sábado, dezembro 17, 2016

O monte dos pastos



Leio no jornal que o Monte dei Paschi di Siena, o mais antigo banco do mundo em actividade, vai tentar realizar até ao final do ano uma operação de colocação privada de cinco mil milhões de euros, cinco bis como está na moda dizer-se. Pretende o banco encaixar capital que permita absorver as perdas de uma futura venda de 28 bis de crédito mal-parado destinada a sanear o seu balanço. Note-se que 28 bis é o triplo da situação líquida reportada em 2015. Será a última tentativa para tentar evitar a intervenção do Estado italiano. A generalidade dos analistas antecipam que a colocação falhará dada a pouca confiança do mercado na situação política e bancária italiana.


Creio que isto deveria merecer alguma reflexão.

O Monte dei Paschi di Sienna nasceu em 1472 por iniciativa – estatal – da República de Siena. A sua actividade deveria suportar a agricultura e a pastorícia da região.

Era um “monte pio”, um tipo de instituição que surgiu em Itália no século XV como alternativa ao endividamento em bancos comerciais e orientado para os de menos posses. Os “monte de pietá” tinham um propósito caritativo e a sua gestão foi normalmente atribuída à Igreja Católica. Funcionava como um fundo estabelecido benemeritamente – não recuperável pelos fundadores – que emprestava dinheiro contra a entrega de um bem que funcionava como garantia: uma espécie de “prego” sem fins lucrativos. O objectivo dos “montes” foi à partida o bem dos credores e não o ganho da instituição, pelo que a Igreja, que encarava juro e lucro como coisas do demo, patrocinou bastante esta nova ideia. Os Franciscanos foram aliás grandes disseminadores do conceito pela Europa fora.

Em 1624 o grã-ducado da Toscânia absorveu Siena e o grão-duque, um Medici, alterou o formato do Monte para algo mais próximo de um banco convencional, com depositantes, legislando no sentido dos depósitos serem garantidos pelos rendimentos dos pastos públicos de Siena. Pastos traduz em italiano para “paschi”, daqui o nome. Neste novo formato, o banco cresceu durante os séculos XVII e XVIII. Já no século XIX e com a reunificação italiana, expandiu-se a todo o território da bota.
Chegamos assim ao final do século XX como o Monte como terceiro maior banco italiano. Em 1995 o governo italiano transformou o Monte dei Paschi numa sociedade anónima, que em 1999 passou a ser transaccionada em bolsa. O capital está muito atomizado, não existindo accionistas com mais de cinco por cento. 

Nos anos 2000, no meio deste entusiasmo de início de século que nos tramou a todos, o Monte decidiu expandir a sua actividade no investimento e no retalho, com aquisições, duas mil novas agências, tudo o que o Excel aguentasse. Para financiar esta expansão realizou duas operações com derivados financeiros, a “Alessandria” e a “Santorini”, operações que em 2009 já perdiam 750 milhões de euros. Ainda só 750 milhões de euros. Cheia de brio financeiro, a administração do Monte decidiu varrer o problema para as profundezas da contabilidade e refinanciou com o Deutsche Bank e com o Nomura, mais uma vez com derivados. Nem os auditores, nem o Banco de Itália, viram um documento sobre isto até 2013, quando as perdas já andavam nos milhares de milhões e o tema estourou e veio a público, com todas as consequências que levaram à situação descrita no princípio deste texto.

Que nos pode ensinar esta exemplar história? Eis algumas das cogitações que isto me suscita:

1)      O Monte dei Paschi sobreviveu 544 anos, mais de cinco séculos, quase quatro vezes o tempo de vida da moderna Itália, como instituição crescente e sólida. Precisou de apenas 17 como sociedade cotada para estar pronta para ir pelo cano. Isto tem que ter algum significado, nem que seja estatístico.

2)      Será que o actual Monte dei Paschi carece de gestão qualificada? Na Renascença, o Monte tinha uns quantos padres sem habilitações académicas que entre missas e confissões lá iam administrando o banco com o sucesso. Actualmente o banco tem mais de vinte mil empregados, com milhares de doutorados, MBAs, economistas e engenheiros, que rapidamente puseram a instituição à beira da falência. Sei que não é justo: os primeiros tinham apoio divino. Está aliás escrito nas notas de dólar: “in God we trust”. Em Deus, não na Virgem, em quem erradamente se fiaram os modernos gestores.

