domingo, fevereiro 10, 2019

Exposição fotográfica (LII)

Passei as férias de verão no Japão, uma das melhores viagens da minha vida, sobre a qual conto escrever aqui em breve. Entretanto algumas fotografias minhas de locais vestidos com uma "yukata", um "kimono" leve de algodão estampado, um revivalismo que parece estar de moda especialmente entre os jovens.

Templo Senso-ji, Asakusa, Tóquio

Templo Senso-ji, Asakusa, Tóquio

Templo Senso-ji, Asakusa, Tóquio

Teatro Kabuki, Ginza, Tóquio

Santuário Yasaka, Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Starbucks (!), Gion, Kyoto

Templo Kyomizu-dera, Gion, Kyoto

Templo Kyomizu-dera, Gion, Kyoto

Gion, Kyoto

Parque Uedo, Tóquio

A Democracia sem democratas


Não imagino praticamente ninguém que conheça, próximo ou distante, a responder não à pergunta “é democrata?”. As pessoas acham-se democratas tão obviamente como se acham honestas. A questão parecer-lhes-á tão idiota quanto aquelas parvoíces que vêm nos formulários de imigração que se preenchem à entrada dos Estados Unidos: Traz droga? É maluco? Participou em perseguições aos judeus durante o Holocausto?

A resposta sim ao “é democrata?” parecerá evidente à quase totalidade porque, neste cantinho do mundo onde vivemos há uma associação intuitiva entre democracia e civilização e o pessoal gosta de se sentir civilizado. Além disto, existem vantagens associadas ao regime democrático que estão razoavelmente assimiladas entre a população: é bom poder falar e protestar com liberdade e sem medo; é razoável eleger – e melhor ainda, deseleger – periodicamente quem manda no burgo; aparentemente as democracias conseguem criar mais riqueza e distribuí-la um pouco melhor do que as ditaduras.

A democracia tornou-se pois uma ideia aspiracional vogando no subconsciente das pessoas, um conceito ideal embora algo nebuloso, associado à perfeição da coisa pública, em si mesmo positivo como a saúde ou a bondade. Tal hagiografia da democracia resultou num reflexo quase universal de criticar qualquer acção que se reprove sublinhando o seu pretenso carácter anti-democrático. Se a mesa da assembleia de condóminos, à uma da manhã, já cansada da bagunça generalizada, quer que se siga a agenda pré-estabelecida, logo vem um vizinho armado em tribuno com a acusação de não-democracia. Se um governante legitamamente eleito tem que tomar uma decisão, passados dez meses de debate em que não houve unanimidade entre auscultados, logo um deles clamará contra o autoritarismo e a falta de democracia. O cúmulo desta pecha ocorre quando no discurso da pequena política, ou no associativismo de bairro, ou mesmo na vida do dia-a-dia, ouvimos referir que a argumentação que o outro lado emite é por si só um ataque à democracia, como se a diferença de opinião pudesse ser intrinsecamente contra a democracia e não um dos seus pilares. Ora isto só pode surgir de uma deficiente compreensão da natureza essencial da democracia.

É verdade que democracia será um dos vocábulos mais vagos do léxico político, e também dos mais abusados. Começa logo na origem ateniense, no governo pelo “demos”: para Péricles o “demos” eram todos (todos menos mulheres, estrangeiros e escravos, claro), enquanto para os seus rivais, por exemplo Tucídides, o “demos” era a maralha, a turba anárquica. A mesma palavra, sentidos diferentes, virtudes opostas. Continua a confusão nos nossos dias, em que a Coreia do Norte, a Venezuela, os Estados Unidos ou a Noruega, todos se consideram uma democracia, quando não “a” democracia, por excelência. Claro está que Kim Jong-un, Nicolas Maduro, Donald Trump ou o rei Harald V não podem estar a falar do mesmo regime quando o conceito “democracia” lhes aparece por baixo das meninges. E não deixa de ser curioso que seja provavelmente um rei, um resquício do nada democrático direito de sangue, o que esteja mais próximo da razão.

É também verdade que com o fim da Guerra Fria se assistiu a uma maior proliferação mundial de processos formalmente democráticos, com eleições e parlamentos, oposição autorizada e imprensa mais ou menos independente. Muitos se deleitaram então a escrever e a ler sobre o fim da História, constituído por um mundo sem espinhas de regimes de liberdades e garantias, de democracia representativa e liberal, com economia capitalista a bombar potenciada por um comércio sem barreiras a nível planetário. Ora como sabemos da nossa experiência ao volante, o fim dos caminhos normalmente tem um muro à frente que obriga a ir para trás. Foi o que aconteceu: em muitos dos nóveis regimes democráticos, as eleições nem sempre foram verdadeiramente livres, os parlamentos muitas vezes não representaram o eleitorado, opositores mais coriáceos acabaram presos e jornalistas mais abelhudos apareceram mortos. Putin, Maduro, Erdogan e Trump foram eleitos mais ou menos democraticamente, como já antes Hitler o tinha sido. Afinal, o trágico não desapareceu das vidas dos povos e a História continua um rio revolto e não se tornou a plácida e espraiada foz que alguns julgavam.


