sábado, novembro 14, 2015

14 de Novembro

Ontem, mais uma vez a peste acordou os seus ratos e mandou-os morrer na cidade feliz, como escreveu Camus.

Este é talvez um momento demasiado emotivo para dizer qualquer coisa, mas por outro lado há momentos em que a comoção pode ajudar à lucidez. A decisão sobre o que fazer não pode estar desligada do horror pela matança de ontem, nem da angústia dos pais e amigos que procuram pelo Twitter um sorriso de vinte anos que não voltou a casa.

Por isso talvez seja o momento certo para dizer que o “jihadismo” é um novo nazismo e terá que ter a resposta que teve o nazismo do passado. E é melhor que essa resposta seja dada por democracias na plena força da suas convicções do que por democracias minadas pelo extremismo e pelo medo.

Os assassinatos no Charlie Hebdo ainda se poderiam “explicar” como uma resposta bárbara e tresloucada à “provocação” de uns cartonistas que tocaram num assunto tabu para os sectários. Foram um ataque à nossa liberdade de expressão, o que não é coisa de somenos.

A carnificina de ontem vai um passo mais longe. O que ontem metralharam foi a nossa aspiração a ser felizes, a “pursuit of happiness” de que falavam Jefferson e Hamilton, o direito a jantar com os amigos, a ir à bola, a ouvir música, a estar na nossa.


Os homens que ontem perpetraram os seus crimes, ou pelo menos os seus mentores, querem impor uma sociedade à medida das suas curtas vistas, em que não se pode ouvir música, nem ir à praia, nem jogar vólei, nem rir alto, nem tomar um copo, nem escrever um livro, nem lê-lo. Uma sociedade em que uma rapariga bonita não possa ter o gosto de partilhar um sorriso. Uma sociedade que não pode aspirar a um futuro nem inspirar-se no passado. Estas sociedades existem: no leste da Síria e no norte do Iraque ocupados pelo Daesh, no Afeganistão e no Paquistão dos talibãs, no norte da Nigéria flagelado pelo Boko Haram.

Acho que estamos em boa altura de perceber que as coisas simples e boas da vida não são garantidas. Foram-nos legadas por uma longa linhagem de avós que tiveram que lutar por elas no passado. Também tivemos, no Ocidente, os nossos Daeshes e com muita dor e sangue conseguimo-nos livrar deles, alguns não há tanto tempo assim. As coisas simples e boas da vida podem ter que ser defendidas e aparentemente chegou a altura de serem defendidas.

Talvez um primeiro passo seja entender que a menos que nos queiramos limitar a ser entes meramente termodinâmicos – e nesse caso tudo seria indiferente, a vida como a morte – então temos que ver que há um Bem e um Mal, e que neste momento da História o Ocidente é o Bem e o “jihadismo” é o Mal.

Uso a expressão “Ocidente” como conceito e não como local geográfico. Na luta contra o "jihadismo" ajudará o orgulhar-nos de ser “ocidentais”, o fustigar-nos com menor frequência, o embevecer-nos um pouco menos com a mediania das sabedorias exóticas. Afinal, foi neste Ocidente, em cujas esplanadas bebemos uma cerveja enquanto folheamos o livro que livremente nos apeteceu comprar, que houve espaço para as liberdades que hoje temos por garantidas, embora sejam frágeis. Estas liberdades definiram um perímetro de criatividade onde se descobriram as vacinas, a máquina a vapor, o fio eléctrico, o algoritmo de computador. Estas descobertas geraram a afluência que levou a vidas mais longas, com menos privações e com mais oportunidades para uma fracção cada vez mais alargada da sociedade. E ao mesmo tempo, tal como a afluência e a liberdade de Atenas se traduziram no Parténon, a afluência e a liberdade do Ocidente deram frutos como Shakespeare ou Picasso.

É contra estas liberdades que os esbirros do Daesh disparam e em particular contra a liberdade de não ser obrigatório viver como eles querem. Não tenhamos por isso medo de nos sentir superiores a eles e não cometamos o equívoco de confundir os nossos erros com as razões deles. O Ocidente errou muito. Cometeu ao longo dos séculos muita injustiça e muita barbárie, primeiro com os seus e depois com terceiros. Provavelmente fará no futuro outros erros porque vivemos num planeta chamado Terra onde nada é perfeito e tudo é arriscado. Mas apesar dos muitos erros algo o Ocidente evoluiu. Sobretudo, o seu propósito não está na morte do outrem e na degola dos inocentes e esta verdade, mais do que uma diferença, constitui uma superioridade.

