terça-feira, dezembro 26, 2017

Exposição fotográfica (L)

Andei em Novembro por Chengdu, capital da província chinesa de Sichuan. Cinco milhões de habitantes, vinte e cinco séculos de história, mas o pouco que consegui ver através do "smog" do centro da cidade foi essencialmente a nova China do século XXI: arranha-céus ladeando avenidas de dez ou doze faixas, carros e mais carros e algumas motas, lojas modernas tomadas de assalto por uma juventude sedenta de roupa da moda e telemóveis. Não consegui encontrar um templo antigo que o mapa referia, provavelmente emparedado entre paredes de prédio, mas de caminho dei de caras com o maior "stand" da Lamborghini que já vi. Na vizinhança fui visitar a "Base de Investigação de Reprodução do Panda Gigante de Chengdu", onde cotovelando com a nova classe média chinesa e os seus paus de "selfie" lá consegui ver os "parecidos com ursos" - é o que a palavra "panda" significa. De resto, Chengdu tem pessoas gentis e um espectacular "hot pot", mesmo muito "hot". Abaixo, algumas fotos de "souvenir".

A camisola amarela

Um mundo artificial

As "selfies"

Fotografia de grupo no Parque do Povo

O Mao de olho no pessoal

Bambuzal

Centro financeiro de Chengdu

O vendedor de nozes

Entrada da Base de Investigação de Reprodução do panda gigante

Preto e branco

O panda na sua actividade preferida

Pausa para cigarro

Praça Tianfu

Um reflexo

Uma "Rita Red Shoes" de bicicleta

Chamada para o último congresso do PCC

A aldeia dos trumps



Deixei para aqui o blogue abandonado durante um ano e ele, como o Argos da Odisseia, esperou pachola mas firmemente que eu voltasse das minhas andanças. Passaram-se meses,  de pouca vontade, durante os quais outras prioridades, o trabalho, as leituras, a construção de uma casa, o acabamento de dois filhos, me mantiveram ao largo. Voltei e encontrei-o no mesmo sítio onde o tinha deixado, olhando para mim com um ar mesclado de reprovação e boas-vindas. Pareceu-me ouvi-lo ladrar com um tom de “como é?” enquanto eu me sentava ao teclado.

O mundo, esse, não esperou por mim e coisas notáveis ocorreram entretanto. O califado continuou o seu labor de destruição dos homens e da memória, cada vez mais confinado a meia-dúzia de montes de escombros na Síria e no Iraque, mas não menos perigoso nos peçonhentos que envia para matar na Europa e na Ásia. Falando em peçonha, o Benfica ganhou mais título, levado pela arbitragem como o Menino numa estatueta de Santo António. Em França o sistema político da Quinta República foi pulverizado por uma série de candidatos com o nome acabado em "on", o que rima com "cons", uma vez que não souberam lidar com a ascensão de uma fascista de nome acabo em "en". Em Portugal, a gerigonça parecia estar a fazer a melhor volta do circuito, mas pegou fogo já na recta da meta, coisa raríssima. E o Brasil continua lindo, já que falta de animação lá é situação que não há que temer.

Mas o acontecimento magno deste período de jejum foi sem dúvida a eleição de Donald Trump para o cadeirão do número 1600 da Pennsylvania Avenue em Washington. A eleição de um novo presidente americano é sempre por si só um facto da suma importância, com impacto maior ou menor na vida de todos os habitantes do planeta. Sendo o eleito um garoto, a ocorrência ganha outra magnitude.

Devo dizer que este Trump me enganou bem, o malandreco. Faço parte daquele grupo de ingénuos que julgava que uma vez que assumisse funções voltaríamos a uma certa normalidade institucional, após as palhaçadas próprias da campanha à americana, com tarjas azuis e vermelhas, chapéus de palha e parvoíces solenemente prometidas. Não era afinal a primeira vez que o presidente norte-americano estava longe de ser um Einstein. Já acontecera com Truman, Reagan ou Bush filho e o mundo seguiu o seu caminho. Não vi então grandes razões para alarme. Por um lado, algumas das suas ideias eleitorais pintadas como mais escabrosas na imprensa europeia têm na realidade uma longa tradição na política americana: a renúncia a um papel proselitista na política mundial já vem do presidente James Monroe, quase um século antes do presidente Woodrow Wilson a ter preconizado; a rejeição ou pelo menos minimização da interferência do Estado central na vida dos estados e das pessoas está na origem da própria União e vive muito no mito individualista do sonho americano; a redução de impostos como motor da economia vem pelo menos de Reagan; e assim com outras. Por outro, a América tem um sistema de separação e contenção mútua de poderes que por regra funcionou bem no passado e que limitaria as intenções mais descabeladas de Trump. Por fim, as potenciais alternativas para candidato republicano mostravam-se todavia mais pindéricas, beatos do "Tea Party", reaccionários até ao tutano como o Ted Cruz ou o Rick Santorum, paridos no “Bible belt”. Trump pelo menos era um nova-iorquino vivaço casado com uma europeia. Fiquei por isso relativamente tranquilo quando Trump emergiu de um mar de sondagens adversas e comentários ridicularizantes com a vitória na mão. Erro meu (e má fortuna pró pessoal em geral).


