Talvez por ser fim-de-semana e eu estar a descomprimir de
uma frenética semana de trabalho, deu-me uma vontade urgente, daquelas de
grávida, de zurzir um pouco na nossa mísera classe jornalística. Também é
actividade que nunca se dá por perdida, porque basta abrir a televisão num
canal de notícias para aparecer logo um lombo de repórter a pedir e a merecer
cajado. Desta feita será a propósito de uma dicotomia que já há tempos que pede
umas linhas: a das personalidades e dos populares.
Quando o jornalista nacional se quer referir às pessoas que
protestam contra o fecho de um centro de saúde em Tondela, ou tentam salvar os
seus bens de uma enxurrada na Ribeira de Frades, ou se juntam para ajudar os
bombeiros a combater um incêndio de mato, ou assistem a um concerto do Toni
Carreira, então usa o termo “popular”, por regra no plural: “populares
testemunharam a fuga dos encapuçados que assaltaram a dependência do Crédito
Agrícola de Mourão”. Os populares, para o jornalista português, são todos
aqueles que não possuem estatuto social e cultural para se poder com eles usar a
palavra “pessoas”. Os populares têm todos os defeitos que perturbam os queques
que se acotovelam nas redacções munidos de um contrato a termo certo: são do
campo e não da cidade, ou pelo menos do subúrbio; tendem a ser velhos, mais do
que novos; são pobres ou eram-no e malandros deixaram de o ser; protestam ruidosamente
em vez de serem submissos discretos; lêem o Record ou a Nova Gente e não o
Peixoto na Visão; e acorrem com alvoroço a salvar um afogado na Costa da
Caparica em vez de ir almoçar recatadamente um robalo escalado numa esplanada neo-rústica
da Comporta.
Os populares vêm do povo e logo por cima do povo português,
um povo sem graça, que não tem o carisma “pop” do povo maubere ou o destino trágico
do povo palestiniano e que por isso merece ser tratado de popular para baixo.
Em suma, o popular é na óptica editorial uma espécie de “untermensch” do
Lavradio, de lesma pisável na base da escala evolucionária, fuçando no húmus
dos arredores de Barrancos sem direito ao respeito ou à dignidade de um nome:
poderemos assistir a uma entrevista no telejornal a um popular com uma tarja na
parte de baixo do ecrã a dizer “Hélio-vizinho” ou “José-testemunha”. Certamente
não imaginam uma entrevista a um presidente de um banco sub-titulada com
“Ricardo-dono” ou a um primeiro-ministro com “Pedro-chefe”.
Nos antípodas conceptuais do “popular” encontramos a “personalidade”.
Uma personalidade, para um jornalista, é toda aquela pessoa que detenha uma ou
mais das seguintes três características: i) notoriedade pública, presente ou
passada, em qualquer grau e por qualquer motivo, excepto talvez genocídio e
outros crimes contra a humanidade; ii) uma profissão ligada às artes e letras, ainda
que vagamente; iii) ser também jornalista ou aparentado. As personalidades,
subentende-se, encontram-se acima da restante maralha, sendo mais do que meras
pessoas, luzindo o brilho de uma visibilidade que as ascende acima do comum dos
mortais. As personalidades surgem nos relatos noticiosos para dar, pela sua
presença, importância e legitimidade a eventos como manifestações,
abaixo-assinados ou encontros culturais. O jornalista escreverá que “o
manifesto para rever a lei que regula a acidez do azeite foi já subscrito por
várias personalidades”, com isso querendo significar que a iniciativa é coisa séria,
ou boa, e isto mesmo que as ditas várias personalidades sejam uma salada russa que
de azeite sabe pouco ou nada, composta pelo político que teve a ideia, um
pintor de nível médio, uma actriz de novela com mais dotes físicos que
declamatórios, o Boaventura Sousa Santos, um capitão de Abril e um desportista de
topo já reformado, provavelmente a Rosa Mota se o lançamento for no Porto. Quando no fio da narrativa se reclama para uma
ideia o suporte de inúmeras personalidades, poderemos suspeitar que com alguma
probabilidade a ideia não se vale por si própria e estamos perante um recurso
publicitário daqueles mais reles, como quando se associa um futebolista ou uma
cantora da moda a um champô ou a um depósito a prazo.
Tanto o modo como os jornalistas se referem às
personalidades, como os critérios com que atribuem essa “distinção”, como a
autoridade que lhes conferem, revelam-nos uma psicologia de tribo, tribo que
partilha as ideias “certas” e não nasceu nos meios “errados”. Uma psicologia adulatória,
inconscientemente submissa diante dos notáveis, que tem na aparência a medida
de todas as coisas. Note-se que os jornalistas poderiam em relação às ditas
personalidades usar com toda a objectividade a expressão “figura pública”. Mas
isso não lhes permitiria diferenciá-las das outras pessoas e elevá-las diante
destas.
Um paradigma desta apologia patética e pateta das
personalidades encontra-se na rádio TSF, por sinal um exemplo acabado do jornalismo
feito de ideias feitas. Não há reportagem sobre Angola que não comece com uns
cantares em quimbundo ou em Trás-os montes com uma ladainha de uma velhota. Pois
a TSF tem agora um programa chamado “Playlist” em que “todos os dias pede a uma
personalidade” que escolha as músicas que se vão ouvir. Por regra as
personalidades escolhedoras provêm dos meios artístico ou político, embora
possam ser relativamente obscuras, caso em que a TSF tem que esclarecer: “hoje
com o artista plástico José Marmeleiro”. Ninguém conhece o José Marmeleiro e
por isso a TSF tem que nos dar parte que o senhor não repara canos, mas pinta
uns quadros, o que o alcandora ao estatuto de personalidade e lhe confere
portanto uma sapiência estética e cultural acima da média para efeitos de escolha
de cinco ficheiros “mp3”.
Quando um repórter (ou outro tipo qualquer) usa os vocábulos
“personalidades” e “populares” com menos de cinquenta anos de intervalo entre
si, não está a fazer uma mera descrição sociológica. Contrariamente ao que
julgará, está a afirmar uma ideologia, provavelmente sem pensar, porque pensar
dá algum trabalho. Uma ideologia que configura uma sociedade de desiguais,
escadeada, de castas como na Índia. Uma sociedade onde a notoriedade confere
respeito e a falta dela retira direitos. Onde a notoriedade advêm da
visibilidade à luz dos holofotes ou até na penumbra dos bastidores mas não da
essência. Uma notoriedade que se ganha nas vaidades acetinadas da Caras, nas
rodas de copos do Bairro, nos palcos das declamações subsidiadas e nas
concelhias dos partidos. Uma notoriedade pequena de país pequeno mas suficiente
para aliciar outras pequenezes, as de quem lá no fundo se consola colocando-se na
orla entre as personalidades e os demais.
Quando um jornalista usa no mesmo discurso os vocábulos
“personalidades” e “populares”, lembra-me o Portugal dos anos quarenta e
cinquenta que os meus pais e avós me contaram, de vilas e pequenas cidades com sociedades
estratificadas, onde cada um tinha o seu lugar que o berço lhe ditava, na
escola ou na falta dela, na profissão a que aspirava, no casamento que se
tolerava e sobretudo no respeito que merecia. Impressionante como Salazar
continua a andar por aí, morto mas mal enterrado, nas mentes que se julgam
mundanas.
É por estas e por outras que o Jacques Rancière, filósofo
com quem discordo muito mas que não deixa de ser fino observador, diz que a democracia
só é verdadeira quando todos os lugares são tirados à sorte entre todos.