Infelizmente, e tal resulta da natureza das coisas, só a autoridade moral não chegará. O “jihadismo” islâmico terá que ser aniquilado por todos os meios incluindo os militares, tal como o nazismo o foi: com um foco total. A luta do Ocidente contra o nazismo e os seus aliados não foi um passeio, foi uma sucessão de horrores para vencer o Horror, uns necessários, outros que hoje nos parecem erróneos como Dresden. Esperemos que sobre o Daesh a vitória seja possível com menos sofrimento inocente, mas não nos iludamos: algum ocorrerá.

Para manter o foco, haverá aliados improváveis. Tal como Churchill e Roosevelt levaram até às últimas consequências a aliança com Estaline porque precisavam dele para ganhar, talvez tenhamos que reabilitar os senhores Putin e até Assad como companheiros necessários. Não é simpático mas mais uma vez relembro que isto se passa no planeta Terra, uma rocha dura feita de oxigénio, silício, alumínio, ferro e fria realidade das coisas.

Finalmente, nesta luta devemos não perder a alma. Tal como os ingleses mantiveram uma democracia parlamentar a funcionar debaixo das bombas de Hitler, o Ocidente terá que fazer o mesmo. Mais uma vez, uma questão de foco: a batalha trava-se contra o “jihadismo” ou o integralismo muçulmano ou que lhe quisermos chamar, não contra os muçulmanos vistos colectiva ou individualmente. Não nos esqueçamos que a larga, larguíssima, maioria das vítimas dos integristas são outros muçulmanos. Perguntarão alguns: mas não há muito tipo nas comunidades muçulmanas que tem posições dúbias ou mesmo de satisfação pelas acções dos terroristas? Há. Em qualquer conjunto de seres humanos há sempre uma percentagem significativa de imbecis. Que isso não nos distraia. Se dúvidas nos assaltarem, recorramos à leitura de Péricles e ao seu discurso fúnebre aos mortos da guerra do Peloponeso, onde a natureza da democracia vem bem explicada.

Ontem à noite o meu primeiro pensamento foi para o meu sobrinho que estuda em Paris, depois para alguns amigos dos meus filhos, que em pequenos correram pela nossa casa, que também lá vivem. Pessoalmente fui só tocado pelo medo e não pela tragédia, mas penso nos pais como eu e nos filhos como os meus que não tiveram a nossa sorte. Hoje, 14 de Novembro de 2015, não me consigo abstrair de que o Liceu Francês Charles Lepierre foi, juntamente com o terceiro esquerdo do número 39 da Avenida do Uruguai, a minha escola de Liberdade. Não consigo esquecer que em Paris há uma cabina telefónica no Trocadéro de onde aos dezoito anos telefonei a uma namorada com os últimos francos que chocalhavam no bolso e há uma pequeno parque infantil de rua ao pé do Hotel Salé onde os meus filhos brincaram com pequenos franceses enquanto nós descansávamos as pernas e há um restaurante na ilha de Saint Louis onde matámos a fome a horas tardias num fim-de-semana com bons amigos e há aquele pato que nadou quase meia hora ao nosso lado enquanto eu e a minha mãe e a memória de meu pai passeávamos ao longo do canal de Saint Martin. Sei por isto que, enquanto escrevo, “je suis”, mesmo “beaucoup”, Paris. 



domingo, outubro 11, 2015

Mil e uma noites



Este texto podia começar assim: “Querido rei, era uma vez um país... Um país onde grassava uma terrível epidemia que dizimava a população outrora feliz. Os mais velhos caiam vergados à peste, os mais novos fugiam para outros reinos para não sofrer o mesmo destino, só os nobres, resguardados nos seus palácios, pareciam ao abrigo. Incrédulos com a amplitude da maleita, os habitantes não percebiam: uns opinavam que a doença viera de fora, que os atingira como a muitos outros reinos e que espiões e esbirros traidores ao serviço do Imperador haviam envenenado a água com peçonha para melhor calcarem os povos do império; outros insistiam que não, que a praga sempre cá estivera e que fora a vida dissoluta do povo que diminuíra as defesas das pessoas permitindo ao micróbio corroer os corpos e exasperar as mentes. O mal tomou tais proporções que vieram médicos enviados pelo Imperador, que receitaram remédios amargos e duras dietas. A gente queixava-se da doença e queixava-se da cura. Não havia consenso. Um terço da população clamava contra o doutor estrangeiro, o estranho que trouxera o vírus. Outro terço insultava esse terço, que, dizia, vivia sem emenda uma vida que só podia dar naquilo. E o outro terço olhava sem saber que dizer para os outros dois terços vociferando um contra o outro.