Pior: se em muitos regimes democráticos jovens o progresso foi frágil e mais aparente do que real, em muitas democracias mais estabelecidas verificou-se um retrocesso grave, umas vezes espectacular, outras subterrâneo e por isso mais perigoso. No primeiro caso podemos incluir o crescimento da FN, do UKIP, do Vlaams Block, do Podemos e do Vox ou da AfD, a chegada ao poder da extrema-direita na Áustria – e aqui deixo de parte a Hungria e a Polónia, exemplos piores mas que dificilmente cabem no perímetro das democracias mais estabelecidas, a sucessão de Berlusconi e depois Beppe Grillo e depois Salvini em Itália, terminando obviamente com Trump e agora Bolsonaro, os exemplos mais caricaturais e talvez por isso mais acabados desta marcha-atrás. No segundo, a perda de autoridade moral do Ocidente no plano internacional, a degradação da capacidade crítica do jornalismo, a corrosão do respeito pela verdade e pela ciência suportada nas recentes praças do pelourinho digitais, a nova censura do politicamente correcto, a inversão do ónus da prova diante de formas variantes de totalitarismo, como certos ambientalismos e feminismos hoje prevalecentes, a generalização da anomia e a descrença nas instituições típicas das democracias parlamentares, tudo azares que levam a que sucessivas linhas vermelhas que no passado nos protegeram da tentação totalitária sejam agora pisadas, quando não espezinhadas, nos sítios e pelas pessoas “a priori” mais insuspeitos.

Quem tem culpa neste estado de coisas?  Certamente as instituições e os políticos, os juízes, os magistrados, os patrões de indústria e os jornalistas que as constituem. Mas muito mais do que eles todos nós em geral, que do voto ao “post” à conversa de café enviamos a essas pessoas sinais sobre o que pensamos, o que queremos, com que prioridades e quais os valores que temos por importantes. Nestes valores, tristemente, raramente encontramos os que são básicos para uma verdadeira Democracia.

A Democracia, para sê-lo, necessita claro está de processos organizativos democráticos, como eleições livres e justas e separação de poderes, e da proteção de certos direitos fundamentais, de vida, de personalidade, de liberdade de expressão e associação, de propriedade. Mas precisa sobretudo, para viver e sobreviver, que uns certos valores fundacionais existam de forma disseminada na sociedade, compreendidos ou pelo menos intuídos. A Democracia, na sua acepção mais nobre, é o agregado desses valores, uma forma civilizacional mais do que uma mera organização socio-política.
 
Que valores essenciais são esses? Pois vários.


Começaria com o apreço pela dúvida. Deste possivelmente emanam os outros. A dúvida resulta da humildade socrática diante do conhecimento, do “só sei que nada sei”. A dúvida incentiva-nos a escutar o outro, porque pode ser que ele tenha razão e nós não. A dúvida impõe-nos o estudo e obriga-nos à procura prudente da verdade. A dúvida afasta-nos da prosápia radical e das soluções das quais não há retorno. Só a dúvida nos traz lucidez. Dizia Bertrand Russell que as teorias se dividem em dois grupos: as da certeza e as da dúvida. A Democracia inclui-se certamente nas segundas (onde se contam também, por exemplo, as teorias científicas). Os totalitarismos fascista e comunista, bem como a verborreia das redes sociais, caem no grupo das certezas. 

Hoje, toda a gente que vejo à minha volta tem a certeza sobre tudo e opina com trejeitos de autoridade sobre tudo, muito especialmente sobre aquilo que não tem condições nem horas de estudo e reflexão para saber. Quando comecei a escrever este texto, li um exemplo chocante disto num comentário “on-line” a uma triste notícia desse dia, a de terem encontrado sem vida uma criança que caíra num poço, em Espanha. Pois houve um senhor que na caixa de comentários chamou incompetentes aos engenheiros e mineiros que trabalhando dia e noite, usando do melhor do seu saber teórico e prático, com risco da sua própria segurança, o foram buscar a cem metros de fundo. Esse senhor “acha que...”. É certo que esse senhor escreve comentários às notícias de um “site”, logo será por definição um imbecil, mas esta segurança nas suas certezas não deixa de ser profundamente triste e perturbante. E também sintomática.