3)      Poder-se-á dizer: coitados, tiveram azar, levaram com a crise do “sub-prime” de 2008. Pois é! E os seus antecessores, padres e outros que se seguiram? Apanharam só com um estado permanente de guerra entre as cidades italianas da renascença, invasões francesas, espanholas e austríacas, pestes várias, conquistas, reconquistas, guerras napoleónicas, as revoltas de 1848, a reunificação italiana, e, já no século XX, duas guerras mundiais e a crise mundial de 1929, para além de instabilidade política contínua e recessões económicas de toda a ordem: por exemplo, o grão-duque acima referido, que era péssimo gestor como todos os Medicis excepto o velho Cosimo que iniciou a dinastia, deixou a Toscânia num tal estado que o dinheiro desapareceu das zonas rurais, que regressaram a uma economia de troca. Apesar de todas estas vicissitudes, certamente piores que os testes de “stress” do BCE, os antecessores da moderna gestão levaram o banco com saúde até ao final do século XX. Portanto, só o azar não chega para explicar a recente desgraça. Talvez antes haja hoje um problema de atitude diante do risco e de métodos para o gerir.

4)      O que aconteceu ao Monte dei Paschi de Siena não é uma singularidade local, nem sequer italiana. Temos o Lehman falido, o AIG que foi salvo pela caneta do Obama, a intervenção da Coroa nos bancos britânicos, a derrocada das Cajas espanholas, o aperto do Deursche Bank, a corrida aos bancos gregos ou cipriotas, para já não falar da triste situação da banca portuguesa, com apenas duas instituições sem problemas (muito) graves: o BPI e o Santander. O problema mostrou-se geral e sistemático.

5) Os problemas da banca parecem ocorrer independentemente da forma de propriedade ser mais ou menos concentrada. No caso do Monte dei Paschi a propriedade está extremamente fragmentada, com os maiores accionistas sendo institucionais e estatais com quotas reduzidas. Não há um dono daquilo tudo como no caso do BES.


A banca é um sector económico com o qual as populações têm uma relação de grande proximidade. As pessoas guardam o carcanhol nos bancos, não guardam nem nos floristas, nem nos cafés, nem nas lojas de “lingerie”, guardam nos bancos. E portanto se os bancos falharem o potencial de disrupção social e política é consideravelmente maior do que se falharem os talhos ou as livrarias. Por isso, os políticos deveriam ter especial cuidado em garantir que o sistema financeiro funciona bem. Ora claramente algo não está a correr bem quando há poupanças que começam a ser escondidas nos colchões e nas gavetas, poupanças que vão para esses esconderijos de último recurso porque a confiança das pessoas na banca anda pela mais amarga das ruas.

Só consigo explicar a pouca resiliência dos bancos à crise por fragilidades estruturais. As suas causas? Não sou especialista, mas parece-me claro que concorrem aqui muitas: incentivos perversos para quem gere, para quem executa e para quem verifica, falta de regras sectoriais e falha de quem as aplique e controle,  por vezes promiscuidade entre política e negócio, ou entre negócios e o negócio, outras vezes pouco ética quando não crime puro, eventualmente fraco peso das punições (ser despedido com alguns milhões de indemnização pode não ser suficiente para desincentivar a prevaricação).

Seria bom que o poder político tomasse as medidas legislativas ou regulatórias necessárias para reencarrilar a banca como sistema vascular das economias e das sociedades. Que medidas? A minha ignorância impede-me de precisar quais, mas no limite sempre se poderia voltar a entregar a gestão da banca aos padres da Igreja Católica: durante duzentos e tal anos aquilo funcionou sem espinhas.

sábado, dezembro 10, 2016

As malheirais figuras



Há nos jornais uns comentadores que têm um espaço equivalente ao que nos estádios de futebol popularmente se chama lugar cativo. Nos estádios, paga-se ao ano, às vezes à década, a cadeirinha tem o nosso nome e entra-se quando se quer para se ver qualquer jogo. Nos jornais, estes comentadores entram com igual regularidade e dissertam sobre o que lhes apetece. Enquanto por norma os comentadores políticos comentam política, os comentadores desportivos bola, os fiscalistas escalpelizam impostos, os advogados enumeram as minúcias da lei, os ambientalistas anunciam bombásticos a vinda do armagedeão e os cientistas se maravilham com as mais recentes partículas subátomicas, os privilegiados a que me refiro debitam sobre o que lhes vem à tola, sempre com igual segurança.