Certo dia, cartazes pelas ruas e arautos nas praças anunciaram um espectáculo inovador. Um artista magnífico vinha cantar as dores do povo. Trazia rasgados elogios dos sítios por onde passara. Pela sua poesia, as pessoas olhariam finalmente para a sua realidade e compreenderiam. Nos albergues e tabernas, os entendidos explicavam aos basbaques a melodia da voz, a harmonia da rima e a profundidade da metáfora. Caída a noite, o principal largo da capital encheu-se para ouvir o cantor. O povo ouviu, ouviu aplaudir e aplaudiu também, ao princípio timidamente, depois arrebatado. No final, todos comentavam o grande sucesso. Só um homem destoava do consenso geral e não percebia tanta unanimidade. Na sua opinião, a voz era pífia, a rima coxa e a metáfora inexistente, substituída que estava por umas piadolas ao pior gosto. Esse homem usava pala, porque perdera um olho numa batalha. Era o rei do atormentado país.”

Esse homem podia ser eu, apesar de só ser rei de um apartamento em Campolide. A verdade é que podia ter sido quase a obrigação patriótica a levar-me a entrar pela primeira vez no cinema Ideal, na rua do Loreto, para ver o episódio um da trilogia “As 1001 noites”, do realizador português Miguel Gomes. A tripla fita tem recebido prémios e honrarias diversas no circuito internacional de festivais. A crítica nacional e estrangeira não poupa na loa, encomiasta e até extática: ele é Economist, ele é Cahiers du Cinéma, mais jornais americanos, a francesada do costume, toda a roda enfim de cadernos de fim-de-semana da imprensa que por cá se diz e tem por séria.  Como corolário desta unanimidade acabou nomeada para representar Portugal nos Óscares. 


Mas não foi este forrobodó elegíaco que me levou naquele domingo, patroa pelo braço, até à sala do Chiado. Sei do que a casa gasta: há suplementos culturais para encher e vaidades para cutucar, pelo que ligo pouco e sempre muito prudentemente ao que se diz. Determinante na minha decisão de ida foi o facto de uma amiga muito estimada ter trabalhado no filme. O nome de uma amiga nossa no elenco que desliza a grande velocidade enquanto os espectadores abandonam a sala cria uma relação de proximidade com o objecto, feita de ónus afectivo e cerimónia. Ficamos compelidos a não faltar tal como não faltamos a aniversários, casamentos e baptizados mesmo que a cabeça nos doa ou seja para lá de Foz Coa. À toa destes sentimentos, lá fui.

Fui e saí com um problema. Dado o trabalho que a minha amiga empenhou na produção do filme, dado o carinho que sei que nutre pelo resultado final, como vou poder dizer o que penso sem causar excessivo melindre? Talvez com alguma franqueza: “olha minha querida I, a culpa não será tua mas o filme é bastante mau, pelo menos o primeiro da trilogia que os outros ainda não vi”. De facto aquilo é fraquinho e achei um dos episódios, intitulado “Homens de pau feito”, do mais medíocre que vi em cinema desde uma cena no “Armagedeão” em que um Bruce Willis todo esgatanhado trava, com esgares faciais, patriotismo peganhento e força de braços, um meteorito grandalhão que ameaçava pulverizar a Terra. Algo do género.

“1001 noites” anuncia-se como um olhar sobre o Portugal intervencionado pela “troika”. A estrutura é de uma sucessão de episódios, em teoria contados pela Xerazade de umas quaisquer mil-e-uma-noites, referindo-se a um certo país que é o nosso. Na crítica tem-se feito um festival à volta deste recurso narrativo como se fosse a descoberta da perspectiva, o que só não me surpreende porque tal como o próprio filme testemunha em Portugal a tendência para o foguetório é grande. O recurso é este como podia ser outro qualquer, os contos de Grimm ou as fábulas de La Fontaine, e está lá para permitir um toque às vezes fantasioso, às vezes surrealista aos episódios, mas a oscilação entre estes registos e o realismo documental pareceu-me francamente desequilibrada.   Verdade que quem sou eu para estar aqui com estes papos, mas também não é por aqui que o filme mais afocinha.

