domingo, setembro 19, 2010

Férias X : A grande misturada

Em contraponto ao meu post “Ab equo ad asinum”, o meu amigo NF deu-me um livro intitulado “Everything is miscellaneous – the power of the new digital disorder”, de um David Weinberger. Já antes, em revolta contra as opiniões musicais reaccionárias aqui expressas, o NF me presenteara com um CD dos Beck. Incentivo os membros do reduzido clube dos leitores do Mataspeak a seguirem o exemplo do NF e sempre que estiverem em desacordo a me oferecerem qualquer coisa. Também aceito numerário e quase todos os cartões de crédito.

O livro, que li estas férias, aborda as potencialidades (praticamente sempre vistas como virtudes) que o novo mundo computorizado em que vivemos traz à organização da informação e ao acesso que a ela temos e ao uso de que dela podemos fazer. O que nos conta não deixa de ser fascinante, mas já dizia Oscar Wilde que acharmos um livro fascinante é diferente de concordarmos com ele.

A primeira parte do texto foca-se na definição de tipos de organização de informação e na história de sistemas de organização. Até ao advento da informática, a organização de objectos estava enquadrada pela natureza física dos objectos catalogados (por exemplo, livros por ordem alfabética de autores numa estante) ou da meta-informação que os referenciava (por exemplo, as fichas de biblioteca em papel). Ora o que é físico tem limitações físicas e estes sistemas têm muitas falhas de versatilidade, problemas de definição, pouca adaptabilidade, curteza de horizontes, “et caetera”. O autor vai contrapondo a estes exemplos as capacidades de referenciação cruzada e de construção de subconjuntos das modernas bases de dados para concluir, algo pedantemente, sobre as limitações dos átomos (constituintes dos livros ou das fichas) face aos “bits”, imagem que repete inúmeras vezes. Esta má-vontade para com os pobres átomos soa-me algo ingrata. Ele, da próxima vez que for a um urinol e segurar nuns átomos, que filosofe se preferia antes vir equipado com uns “bits”.

Chalaças à parte, até aqui não parece difícil concordar com ele. É óbvio que a informática abriu um mundo novo na gestão e utilização de informação. Tão evidente como ver que o motor de explosão iniciou novas perspectivas na mobilidade, as vacinas na sobrevivência infantil e a fundação do Sporting Clube de Portugal na ética desportiva. Nunca são as potencialidades do progresso que devem ser postas em causa, mas os seus riscos.

E é sobre alguns efeitos que comportam riscos que eu e o autor começamos a divergir. Isto apesar de eu ser meramente eu e Weinberger possuir um doutoramento em filosofia. Mas também ele, que é meramente um doutorado em filosofia, não se ensaia nada em zurzir Aristóteles, que defendia a existência de uma pertença perfeita de cada objecto a uma organização ela própria ideal, noção que o mundo miscelâneo das bases de dados cruzadas veio desmentir. Se Weinberger se pode pôr em bicos de pés, também eu posso. Estamos quites.

Um primeiro aspecto em que divergimos está no extâse que ele sente perante a fartura de informação que as novas ferramentas permitem. Vejamos este exemplo, em tradução livre: “O ISBN – código internacional de numeração de livros – do “Moby Dick” de Herman Melville ilustrado por Rockwell Kent é o 0679600108. No “site” da biblioteca do Congresso, uma pesquisa por esse ISBN revela que o livro foi editado pela Modern Library, possui 822 páginas, 21 centímetros de altura e foi impresso em papel reciclado e isento de ácido. No “Amazon.com”, uma pesquisa por esse ISBN liga-nos a uma análise pela Amazon das frases mais emblemáticas do livro, informa-nos que ontem a edição era o 43631-ésimo livro mais vendido mas que hoje passara para a posição 49581, que continha 208968 palavras, que o seu índice de Fog (uma medida de legibilidade) indica ser de dificuldade média, que a compra permite adquirir 14634 palavras por dólar e que 286 pessoas tinham escrito opiniões que podíamos ler, atribuindo ao livro uma média de quatro estrelas em cinco”. Pois… E o que é que esta merda interessa?

Palavras por dólar? Melville ficará mais em conta que Homero ou Steinbeck? E que tal ler a lista telefónica, com tanta palavra quase de graça? E o índice de Fog? Qual será aqui o índice de Fog do Mataspeak? Aberrante, com certeza. Este exemplo, que Weinberger toma como uma demonstração das maravilhas do novo mundo da informação miscelânea, parece-me a mim o paradigma de alguns dos maiores riscos que a “Internet” proporciona: a saturação de informação irrelevante que mascara aquela que interessa, a suposição que o mercado ou as massas podem definir a valia de um bem cultural ou, ainda mais arriscado, que são detentores da verdade.