Entre estes multifuncionários da opinião escrita, há-os simpáticos, como o Miguel Esteves Cardoso, que todos os dias com igual candura nos dá uns parágrafos sobre a eleição de  Trump, algum bom livro que leu ou a dificuldade em encontrar recargas para a sua Mont Blanc, há-os sólidos como o Miguel Sousa Tavares, com quem é fácil estar de acordo porque tem boas bases e por isso só ocasionalmente se espalha completamente ao comprido, e finalmente há-os sectários sobre qualquer assunto em que toquem. É um texto publicado após a morte de Fidel Castro por um exemplar destes últimos, chamado José Vítor Malheiros, que nos traz aqui hoje.

Conheci por acaso este senhor no LNEC, no início da minha carreira, quando eu ainda fazia engenharia a sério. Apareceu no meu departamento com a relações públicas do laboratório porque ia escrever sobre ciência num jornal chamado Público que ia ser lançado pelo grupo Sonae e queria conhecer as instituições científicas portuguesas. Para cumprir tal propósito, perscrutou à volta com ar severo, fez duas perguntas sem nunca dirigir o olhar para ninguém, interrompeu as duas respostas a meio para dizer o que achava ser a resposta certa e tendo-nos esmagado com a sua sapiência tirou bilhete para o departamento ao lado. Eu na altura era novinho e ainda tinha uma visão romântica do jornalismo como radicando na procura da verdade, pelo que fiquei perplexo com a sua falta de curiosidade. Na realidade eu acabara de experienciar sem o saber a melhor das máximas sobre jornalistas, que nos diz que a diferença entre Deus e um jornalista é que Deus não se crê jornalista.

Já recentemente percebi que poderia também haver razões psicológicas para o modo como na altura nos olhou do cimo da burra. Encontrei na “net” uma sinopse curricular sua na página do partido Livre, escrita na primeira pessoa, onde diz que frequentou o Instituto Superior Técnico mas saíu porque percebeu que se lá ficasse se tornaria engenheiro. Como quem diz que os engenheiros são uns mangas-de-alpaca mentais por contraste ao intelectual florentino que ele é. Ora na realidade o que salta à evidência é que o calão não conseguiu acabar o curso e dirige-lhe agora o mesmo olhar com que a raposa da fábula mirava de soslaio as uvas lá em cima. Posso-lhe garantir de experiência feita que não lhe teria causado dano obter o canudo, mas reconheço que aquelas transformadas de Laplace implicam algum trabalho.

Como desde o início fui leitor do Público – a talhe de foice um excelente jornal e a prova que a Ordem pode ser rica com frades pobres – acabei por ler com regularidade José Vítor Malheiros. Enquanto escreveu sobre ciência foi um divulgador honesto embora sem grande rasgo. A dado momento ganhou página semanal na zona de artigos de opinião onde passei a lê-lo com mais curiosidade, não tanto pela solidez do conteúdo como pelo agreste da forma. Nos últimos anos, li-lhe vários artigos sobre política, economia, sociedade ou ambiente. O denominador comum desses artigos era a oposição entre os justos e democratas deste mundo (mormente ele) e os fascistas canalhas ignorantes submissos perversos imorais corruptos gatunos que incluíam os governos, as empresas, os economistas, a troika, académicos, os outros comentadores e mais genericamente quem não tivesse a mesma opinião, de que eu era um reles exemplo. Várias vezes não consegui perceber muito bem onde desencantava ele as condições políticas, a vontade popular ou o dinheiro para levar a cabo as suas propostas, mas aí lembrei-me sempre a tempo que ele conseguiu não ser engenheiro e  portanto safou-se àquela relação limitante que tipos como eu têm com a necessidade de realidade das coisas.

No dia 30 de Novembro passado, José Vítor Malheiros saiu-nos com um artigo intitulado “Fidel Castro não é de cartão”, que lido com atenção se revela não como mais um mas antes como o artigo malheirístico por excelência, o ideal platónico de que todos os seus escritos anteriores derivam. Parabéns, portanto, pelo momento de clímax. Acontece também que é um dos textos mais menorizantes dos valores da democracia que eu já li e note-se que sobre isto já li bastante, entre textos sérios e puro disparate. Enquanto escreve sobre Fidel, Malheiros nunca ataca a democracia, a liberdade ou a fundamentalidade dos direitos do Homem, mas acaba por fazer pior: reserva-lhes o papel de detalhes sem relevância. Ora a História ilustra que quem destruiu as democracias não foi tanto quem as criticou, mas antes quem não lhes deu valor. Os primeiros só aproveitaram o que lhes foi legado pelos segundos.