O primeiro episódio narrado pela nossa Xerazade alfacinha, o tal “Homens de pau feito”, conta-nos o encontro numa tasca manhosa entre o pessoal da “troika” e o lado português, representado por um primeiro-ministro e uma ministra das Finanças engomadinhos e um sindicalista que passa o episódio a dizer palavrões. Parece-me que o realizador nos oferece este palavreado para por um lado tipificar a personagem (genuína, “do povo”, diz palavrões) e por outro para criar um registo cómico (riam-se todos que ele disse “porra”). Só que..


(Parêntese 1: O palavrão

Mais ou menos de duzentos em duzentos anos há um terramoto de grande dimensão em Lisboa. E mais ou menos de duzentos em duzentos anos, acontecimento tão telúrico como o embate de placas tectónicas, nasce em Portugal um autor de envergadura capaz de utilizar o palavrão com graça.Tivemos Gil Vicente, dois séculos, Bocage, dois séculos, Manuel João Vieira agora e possivelmente mais dois séculos escoarão até que venha o próximo, porque a arte do palavrão é das mais difíceis. Acompanhando estes generais, tivemos alguns bons lugar-tenentes, como Lobo de Carvalho, o abade de Jazente, o recentemente falecido Vilhena e o anónimo autor de "O meu pipi". E ainda o meu prezado amigo VM, a quem qualquer palavra acabada em alho dirigida ao parceiro de jogo sai daquele vozeirão com as mesmas subtis graça e pertinência de um remoque de Churchill.

Como a arte do palavrão é difícil, o uso do palavrão em arte difícil é, e portanto o autor prudente não se aventura. Eça tem, que eu me lembre, um palavrão em toda a sua obra, uma "sorte de cabrão" desabafada em "Os Maias". A melhor literatura vive desafogadamente sem ele: não quero garantir, mas não me recordo de qualquer alarvidade em Tolstoi, Proust, Borges, Mann, Camus, só para citar alguns que jogam no primeiro time. Mesmo nos mais contemporâneos, prefiro por cá a continência de um Cardoso Pires ao desbragamento de um Lobo Antunes. Um romance é um quadro, não uma fotografia de repórter. Não precisa de ter nele toda a bruta realidade, a menos que sirva o propósito e se saiba geri-la. Para dar o tom ambiente, o mais das vezes um plebeísmo chega.

Quando ouvi o personagem do sindicalista soltar o seu chorrilho de sessenta segundos de palavras com hífen e referências à mãe perguntei a mim próprio que m... Que coisa seria aquela. Duas ou três velhotas na fila de trás soltaram um risinho nervoso. Tinham idade para ser daquelas gerações ancestrais, de tempos mais cerrados, quando qualquer historieta que metesse puns passava por boa anedota. Não percebi se se tratava de uma tentativa de recurso humorístico ou se a narrativa pretendia fazer-nos notar que aquele senhor pertencia ao bom povinho. Dada a visão de esguelha que o filme tem sobre o povo, até podiam ser as duas.)


Fechado este parêntese, regressemos ao país intervencionado pela “troika”, visto através da óptica de Miguel Gomes, e ao tal primeiro episódio. 

A intervenção da “troika” será o acontecimento mais traumático da nossa história colectiva no presente regime. Constituiu uma perda de facto da nossa independência, um anti-clímax para o ego nacional após a bebedeira do euro barato e do crédito fácil, da Expo 98 e do Euro 2004, um desbaratar cruel e infame da nossa melhor juventude, um regresso à menoridade europeia depois de mais uma vez nos termos julgado no centro do mundo. E, ao mesmo tempo que parece um evento singular, sente-se como uma recorrência, a mera consequência de uma alarvidade que nos está colectivamente no sangue desde o tempo da ingovernabilidade dos lusitanos e que regressa como um sismo, a cada dez ou cinquenta anos, para abalar o chão debaixo dos nossos pés. 

Que reflexão nos traz o realizador Miguel Gomes sobre isto? Que aprendemos sobre o contexto, as causas, as culpas, as lições de um dos mais dramáticos acontecimentos da nossa história recente? Que faceta de um assunto tão complexo escolhe para nos mostrar? Não vos vou contar detalhes para não vos estragar o filme (embora não haja muito para estragar), mas sempre vos adianto que o tal episódio dos “homens de pau feito” sugere que o cerne do nosso problema está na falta de robustez sexual dos nossos governantes e dos homens da “troika”, estes últimos com a carga acrescida de terem sido gozados na escola quando eram pequenos. Portanto a magna tese política é esta, de que somos vítimas de uns frustrados com carências de rigidez.