Deste mundo de gente cheia de certezas absolutas resulta a facilidade com que se contradiz a ciência, às vezes por interesse, o mais por simples parvoíce. Não só quando Trump ou Bolsonaro põem em causa o aquecimento global, o que quer apenas dizer que foram eleitos ignorantes. Somos mais nós, os eleitores, quando partilhamos pelas redes sociais os modismos da não-ciência, como os perigos das vacinas, as calamidades do gás de xisto, as virtudes homeopáticas, os niilismos ambientalistas ou as evidências políticas e económicas que as estatísticas não suportam. O respeito colectivo pela ciência e pelo saber, crítico mas humilde, e a vontade de perceber e aprender são também valores centrais na saúde de uma democracia. Contrariamente à confusão que por vezes grassa por aí, nem todas as questões se resolvem por maioria e particularmente pela maioria dos que não estudaram e que não investiram na solidez do seu conhecimento. Como escreveu Marie Curie, “essa demonstração que nos custou tanto esforço...”.


E se de repente quase todos se julgam grandes médicos e engenheiros, todos mesmo todos se acham os mais habilitados dos juízes, julgando, condenando e em geral exigindo sangue. Quando leio o que se partilha na “net” ou se escreve nos jornais, quando ouço os comentadores televisivos tão tranquilos nas suas sentenças, às vezes sinto-me o único em Portugal que acredita nesta coisa simples: a presunção de inocência é a trave-mestra de um sistema judicial, não é um vaso à janela que dá uma côr à casa e que se arruma quando não faz falta. Ora isto implica que na dúvida não condenemos e que, como há sempre o risco de dúvida, os processos tenham lugar no recato dos tribunais e não no Jornal das Nove, onde se criam condenações “de facto”. Uma pessoa civilizada tem que conviver tranquilamente com a ideia de que um culpado pode ter que ser solto e que tal é um preço barato para garantir que um inocente nunca seja condenado. Na Idade Média, as pessoas acreditavam que um Deus vigilante garantiria que a justiça absoluta era sempre possível, nem que fosse com um julgamento divino: andar descalço sobre brasas sem ter dores ou coisa parecida. No século XXI, parece que continuamos a acreditar na mesma coisa, só que substituimos as brasas justiceiras pela douta opinião da Manuela Moura Guedes ou do João Miguel Tavares, as versões brega e chique da mesma mentalidade de pelourinho. Quem acha que há sempre um “mas” para matizar a presunção de inocência não se pode certamente intitular democrata.

A renúncia a ouvir respeitosamente o outro, a desconfiança face ao saber obtido com custo, a sobranceria da condenação ligeira, a facilidade com que as redes sociais se incendeiam, tudo isto muitas vezes se amalgama num horror às elites, porque estas acham que podem porque têm mais dinheiro, ou que têm a mania só porque estudaram, ou porque se não querem condenar fulano é porque são todos farinha do mesmo saco e anda tudo a meter ao bolso, ou qualquer outro excelente argumento deste género. Ora uma democracia funcional tem que ser um sistema elitista meritocrático, em que todos tenham as mesmas oportunidades independentemente da sua origem socio-económica e todos possam singrar em função do seu esforço. Que elites baseadas no mérito fazem falta à Democracia parece óbvio quando olhamos para Trump, um básico filho de milionários, e Obama, um cavalheiro oriundo da classe média-baixa, e a América de cada um. O discurso de ódio às elites, mais ou menos explícito, que anda por aí na tecla dos “facebookistas” e na boca dos bloquistas, acaba sempre por ser uma porta de entrada escancarada aos fascismos. 

Portanto, valores como o apreço pela dúvida e o que ela arrasta, de capacidade de ouvir e possibilidade de criticar, o investimento no conhecimento e na ciência e o reconhecimento do seu retorno, a aceitação da imperfeição da injustiça e do imperativo ético da presunção de inocência, a consciência do regime democrático como um sistema de elites meritocráticas em que, como bem dizia Daniel Oliveira, nos possamos orgulhar que o filho de um gasolineiro possa pelo seu esforço ser presidente da república, mesmo quando discordemos totalmente dele, são valores indispensáveis para segurar no sítio uma Democracia que se veja e que o seja.

Ora olho à minha volta e vejo pouco quem dê valor a estes valores. No espaço público, raríssimos: o Pedro Mexia, o António Barreto, talvez o Pacheco Pereira. No meu pequeno mundo, igualmente escassos. Vivemos numa democracia sem democratas. Não costumo puxar galões, até porque com a idade vou-me preocupando mais em polir os meus defeitos do que em puxar o lustro às minhas supostas e sem dúvida reduzidas virtudes. Mas desta vez vou aqui cometer uma arrogância: acho que tenho claros os valores que referi, e vou por isso terminar afirmando-me um democrata, por sinal filho de outro.