O fulcro do artigo está numa frase, logo após um parágrafo em que Malheiros reconhece – vá lá – que o regime cubano se “orientou” para uma linha ditatorial, que diz o seguinte: “Este discurso é ele próprio contraditório? É. Como se pode falar de esperança, de ideais de liberdade e de combate pela justiça a propósito de uma sociedade onde há liberdades básicas que não são reconhecidas? Pode-se porque as coisas não são simples nem puras e porque não há nenhuma lei da Natureza que dite que tem de haver coerência entre os objectivos que se traçam e os caminhos que se percorrem.” Por outras palavras, os fins podem justificar os meios, o que eu já li escrito pelas penas de todos os grandes totalitários do século XX, às vezes com uma franqueza pelo menos mais saudável do que a de José Vítor Malheiros. 

Claro que não há nenhuma lei da Natureza que dite seja o que fôr sobre a coerência dos objectivos dos homens. As leis da Natureza estão mais preocupadas com a interacção de fotões e nucleões e outros do género, e o que se passe a nível mais agregado não as interessa por aí além. A esse nível agregado o que há são leis dos homens, uns achando que a complexidade e a impureza da vida justificam a prisão de um homem que pensa de forma diferente, como Malheiros e muitos outros, e outros, infelizmente cada vez menos, que acham que as coisas são mais simples do que isso e que não existe nenhuma mas mesmo nenhuma razão que justifique justificar o horror do totalitarismo e que a questão dos valores democráticos é sempre central e nunca periférica ou acessória.

Em contraponto a Malheiros e à sua pequena e dissimulada justificação dos fascismos, comunismos e outros ismos que vão sendo gerados pela “incoerência entre caminhos e objectivos”, ocorrem-me a enorme verticalidade e os “huevos” do tamanho de melancias com que um velho Unamuno desmontou em público na Universidade de Salamanca o discurso totalitário do general Milan Astray e o seu “viva la muerte”. Para Unamuno, certamente as coisas também não eram simples nem puras, mas os limites eram claros e justificavam não só a demarcação intelectual como a coragem física com que diante dos franquistas arruinou a carreira e expôs o pescoço.


Pelo artigo fora, Malheiros volta a malhar na tecla quando estabelece a seguinte dicotomia: “Há quem sustente, às vezes com cinismo outras vezes com desonestidade, que isso significa que esses discursos generosos contêm em si mesmos o germe da catástrofe e devem ser condenados, quando não proibidos, e os seus defensores amordaçados ou fuzilados, e que se deve deixar, apenas, a natureza e sociedade seguir o seu curso sem interferências de maior. Outros consideram que o sonho de uma sociedade melhor e mais justa não deve ser abandonado apenas porque ainda não encontrámos o melhor caminho para lá chegar”. Este parágrafo é todo um exercício de malheiriana desonestidade intelectual empacotado num arrazoado digno das actas dos processos das purgas estalinistas. Aqueles que acham que Cuba não é o “símbolo de um combate generoso” só podem ser ou cínicos ou desonestos e querem amordaçar ou até fuzilar aqueles que fazem discursos generosos (não sei onde é que ele foi buscar esta dos fuzilamentos), enquanto àqueles que generosamente sonham tudo se pode desculpar enquanto não se encontra o melhor caminho para “lá” chegar. Suponho que até uns fuzilamentozitos nas paredes de Cuba, estes bastante reais.
Remata o artigo com a vetusta tese da “grandeza na tragédia desse extravio”, algo que eu já não ouvia há alguns anos, quando alguns justificavam as mortes e atribuíam os males dos regimes comunistas a alguma inabilidade prática de almas no entanto generosas.

Para Malheiros, os fuzilados, os silenciados, a corrupção, o nepotismo que leva o irmão do líder à liderança (ter o nome Castro confere aparentemente superioridade de direitos), a inépcia económica, a prostituição juvenil, o sentimento dos milhares que arriscaram a vida para fugir numas barquetas para os Estados Unidos, tudo isso conta pouco diante do “sonho generoso” e qualquer crítica só pode ser perversa. A isto chamava Popper um sistema fechado de ideias.