(Parêntese 2: Só para respirar um bocadinho, para acalmar)


É só a mim que isto parece pouco? Não há mais nada para dizer? Falta de pila? A sério? Houve aqui alguma vaga tentativa de reflexão política ou filosófica ou ética ou social ou económica ou qualquer coisa? Ou é meramente o grau zero de tudo, a imagem acabada de uma preguiça em fazer bem que tem a sua parte de culpa em termos chegado a esta situação? Se alguma metáfora há neste episódio é justamente essa, e involuntária: a falta de empenho do cineasta em puxar pela cabeça e fazer bem feito espelha aquela falta de seriedade política que nos levou a este assado.

Já que estamos falando de cinema, compare-se com a policromia com que os norte-americanos abordaram um acontecimento traumático deles: a guerra do Vietname. Vejamos o que nos trouxeram John Wayne, Elia Kazan, Michael Cimino, Francis Ford Coppola, Milos Forman, Oliver Stone, Stanley Kubrick ou Barry Levinson, entre dezenas de outros. Filmaram várias perspectivas sobre o tema: a do patriota, a do soldado eternamente marcado na mente ou no corpo, a do jovem que não quer ir, a do homem totalmente lúcido que percebe o absurdo e a do homem que desce aos infernos para se encontrar com ele e cumprir esse absurdo, a do companheiro de armas, a política, até a lúdica. Nenhum deles se reduziu ao mínimo, todos procuraram trazer algo e olhar mais além. Claro que estes nomes tiveram grandes meios, mas não foi por aí porque um grande filme nunca depende de meios, depende da inteligência que se acomete.

A título de contra-exemplo, existe felizmente muita boa obra em Portugal sobre a “troika”, só que escrita antes da “troika” cá ter vindo. Eça tem um curto e belíssimo conto chamado “A catástrofe” que relata o ambiente numa Lisboa submetida a uma imaginária invasão externa. Nesse conto, o narrador desenvolve os sentimentos que lhe vêm ao olhar da sua janela no Largo do Pelourinho para uma sentinela estrangeira que guarda o Arsenal. No final do conto, diz-nos esse narrador:

“Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a sentinela! Mostro-lha, passando devagar, de guarita a guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...

Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta janela, vejam , sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e sendo pequenos pelo território ser grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.”

Não será certamente a única, nem será sequer a minha, mas é pelo menos uma perspectiva, e com a riqueza que falta às larachas sobre molezas inoportunas.


(Parêntese 3 – O frenesim

Independentemente de perceber as razões comerciais e de satisfação dos egos que concorrem no frenesim mediático à volta do filme, admira-me um pouco que não haja qualquer tentativa de crítica, mesmo que ténue. Li duas entrevistas com o realizador do filme e as perguntas perguntam pouco pelo que as respostas não respondem muito. Há bajulação e auto-satisfação, “qb”, e nenhuma interrogação que vá à canela. Depois este ambiente repercute-se pelas curtas das páginas culturais, pelas rodas de copos e pela atmosfera de miasma das redes sociais, num jogo de espelhos em que nunca se salta para o outro lado do espelho, em que nunca se parte algum vidro para olhar para os cacos e interrogar o que eles ocultavam.) 


Mal começados com este primeiro episódio, entramos numa sucessão de histórias que se passam num Portugal rural e operário e genericamente lá das berças. A abordagem é documental, garatujada aqui ali por umas pinceladas surrealistas. Aqui, sofro nova irritação porque a perspectiva é sobretudo a do olhar sobre o castiço. O castiço é a imagem, vista de cima para baixo, que o lisboeta com aspirações a intelectual, que frequenta o Bairro, tem do povo. É uma praga que permeia também o jornalismo português, que assim que tira o carro de reportagem da autoestrada corre de microfone ansioso à procura da pronúncia beirã. É uma perspectiva soberba e sobretudo muito pouco carinhosa para com os visados. Trazem-se uns pategos para diante da lente para fazer sorrir os intelectuais do subúrbio, que inconscientemente se sentirão aliviados das suas culpas com o estado da nação: com um país profundo destes, que é que eles poderiam fazer?

