistas. Qualquer dos nossos telemóveis tem mais capacidade de processamento que o Centro de Comando em Houston. Até a retrete do meu quarto na Coreia tinha mais tecnologia do que o Módulo Lunar. O que não fariam homens com o arrojo de um Armstrong ou de um Aldrin se a tivessem disponível? Possivelmente, se em vez de num foguetão Saturno V se tivessem montado neste cagueiro, não teriam só ido à Lua mas teriam pousado em Marte.

sexta-feira, março 29, 2013

Dever



Lisboa-Francoforte-Pequim-Jeju-Seul-Dubai-Lisboa: assim pelos ares foi a minha semana antes da da Páscoa, com quase quarenta horas de voo. Deu para uns bochechos de sono, alguma leitura e uns quantos filmes sob os auspícios da Air China e da Emirates.

Revi pela enésima vez o “2001 Odisseia no espaço” e pela enésima vez me fiquei a interrogar sobre o sentido da cena final que provavelmente não tem só um mas vários. Vi e sorri muito com o “Butch Cassidy and the Sundance Kid”, que tradutores com excesso de alforria intitularam em Portugal “Dois homens e um destino”. Só nos anos sessenta, com o optimismo estrutural da época,  se faria um “western” assim, com tantos tiros e tão poucos mortos, com diálogos de um humor tão surreal e com música – pasme-se o topete – do Burt Bacharach. Em todo o caso, um excelente Paul Newman ao lado de um Robert Redford em menor forma. Gramei ainda, é verdade que em estado meio cataléptico, com “A rede social”, que confirmou as minha suspeitas de que só um cara-de-cu encartado conseguiria parir uma coisa tão viscosa e fascizante como o “Facebook”.

Vi também o Lincoln, um bom filme, com uma reconstituição histórica de grande gabarito e uma interpretação de facto magistral de Daniel Jay-Lewis: desta vez reconheço que não se trata de propaganda de “Hollywood”. Jay-Lewis brilha tanto na construção de um personagem complexo em que se cruzam o sonhador que pugna pela perenidade de uma ideia com o político habilidoso e cínico q.b. que manipula para a fazer vingar, ou o líder paternal de um país em guerra com o homem de família a braços com um destino trágico, como na sua restituição na tela. Nada revela mais a superioridade de um actor do que um grande plano da cara durante um monólogo longo e Jay-Lewis passa essa prova sucessivas vezes com grande à-vontade, modulando voz e músculos e olhar com invulgar subtileza e trazendo à vida o Lincoln que ainda hoje transparece com vividez nos seus escritos. Aliás, diga-se de passagem que será difícil captar a riqueza desta interpretação sem ter lido previamente Lincoln, o que por sorte eu tinha feito há cerca de um ano, como aqui relatei no blogue.

Finalmente, vi o “Argo”, que constituiu uma agradável surpresa. Ben Affleck nunca na vida será um grande actor, mas algo promete aqui enquanto realizador. Argo é um “thriller” eficaz, que captura bem o ambiente totalitário crescente na revolução iraniana, mas não de forma maniqueísta, não fugindo às gordas culpas no cartório que o Ocidente tinha na situação. O momento mais substancial do filme, à volta do qual a acção orbita, é a decisão muito pessoal de Mendez, o agente encarregue de tirar seis diplomatas americanos do país, quando decide avançar com a operação apesar de novas instruções em contrário das suas chefias, para não abandonar essas pessoas à sua sorte. Mendez fá-lo apesar de saber que irá partilhar com os que vai ajudar um risco de vida, se falhar, mas também um risco de carreira, se tiver sucesso. E por isso “Argo” é sobretudo um filme sobre o Dever, sobre o momento em que a nossa consciência fala mais alto do que os medos, sobre o ápice em que num lampejo nos tornamos mais livres, quase livres. Talvez de facto livres. Disso se trata, muito mais do que uma fita de acção sobre um resgate de reféns durante a revolução iraniana.