A mim também me irritou, durante estes dias que se seguiram à morte de Fidel Castro, alguma histeria na nossa direita baixa, como se Cuba fosse o pior regime do mundo. Já desesperei de encontrar lampejos nas sinapses da direita portuguesa, que resvala sempre vala abaixo direita à cova do Salazar. Acho ridículo comparar as realizações de Cuba e da Suiça para concluir sobre o fracasso da revolução cubana ou do comunismo. Há que constatar por exemplo que Cuba conseguiu taxas de literacia, esperança de vida ou mortalidade infantil ao nível do melhor do mundo (não sendo a única na América Latina, Chile, Uruguai, Costa Rica ou Panamá também andam nesse nível). É provavelmente pior vida a do pobre hondurenho ou salvadorenho do que a do cubano pobre. E certamente Fidel foi uma figura histórica de grande magnitude na segunda metade do século XX. Isto é tudo verdade, mas Cuba não deixa de ser uma ditadura e Fidel um ditador. Aqui estou totalmente com o João Miguel Tavares: um ditador é um ditador é um ditador.  E nisto, mais do que em qualquer fracasso económico, reside a desgraça da revolução dos barbudos.

Mas se à direita houve patetice, à esquerda houve pouca vergonha na cara, especialmente no Partido Socialista, onde rapidamente se esqueceu o melhor da história do partido para soltar com ar de convicção esquerdismos pueris que certamente devem agradar aos novos companheiros de cama. Honre-se a excepções como Sérgio Sousa Pinto, que saiu do hemiciclo para não ter que votar o texto da vergonhosa declaração de pesar do PS, argumentando que “devo ao 25 de Abril ter crescido em liberdade e democracia; não me vou prostrar em homenagem a um ditador que negou ao seu povo o que eu prezo acima de tudo”.

Na atitude e na frase de Sousa Pinto resume-se tudo o que um democrata precisa de saber. O facto de isto andar cheio de malheiros e de hoje poucos perceberem no mundo ocidental (para já não falar do outro) o que é a Democracia, qual o seu valor e quais os seus limites intransponíveis, explica muita coisa. Explica os Brexits, os Trumps, os Grillos, os Iglesias e outras desgraças que temo ainda estejam para nos cair no prato.

terça-feira, novembro 01, 2016

A cidade com alma




"Every time I close my eyes blowing that trumpet of mine, I look right in the heart of good old New Orleans...It has given me something to live for."
Louis Armstrong


Na esquina de Bourbon Street com Canal Street, à porta do Bairro Francês, por acaso a esquina mais importante da cidade de Nova Orleães, um homem nos seus trinta anos espera um oponente, um pouco como Clint Eastwood no “Era uma vez no Oeste”. De um negrume congolês, quase não se lhe vê a camisa de alças pretas, nem os óculos escuros vagamente manfios, nem os “dreadlocks” curtos no alto do coco, mas vêem-se bem as calças de um verde atómico e as pulseiras de um dourado gratuito. Está sentado na sua cadeira, acotovelado à mesa e vai sair com as brancas: olha com ar compenetrado, talvez hesitando entre o tradicional peão de rei ou uma abertura menos convencional. A mesa tem o tabuleiro estampado e as pernas fixas ao passeio. As trinta e duas peças faíscam ao sol da tarde, aguardando as mãos que as movam e os espíritos que as pensem. Deliciado com o desmoronar de mais um meu preconceito, que me dizia que só velhos russos jogavam xadrez no meio da rua, entro por Bourbon Street adentro.


A rua é de largura modesta, e a perder de vista: um “canyon” de três andares, com o primeiro e o segundo debruados a ferro forjado. Dados poucos passos, assalta-nos um leve cheiro a águas mal escoadas, proveniente das sarjetas e de poças suspeitas. Quando regressar à noite, irei reparar que um odor mescla de gente, álcool, ganza e comida se sobreporá ao cheiro de esgoto, numa mistura que um americano de Washington que conheci no jantar da conferência me garante ser uma sensação típica do Bairro Francês. Por ora é mesmo a águas paradas mas passados dois quarteirões já me habituei.

A imagem preconcebida que tinha sobre Bourbon Street era a de algo castiço e perdido no tempo, com clubes de jazz, negros velhos ao piano e a ocasional marcha pela rua de uma banda, talvez os célebres Saints. Totalmente falso: vejo casais americanos de idade, rosados, de bermudas e boné turista, grupos de amigas cinquentonas esféricas em grande risota, negras de perna à mostra à porta de casas de “strip”, polícias a cada esquina comendo o mega-hamburguer, grupos de adolescentes alfinetados por tudo quanto é parte, outros com ar “Ivy League”, vagos pedintes empurrando um carrinho de compras com os seus pertences, louras pernaltas no melhor dos apinocanços, velhos “rockers” de rabito de cavalo grisalho escutando música à borla nas janelas dos bares, latinos de fraque angariando para restaurantes de razoável pinta ou clubes de onda suspeita. Mas nada de Saints a marchar.