Já citei aqui no blogue uma notável frase de Doisneau sobre o mais profícuo modo como a arte pode olhar para os mais desfavorecidos. Dizia ele que os rostos dos que madrugam são muito comoventes. Esta comoção, este movimento conjunto, é algo que não encontro de todo neste filme. Esbarrei sempre numa capa de sobranceria que me impediu de aceder aquela gente e ao que ela nos tinha para dizer sobre o drama que a tantos caíu em cima. Faltou ali já não digo amor mas pelo menos respeito, o respeito de Rossellini, de Mizoguchi, de Huston ou de Tati, o respeito com que Caravaggio ia buscar prostitutas e camponeses para os pintar como virgens marias ou santos de altar nunca mascarando  os traços que os revelavam, para escândalo dos patronos. O respeito não é ir beber minis com os “populares” a uma associação recreativa de um bairro degradado. O respeito é respeito, só isso.

Pergunta-me a I: mas não achaste comovente as entrevistas às pessoas que sofreram? Achei algumas, em particular a do pequeno empresário que tudo perde, porque a história dele comove e ele é sincero a contá-la. Mas esse mérito foi das lentes da câmara, que não distorceram o que viram. Ao contrário, sempre que entrámos na perspectiva do realizador, sempre que ele colocou o filtro da sua arte na ponta da objectiva, esse filtro tapou em vez de sugerir, revelar ou amplificar. Aí deixei de ver as pessoas e a sua dor.


Porquê? Para além da já referida atitude, Miguel Gomes tem uma dificuldade que me parece óbvia com a metáfora. A boa metáfora é simultaneamente subtil e evidente, e serve um propósito. Ao revés, neste filme há metáforas evidentes sem subtileza (a fuga a correr do realizador no início do filme, ridícula) e metáforas tão subtis, tão subtis que de evidentes nada têm, até para o próprio Miguel Gomes. Diz Gomes numa entrevista que a cena da explosão da baleia que deu à praia é uma metáfora, só que não sabe de quê. Pois. Aí reside o problema: uma baleia a rebentar é espectacular, podia até ser um vídeo do Youtube cheio de visionamentos, mas que propósito serve neste filme? Se ele não sabe, quem sou eu para saber?

Enfim, este queixume já vai longo por isso concluo dizendo que no sucesso de “1001 noites” deslindam-se afinal as raízes do insucesso que nos levou ao jugo da “troika”: muita fanfarra, alguma farra, pouca garra. Será esse o seu mérito.

Como te prometi, querida I, irei ver os episódios dois e três, à espera do milagre. Mas por enquanto ficas-me a dever seis euros.

sábado, junho 13, 2015

Três mergulhos nas águas de Março


1) O projecto com o cê lá no meio


Dias atrás, fui palestrar num evento da empresa em que trabalho. Na véspera, recebi um telefonema da menina da Direcção de Comunicação, avisando como quem chama a atenção para um botão desabotoado que o “Power Point” que eu enviara não respeitava o acordo ortográfico. Ainda se propôs poupar-me trabalho:

- Quer que eu corrija?
- Não, deixe ficar assim que está bem - respondi, usando a autoridade que ainda vou tendo na companhia para incumprir a norma que prevê a adopção (com pê) das regras do acordo na documentação da empresa.

Já faz anos, escrevi aqui no blogue um abardinanço à volta deste tema do acordo ortográfico. Na altura não tinha ideias claras sobre o assunto, nem partido tomado entre ilustres que defendiam e ilustres que denegriam. Hoje, passados estes anos de exame, estou convencido que se perdeu uma excelente ocasião para se estar quieto e que a adopção unilateral do acordo por Portugal é uma teimosia típica e algo saloia de um país em que se preza pouco o reconhecimento dos erros.

Por isso por mim os actos e as actas e os factos e os projectos e os objectos e até os dejectos vão continuar lá com o cêzito da praxe, o mesmo cêzito ínfimo mas presente que ouvido que me oiça atento poderá ouvir quando falo. E manterei aquele micro-segundo de respiração que o hífen me proporciona.

Pelos mesmos dias da minha palestra e da conversa com a menina da comunicação que me queria normalizar a apresentação, recruzei-me no som do carro com as “Águas de Março”, do Tom Jobim e pela Elis Regina. As águas entraram-me pelos ouvidos e ficaram lá uns dias a rolar, sem que as conseguisse tirar cá para fora, que pensei ter que ir a um otorrino. De vez em quando lá estava eu, murmurando: é pau, é pedra. Na letra dessa canção aparece por acaso a palavra projecto (É o projecto da casa, é o corpo na cama/É o carro enguiçado, é a lama, é a lama). Tentei por isso perceber como é que a Elis a pronunciava, se com cê se sem ele. Ouvi no “Youtube” várias versões e aventuro-me a concluir que está lá. Quase sumido como deve ser, ainda para mais perdido no doce da pronúncia, mas é o projecto da casa e não o projeto da casa.