Tanto “Lincoln” como “Argo” se podem simplificar como sendo histórias sobre homens intimamente compelidos a fazer aquilo que acharam certo fazer-se. Mas enquanto Lincoln o fez sobre o grande palco da História, com todos os olhares sobre ele e destinado à memória dos povos, Mendez, em “Argo”, toma uma decisão solitária, condenada ao esquecimento, com ele próprio como única testemunha saciada pelo bem feito. São pessoas como a que Affleck encarna, heróis anónimos que quotidianamente por esse planeta fora discretamente se chegam à frente, que permitem o consolo de pensar não sermos afinal, nós humanos, uma espécie tão rasteira e infestante como transparece da informação que quotidianamente polui os nossos noticiários.



Neste momento, recordo aqui duas histórias mais próximas sobre homens desses que não foram escravos.

Em criança, ia muito durante as férias no Algarve para casa de um padrinho da minha mãe, médico de profissão. Era um homem grande, de olhar cansado, de longos horários, um joão-semana que atendia doentes de segunda a sábado em quatro ou cinco terras diferentes. Certa vez, ele regressava a casa na companhia da mulher debaixo de  um temporal tremendo, de noite, com pouca visibilidade, pelas curvas da serra algarvia, quando de repente quase que bateu numa grande pedra que rolara pelo barranco abaixo, impelida pela chuva. Evitou a colisão “in extremis”, conseguiu controlar o automóvel e pará-lo metros à frente. Aí saiu do carro, foi até à pedra, empurrou-a com esforço até à berma e regressou completamente ensopado para seguir viagem, perante o aborrecimento da mulher:

- Olha em que estado ficaste! Porque tinhas que ir fazer aquilo? Não tinhas já passado?
- Eu já. Mas o próximo ainda não.


A outra: quando uma jovem doutouranda no meu departamento na universidade começou a trabalhar comigo numa das cadeiras que eu lá dou, perguntou-me:

- O seu pai não trabalhava no Hotel Ritz? Não era lá director?
- Sim, porquê?
- Que coincidência. Porque o meu pai trabalhou com o seu pai. Lembro-me bem porque ele me contou que o seu pai foi a tribunal testemunhar a favor de dois trabalhadores num processo de despedimento.
- Tem a certeza? Não me lembro nada de ouvir falar nesse episódio.
- Quase de certeza, mas eu confirmo com o meu.

Dias depois, confirmou-me que falara com seu pai e de facto assim tinha sido. A empresa despedira dois funcionários de forma injusta e eles pediram ao meu pai, que conhecia os factos, que testemunhasse por eles contra a entidade patronal. Pela altura em que isto correu, percebi que seria pouco após ele ter ascendido à direcção do hotel, após anos de subida a pulso a partir de uma posição modesta. E compreendi imediatamente que ele fora colocado num dilema, entre fazer o que a sua consciência acabou por lhe ditar ou em alternativa  proteger-se, não pondo em risco uma promoção recente que culminara anos de esforços, turnos e dedicação, negando-se portanto a prestar aquele testemunho. E tomada a sua decisão, cumpriu o seu dever e nesse dia jantou em casa como se nada fosse, sem uma referência ao sucedido, sem uma palavra de auto-elogio, como se o dia fosse um dia como os outros e não um dia absolutamente heróico.

 

A ambos estes pequenos episódios falta a tensão dramática, de vida ou de morte, da situação retratada em “Argo”. Mas todos partilham a mesma centelha ancestral que brilhou no olhar do primeiro homem livre. Porque não há homem mais livre do que aquele que faz o que a sua inteligência lhe dita, quebrando as grilhetas do medo, da convenção, da preguiça ou meramente da inércia. Cumprir o dever que reflectidamente nos impomos, optar por vontade pelo sacrifício do bem-estar imediato em prol do que julgamos ser a nossa obrigação, tal é o que nos pode diferenciar das hordas de escravos que em todos os tempos calcorreiam as ruas dos sucessivos impérios. Só quem o faça, sempre ou amiúde, ganha o direito de afirmar a sua liberdade. Por honestidade aqui confesso, com algum mal-estar, que não é infelizmente o meu caso.