Toda a rua está dedicada ao comércio e não creio que alguém lá more mesmo, a menos que seja maluco, ou surdo, porque a animação é até às tantas. Há hotéis, incluindo um Sheraton, impecáveis no respeito pela traça. Há restaurantes e balcões de comida rápida que prometem a cerveja mais gelada, o hamburguer mais bojudo, o melhor daiquiri. Há casas de “souvenirs” cheias de parafernália vudu, “tee-shirts” humorísticas, caveiras de jacaré e colares de contas para o “Mardi Gras” de Fevereiro (a tradição manda dar um destes colares a uma senhora que levante a roupa e exiba os seios – e há sexagenárias que saem do carnaval vergadas ao peso de tanta conta). Há misteriosas lojitas de videntes, prometendo acertar no futuro por vários métodos: numa das que vi, palma da mão, “tarot”, pura intuição ou “angel”. Não consegui saber o que é “angel”. A “wikipedia” informa-me que os videntes usam astrologia, leitura de auras, cartomancia, cleromancia (lançamento de pequenos objectos), percepção remota, litomancia e a provavelmente mais cara cristalomancia (com pedras e pedras preciosas, respectivamente), numerologia, leitura da palma das mãos, psicometria (contacto com os objectos pessoais do cliente), runas e “tarot”, mas nada de “angel”.  Por um cartaz intuo que terá a ver com a observação de folhas de árvores. Em todo o caso, o Bairro Francês possui um arsenal preditivo de primeira grandeza, que muito jeito daria ao nosso ministro das Finanças, para ver se acertava no valor do défice.


Continuando, há sobretudo bares onde se ouve música ao vivo. Não só de jazz, mas de todos os tipos, consoante as portas: aqui jazz, ali country, mais à frente rock, logo disco, hard rock, gospel, house, o que quiserem. Com o calor quase tropical, as janelas e portas estão sempre abertas e os sons misturam-se pela rua, amalgamando-se com os odores e com as cores dos neóns que fluorescem por todo o lado. De repente oiço à distância o Richie Blackmore a solar na sua guitarra o “Highway Star” – só pode ser ele – acompanhado pelos restantes Deep Purple, incluindo o falecido Jon Lord, o que poderá ser explicado por algum fenómeno vudu, como vimos especialidade da zona tão disseminada como o guisado Gumbo ou o croquete de “aligator”. Aproximo-me da fonte sonora e espreito pela janela de um bar: nem Blackmore, nem a alma penada do Lord, nem nada. Vejo um grupo de septuagenários montados num pequeno palco, os cabelos brancos escorrendo suor debaixo dos focos vermelhos, esforçando-se para meia dúzia de gatos pingados que bebericam uma imperial enquanto gritam aos ouvidos uns dos outros. Já me dizia o tal americano que o que surpreende em Bourbon Street, quando se entra num bar e se bebe um copo e se olha para os músicos, é o que é que eles estão ali a fazer: porque é que estão enfiados naquele buraco e não numa carreira internacional. É que por regra são todos muito mas muito bons (e na realidade alguns saíram de Bourbon Street: Sidney Bechet, Mahalia Jackson, Fats Domino, Dr. John ou Wynton Marsalis  tocaram ou cantaram por aqui).


Dizem-me americanos que é única nos Estados Unidos esta rua que tomou nome nos mesmos Bourbons avoengos do nosso vizinho Felipe marido da Letícia: “there’s nothing like it in the USA”. Eu acrescentaria com segurança, apesar de não conhecer o mundo todo: “neither in the all world”. Porque de facto é única aquela mistura de genuinidade e falsidade, de riqueza e miséria, de locais e turistas, de vício e virtude, de novos e velhos, de todos os estilos de música, iluminada por néon e regada com cerveja para amainar o calor exasperante do dia-a-dia. E com o seu lado tenebroso, de perversão oculta, de risco iminente, de estupro por acontecer que Sting tão bem apanhou no seu “Moon over Bourbon street”. De tudo isso se faz a alma da rua Bourbon, que é a alma do Bairro Francês que é por sua vez a alma de Nova Orleães, seja lá o que a alma de uma cidade fôr: uma memória incontornável que emana das pedras, uma vibração harmónica nas pessoas, a coerência de um todo na excitação da variedade. E isto de nos Estados Unidos uma cidade ter alma não é coisa pequena pela amostra que conheço. Nova Iorque tem certamente, mas Houston nem um farrapo, Boston, Washington e Miami muito pouco.