Não me espanta que assim seja: eu, Elis Regina e António Carlos Jobim falamos a mesma língua, que se chama português e que é árvore de mil ramos. Criou-se por cá uma ideia peregrina de que o acordo é coisa de brasileiros, que curam menos da nossa língua, o que está totalmente errado. O acordo tanto corta o esquerdo a Pessoa como a Drummond. 

E isto é ensinamento que trago da casa paterna. Portugueses e brasileiros acotovelavam-se na mesma estante, só que os portugueses vinham do encadernador vestidos de azul e os brasileiros de verde. Lá estavam de várias épocas Machado de Assis, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo, Ubaldo Ribeiro ou Graciliano Ramos, de quem me recordo em pequeno o meu pai me pôr o “Vidas Secas” nas mãos, para que eu sentisse – dizia ele – um dos melhores livros da nossa literatura. Notem o nossa. E todo o Jorge Amado, que tanto apreciava, do militante comunista do “Cavaleiro da esperança” à lágrima dos “Capitães da areia” ao Eça tropical de “Gabriela, cravo e canela”, muito antes da novela o popularizar por cá.

Por isso não há nesta história eles e nós, há nós e nós. Tanto é nosso o baiano Amado como o lisboeta Cardoso Pires, não menos que são nossos o açoriano Nemésio e o beirão Aquilino, com escreveres tão distantes entre eles. O que não é nosso é o acordo, que estropeia esta variedade. O que me chateia profundamente na natureza do acordo ortográfico, para além da prosápia, é a ideia de uniformizar o que só pode ser rico na riqueza e nunca no estereótipo.





2) O fecho dos nossos Verões


Jobim escreveu “Águas de Março” com quarenta e cinco anos, num período de muitos problemas pessoais: perseguição política, problemas de saúde, alguma redução de notoriedade, o que o levava a sentir que estaria acabado. Sua irmã Helena Jobim contaria mais tarde que nessa altura ele temia “encerrar a carreira aos 80 anos, cantando Garota de Ipanema num circo do interior e sendo vaiado”. “Águas de Março” começa por isso com um muro na nossa frente: É pau, é pedra, é o fim do caminho/É um resto de toco, é um pouco sozinho.

À medida que a canção começa a fluir, os elementos pessimistas (“É a noite, é a morte”; “Tombo da ribanceira”;”É o fim da ladeira”;”É o  fim da picada”) alternam com as pequenas coisas que fazem a grandeza da vida (“É a vida, é o sol”; “É a luz da manhã, é o tijolo chegando”, “É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão”; “É o queira ou não queira” – esta última uma bonita metáfora da liberdade). O poema vai escorrendo e o ritmo saltitante e a magia das palavras vão fazendo das suas. “Águas de Março” transforma-se numa alegoria da vida, singela, refrescante e positiva. A vida é feita de coisas boas e coisas más: sem uma dessas metades, a vida não seria vida e não sentiríamos a completude que Tom Jobim nos instila. E a vida mesmo no início do Outono é também esperança, pelo menos enquanto houver amor, como conclui Jobim: são as águas de Março, fechando o Verão/é a promessa de vida no teu coração.

Tal como a Jobim, também sobre mim caem as águas de Março. Ando pela mesma idade, um pouco mais: estou a chegar ao fim do primeiro quarto de hora da segunda parte, aquela fase do encontro em que ainda há jogo para jogar mas em que se começa a pensar no apito final, gerindo o resultado, o esforço e o tempo.

Em minha casa, o corredor tem agora duas portas entreabertas, permitindo ver as camas feitas que em recato esperam outros mais sonoros dias como aqueles que troam na minha memória, motivando uma lágrima ao canto do olho. O meu filho mais velho está em Manila, a “fazer voluntariado”, como se diz agora, ensinando em orfanatos o que já aprendeu a quem teve muito menos sorte do que ele. O mais novo empina em Bruxelas químicas e matemáticas para os exames que se aproximam. Estão nas suas vidas e eu devia ter-me por feliz com isso e até me tenho. Desde o dia em que me vieram mostrar o primeiro, atabafado em mantas, numa porta lateral da Alfredo da Costa, que o que desejei para eles era que fossem pessoas de bem e homens livres e com mundo nos olhos. Não devia portanto protestar por estar aparentemente a conseguir. Mas há momentos em que sinto, como Jobim, um resto de toco e um pouco sozinho.