Outra noção que Weinberger avança com a qual não concordo é a de que a “Internet” e o acesso a toda esta informação cruzada veio libertar-nos de intermediários (que ele suspeita malévolos) que faziam uma filtragem para nós. Segundo ele, a abundância da informação disponível passa para nós a responsabilidade de a filtrar e isso é muito mais livre e democrático. Estou com ele em que a vasta disponibilidade de informação na “net” cria-nos a obrigação de a seleccionar adequadamente, exigindo-nos esforço adicional. Era aliás este um dos pontos que eu salientava no meu “post” referido no início. Mas onde não concordo é que a oferta de informação por atacado da “Internet” seja estruturalmente melhor que a que pode ser facultada por um bom livro de um bom especialista, ou que esta última seja sempre absorvida passivamente e a primeira implique uma crítica activa.

Por exemplo, como eu não tenho tempo físico para ler e reflectir sobre as centenas de livros relevantes da filosofia ocidental, posso seleccionar um autor que tenha escrito uma síntese que me dê uma panorâmica satisfatória. O meu primeiro papel activo aqui será escolher um autor com credenciais que me proporcionem uma certa garantia de qualidade na análise que vou encontrar. Verificarei em que extensão estudou o tema, o prestígio que tem entre os seus pares, se parece mais ou menos sectário em relação a este ou aquele assunto. Vamos supor que, com base nesses critérios, escolho a “História da filosofia ocidental” de Bertrand Russell. O meu segundo papel activo ocorre durante a leitura. Há assuntos ou opiniões de Russell que me parecerão menos bem elaborados ou estranhos. Para esses eventualmente poderei ir à procura de outras opiniões ou ler os autores originais e julgar por mim próprio, o que será o meu terceiro papel activo.

Se utilizar a “Internet”, poderei certamente ter muitos mais “megabytes” de informação disponível. Mas no processo de filtragem recorrerei a programas de pesquisa que me orientarão segundo critérios que na melhor das hipóteses são algorítmicos e na pior enviesados por questões comerciais. A quantidade de informação será tão grande que me dificultará atingir uma visão global do tema. E, sejamos honestos, a maior parte dos utilizadores da “net” absorve acefalamente o que lhe aparece, sem perguntar porquê.

Um especialista que escreve um livro é de facto um intermediário entre mim e a informação, entre mim e, “soi disant”, a verdade. Mas isso não é obrigatoriamente mau, como o sugere Weinberger. O talhante também é um intermediário entre mim e o boi e eu prefiro usá-lo a ir caçar para a planície e esquartejar depois o bicho. E há muitos talhos, dá para escolher.


O autor apresenta como conclusão final que, nos dias de hoje, com o fartote de informação ao nosso dispor, a questão deixou de ser a construção de conhecimento (“knowledge”) para passar a ser a de sentido (“meaning”) que terá que ser construído pelo receptor a partir de uma base de conhecimento consolidada e infinitamente acessível. Temo que isto não passe de um mero jogo de palavras. Encontrar o sentido e compreender com base na informação disponibilizada é o que gera o conhecimento. E tal é válido com a “net”, com um bom livro ou com as pinturas de Altamira.

A leitura deste “Everything is miscellaneous” não alterou no geral as opiniões que deixei no meu “post”: a “Internet” e outros meios da sociedade da informação são potencialmente utilíssimos, permitem experiências muito interessantes, como a Wikipedia ou a blogosfera, e continuarão a moldar as nossas vidas. Na maioria dos casos, ainda bem. Mas de modo a sermos agentes e não vítimas desta formidável máquina, seremos obrigados a um esforço crítico muito superior, para o qual outras formas de aquisição de cultura mais tradicionais, como a leitura, o visionamento de um filme ou a apreciação de uma pintura serão mais úteis do que nunca.

Como em tudo na vida, vai ser bom e vai ser mau. E o que me surpreende na análise desenvolvida neste livro, por um doutorado em filosofia, é o de o lado mau não merecer sequer uma palavra de comentário. Por exemplo, pode a “net” ser uma arma de libertação? Sim, como os exemplos chinês e iraniano demonstram. Mas pode também transformar-se num veículo de alienação e de opressão com um alcance temível. Aliás, no que a alienação se refere, o próprio Weinberger já me parece ter ficado meio apanhado.

Ainda assim e com toda a sinceridade, obrigado, NF. Venham sempre mais.

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