O lado melhor da alma de Nova Orleães vive no humor dos seus habitantes, na omnipresença da música e do talento, da boa comida (é uma zona com óptima culinária própria), da sensualidade das mulheres vestidas para o calor asfixiante de um dia que pede o consolo da noite, das cores fortes que os artistas locais exibem nas galerias que polvilham as restantes ruas do Bairro Francês. Podemos reconhecer esta alma, na sua forma mais pura, na ladinice de Louis Armstrong, filho da terra fugido para o frio de Chicago, quando pisca um olho cantado a Ella Fitzgerald no fabuloso dueto “Can’t we be friends”, música que em Bourbon St. nos arriscamos a ouvir de uma janela numa versão quase tão boa como a original. Note-se o quase, porque mesmo para os mestres do vudu há milagres fora do alcance... 


Apesar de toda esta alma, ou talvez pelos pecados que carrega, tal como qualquer alma, até ao dia do perdão, há na Bourbon St. uma costela decadente indiscutível, na fauna que se acotovela à noite e que resiste de dia, nas actividades que por lá se levam. E se distraídos andássemos, um esqueleto na vitrina de uma loja de bugiganga, rico em costelas, relembra-nos, de lenço no crânio e órbitas esbugalhadas, a frase de Horácio que lamenta como voam os fugazes anos das nossas vidas: “Eheu, fugaces labuntur anni”.  Ou pelo menos os anos da parte terrena das mesmas, que depois é até ao infinito, ou mesmo mais além.


Nestas cogitações chego ao fim da rua, inverto marcha e percorro-a em sentido contrário até Canal St. Na esquina, o oponente já chegou e já se joga xadrez. Pela mão esguia do negro de calças verdes, as brancas atacam o centro do tabuleiro e parecem levar vantagem.
 

 No dia seguinte levaram-nos em passeio de eléctrico. Os eléctricos são um ícone de Nova Orleães e fazem as vezes de metropolitano numa terra plana e alagadiça em que qualquer escavação deve ser um pesadelo de drenagem. Temos direito a um guia, um velhote “wasp” reformado que, sem microfone, luta a armas desiguais com o cagarim de choque de metais e o alívio de pneumáticos da carruagem para se fazer ouvir. Vamos para zonas mais pinocas da cidade. Começamos pelo “Wharehouse district”, que de zona de armazéns da velha cidade se tornou área de condomínios finos. “For dinks”, esclarece o nosso guia. “Dinks” quer dizer “double income no kids”, casais de jovens com bons empregos que optam por atrasar os filhos de modo a melhor gozar os duplos rendimentos. Passada a rotunda onde se homenageia o derrotado general Lee, herói do sul “dixie”, entramos na St. Charles Avenue, longa de cinco quilómetros e ladeada por moradias individuais de grande porte, muitas de tipo colonial, brancas, dois e três pisos de muito pé-direito, colunadas de ordem dórica ou jónica, bons relvados à volta. Muitas estão à venda ou em remodelação, revelando que com facilidade se entra mas também se sai desta vida mais exclusiva. Nesta longa avenida encontramos serviços para os que os podem pagar: colégios femininos de freiras, o parque Audubon com o seu golfe, a universidade Loyola, restritos clubes de tipo inglês para homens ou para senhoras. Os sucessivos quarteirões chamam-se “faubourgs”, piscando o olho à herança francesa, que lhes dá os nomes: Lafayette, Livaudais, Delassize.



Viramos à direita em Carrolton Avenue, afastando-nos do dique que nos protege das cheias do Mississipi. Chegamos ao terminal e retomamos viagem em sentido inverso. O eléctrico não dá a volta, damos nós: levantamo-nos, deslocamos as costas dos bancos, que são de madeira da mais confortável, e sentamo-nos ao contrário enquanto o condutor atravessa o carro para os comandos do lado oposto. Voltamos a ver as mesmas casas que à ida. Apesar de Outubro não estar a meio, muitas casas já estão decoradas a rigor para o “Halloween”, com teias de aranha de alto a baixo, esqueletos a mandar-se das varandas, aracnídeos gigantes no telhado e lápides de cartão nos jardins. Quase tão tenebroso, um jovem casal espera num cruzamento que passe o eléctrico dentro de um Nissan decorado com “graffittis” azul-bébé e cor-de-rosa e para-choques desta mesma côr. Apesar do cromatismo aberrante do carro, têm idade para terem nascido já depois do LSD passar de moda e não me parece que vão à garagem para lhes pintarem a viatura após um vandalismo nocturno. Aquilo é mesmo assim e eles têm um ar normal e feliz. Afinal, estamos nos Estados Unidos da América. Mais adiante, somos alertados para uma casa de pedra para aí com o tamanho do castelo de Évoramonte. É a maior casa particular de Nova Orleães e pertence a um cirurgião plástico. “Muito botox teve que injectar este homem!”, exclama com alguma filosofia o nosso guia.