Que fazer então? Como sugere a canção, aceitar que o Verão também tem o seu fim e beber das águas de Março, procurando a promessa de vida no coração dela, que me espera na sala para percorrer a dois um colorido Outono e um suave Inverno.


3) A peroba do campo e o nó da madeira

“Águas de Março” foi escrito no sítio – no sentido brasileiro – que Jobim possuía em Poço Fundo, nas serranias a norte do Rio de Janeiro. Essa vizinhança do campo permeia quase todos os versos, desde o sapo, a cobra e a rã à febre terçã que molesta homens de nome simples como João e José, que imaginamos trabalhando a roça encimados por chapéus redondos de palha, ou construindo uma casa com o tijolo que chega, lançando a viga que vence o vão e permite a festa da cumeeira.

A natureza que envolvia Jobim enquanto este escrevia o seu maravilhoso português num papel de embrulho de pão não é selvagem nem deserta. É uma natureza que vive simbioticamente com o Homem e que sem este não se entende nem se justifica. Isto está traduzido numa das mais belas linhas da canção: É peroba do campo, é o nó da madeira.

A peroba é uma árvore de algum porte cuja madeira é muito usada no Brasil para  carpintaria. Neste verso coincidem a árvore silvestre, alta dos seus vinte e tal metros e a árvore cortada em tábua, permitindo ver os nós da madeira, para uso das pessoas. Coincidem a natureza livre e a utilidade que os homens dela tiram. Esta é uma visão algo diferente da perspectiva hoje dominante entre os chamados ambientalistas, que muitas vezes prescrevem aos outros como valor absoluto a natureza no seu estado selvagem, isto enquanto abrem uma embalagem plástica de brócolos que foram comprar ao volante do seu carro.

A palavra ecologia tem raiz no grego “oikos” que significa “casa” e é pois o estudo da nossa casa comum. Houve tempos, nos anos setenta e oitenta, em que a ecologia foi uma ciência que usava as ferramentas da matemática, da física e da química para investigar problemas e melhorar processos e tornar viável a existência conjunta de alguns biliões de seres humanos. Em paralelo, a preocupação pela sustentabilidade do nosso planeta ganhou notoriedade pública e política, o que foi bom. Percebemos agora todos, ou quase, que a água, o ar, o petróleo, os minérios ou os campos aráveis são bens escassos que há que gerir. Dinheiro, conhecimento e trabalho foram investidos para evitar cenários catastróficos e conseguimos múltiplos avanços: poluímos muito menos o ar e a água, reciclamos, gerimos melhor os recursos, gastamos menos energia para fazer mais, produzimo-la de modo mais renovável. No fundo, introduzimos nas nossas vidas e nas nossas economias o conceito de ciclo. Apesar de haver ainda imenso por fazer, melhorámos. Podemos dizer que em trinta ou quarenta anos passámos a conhecer um pouco melhor a nossa casa e como tratar dela. Quem vive nesta casa são pessoas e a ecologia tinha no seu centro as pessoas e o seu saber e por isso foi um razoável sucesso.

Hoje, pelo que leio e oiço, temo que tenhamos passado do tempo da ecologia, uma ciência, para o do ambientalismo, uma ideologia e um negócio. Vendo como tantas vezes os ambientalistas e o jornalismo que patetamente os idolatra fogem ao debate dos factos para papaguear e impor ideias feitas, muitas vezes de um absolutismo em que não há espaço para os homens, nem mesmo para aqueles que durante gerações coexistiram com a natureza, aí já não reconheço a ecologia e o que sobra é só política e política de fraca qualidade. Por vezes por mero sectarismo, e dá-me pena. Outras, por manifesto interesse particular, e dá-me raiva.

Em “Águas de Março”, há o seguinte par de versos: Passarinho na mão, pedra de atiradeira/ É uma ave no céu, é uma ave no chão. Tal como na peroba do campo e no nó da madeira, estabelece o paralelo entre a natureza livre e o seu uso pelo homem, neste caso com uma caça artesanal. O ecologista perceberia estes versos, embora preocupando-se que a pedrada ao passarinho não se tornasse desequilibrada e levasse ao seu desaparecimento. O ambientalista acharia estes versos uma barbárie e lançaria uma campanha no Facebook que receberia milhares de polegarzinhos para cima, com o objectivo de censurar o texto de “Águas de Março”, propondo no seu lugar uma versão sanitizada que não chocasse as modernas sensibilidades. Estou a exagerar, eu sei. O problema é que infelizmente não estou a exagerar muito.