Nova Orleães é uma cidade limpinha e bem cuidada, pelo menos nas zonas por onde passei. Custa a crer que há onze anos tenha ficado severamente destruída pelo furacão Katrina, que causou para cima de mil e quinhentos mortos na Louisiana e um total de mais de cem mil milhões de dólares de estragos materiais. Numa década, aparentemente a cidade sarou essas feridas e disfarçou as suas cicatrizes. Mas outras chagas subsistem: à noite os recessos das portas dos comércios enchem-se de sem-abrigos, às vezes visíveis, às vezes apenas um volume oculto por camadas de cobertores andrajosos. Vi a uns metros da porta do Brennan’s, um dos mais caros restaurantes da cidade, à porta de uma loja, uma senhora preparar-se para uma noite ao relento. Tinha um ar cansado, mas muito arranjado, enfiara as pernas num saco-cama e sentada no chão estava a ler um livro à luz da rua com o seu ar mais compenetrado, como se quando viesse o sono fosse pousar o livro na mesinha de cabeceira e desligar a luz do candeeiro, luxo nosso diário que ela não se podia oferecer. Aquela senhora não parecia estar nos abismos do álcool ou da droga que a “vox populi” e alguma estatística costumam associar à condição de sem-abrigo. Era uma pessoa como qualquer outra, que possivelmente tivera uns azares, perdera a casa, perdera o pé e escorregara pela ladeira social abaixo. Os Estados Unidos são muito isto, também. A terra onde, contrariamente à Europa, um negro pode chegar à presidência da república e adolescentes podem criar multinacionais em meia-dúzia de anos, mas também onde a vida é um jogo sem rede e quem cai não tem mão que a agarre.


No regresso, no táxi que me leva ao aeroporto, mais um pouco da alma nova-orleanesa. O taxista é uma simpatia, um senhor negro encorpado, já nos sessenta, com um voz de música e mel, recomenda-me com entusiasmo que volte na altura de um grande festival que há em Abril, o “New Orleans Jazz and Heritage Festival”. São onze palcos em simultâneo, vinte horas por dia durante oito dias, com centenas de bandas, muitas delas locais mas também grandes nomes da música americana ou britânica. Em 2017 virão Paul Simon, Van Morrison, Pearl Jam, Red Hot Chilli Peppers, Herbie Hancock, Wayne Shorter, Stevie Wonder, Snoop Dog, Elvis Costello, John Mayall, Beck, Dr. John, Buddy Guy e até o projecto musical do Liceu Francês de Nova Orleães! Ele garante-me que vai, das onze da manhã às sete da tarde, porque tem que pegar no táxi a essa hora. Reforça que a música é boa e a comida também (“good gumbo”), duas coisas de que ele gosta – sendo que esta última se nota bastante que gosta. Por baixo do retrovisor tem três fotografias: uma com ele e a mulher e duas quarentonas gorduchas que ele informa serem as filhas; outra com uma garota de quatro anos com laçarotes amarelos nas tranças, a única neta; e a terceira com o Obama. Diz-me com uma lágrima na voz que uma das filhas é advogada e a outra professora. Merece esse orgulho. Se lá o cirurgião plástico meteu muito “botox” para ter o casarão, este taxista deve ter guiado muita noite para dar melhor vida à descendência. Mais discreto, mas mais bonito.


Comento-lhe a fotografia do Obama e relembro-lhe que dentro de horas há o segundo debate entre Clinton e Trump, pensando que me vai responder com um indefectível apoio a Hillary, dado ser negro e votante democrata. Mas não: sem revelar quem apoia, diz-me que vai lá no dia oito de Novembro mas vai tapar os olhos com a mão na hora de votar. Para exemplificar tapa mesmo os olhos o que, dado que vamos num carro numa autoestrada, não me conforta particularmente. Para o fazer olhar em frente digo-lhe que em Portugal o que ele vai fazer chama-se engolir um sapo. Ri-se muito e parece céptico: “Swallow a toad! Really? No way!”. Chegados ao Louis Armstrong New Orleans International Airport, trocamos um bacalhau e ele dá-me um cartão para que me vá buscar quando eu regressar. Deve-se ver na minha cara que fiquei com vontade de voltar.