Uma vez entronizado, Trump conseguiu exceder as piores expectativas. Criou um gabinete de milionários, geralmente com óbvios conflitos de interesse entre as áreas que geriam e negócios próprios e ademais em média burros. Meteu na Casa Branca e em estruturas do sistema de segurança nacional americano – que de certo modo é o nosso sistema de segurança também – gente como Steve Bannon, um nazizeco com problemas de pele, que lhe andou a fornecer algumas ideias de campanha que a ele lhe faleciam. Assumiu um nepotismo descarado, levando filha e genro para funções de topo da diplomacia americana, não se percebendo se formal ou informalmente. E baralhou sempre que pode a função particular de homem de negócios com a de presidente da república, já que a torre Trump e o "resort" de Mar-el-lago passaram a ser palco de encontros com presidentes e embaixadores mundiais: convidados privados a milhares de dólares por refeição na mesa ao lado do presidente da China e ricaços meio grossos a tirar "selfies" ao lado do segurança que carrega a mala com os códigos do arsenal nuclear.

Isto já indiciava chatice da grossa, mas há pior, estruturalmente pior.

Com Trump chegou ao poder nas democracias ocidentais, de forma descarada, um relativismo total, em que a verdade e a mentira, o certo e o errado, o factual e o inventado se diluem numa mistela que é servida à colher e ao “tweet” às massas, com a maior cara de pau, com o apoio de uns lacaios de menor ou maior envergadura como a Sara Huckabee Sanders ou o Rupert Murdoch, em função das necessidades do momento. Seja para negar a verdade científica ou os dados da economia, o montante de pessoas na tomada de posse ou as estatísticas de segurança, a incapacidade de implementar políticas ou as próprias palavras do mês anterior, o “fake news” dá para tudo. Tendo encontrado uma sólida base eleitoral de alienados dispostos a confiar nele cegamente, basta-lhe “tweetar” três palavras em maíusculas e pontos de exclamação reclamando contra as “fake news”para manter a turba amestrada. A porta-voz na Casa Branca e a Fox nas fibras ópticas encarregam-se de confirmar. Como diria o próprio: “SAD!”

Por outro lado, e falando em tipos para quem a mentira mil vezes repetida se torna uma verdade, se no caso de Goebbels a loucura era a de um adulto florentino, no de Trump a loucura é a de um fedelho mal-educado. Qualquer uma pode pôr o mundo em maus lençóis. Isto é psiquiatria de bancada, mas parece-me claro que Trump tem óbvias limitações de inteligência: possui um vocabulário e uma expressão oral pobríssimos, é incapaz de suportar uma contrariedade sem deslizar para a birra, não planifica em função do futuro e tem uma frustração mal-resolvida com a popularidade dos outros, nomeadamente a de Barack Obama, o que não será de espantar tendo Trump sido criado na casa de Frederick Christ Trump Sr. Isto já vem do pai e passou também para o filho Trump Jr., o que levanta algumas esperanças aos imbecis: se a cretinice é hereditária, deve haver um gene responsável e portanto pode ser que um dia a Ciência descubra a cura.


Como seria de esperar, um personagem destes fez as delícias de toda a gente. As grandes potências rivais, a Rússia e a China, perceberam rapidamente que estavam diante de um líder fraco e vão aproveitar para tomar vantagem na corrida pelo poder global no século XXI. Os tiranos ou aparentados regionais, da Turquia à Coreia do Norte às Filipinas, para não falar do Netanyahu, sentiram-se de costas quentes para ir pisando risco após risco. Já na Europa e “a fortiori” em Portugal, políticos, jornalistas e a bem dizer toda a gente, das redes sociais às mesas dos restaurantes, entrou numa orgia de bater no ceguinho, elegendo Trump como saco de pancada de estimação que representava a boçalidade, a falta de sensibilidade, o recuo da inteligência, a aversão à verdade, etc., etc., etc.

Ora se o aproveitamento da nabice “trumpiana” por parte de uma série de dirigentes mundiais é perfeitamente racional, já esta última reacção de massas é difícil entender, porque Trump, que de facto é uma caricatura, como qualquer caricatura representa de forma grotesca uma realidade existente e essa realidade é a nossa realidade.  O Trump quer fazer um muro a conter os emigrantes mexicanos? Pois a generalidade dos países europeus não tem sido simpática para quem lhes aparece nas fronteiras: ainda esta semana o civilizadíssimo novo chanceler austríaco afirmou que vai confiscar dinheiro e telemóveis aos refugiados que batam à porta, e cortar-lhes o direito ao segredo médico, sem que tenha havido grande alarido mediático. O Trump insulta os tribunais e ameaça os juízes? Podíamos dissertar muito tempo sobre o conceito de independência dos poderes que os polacos e húngaros manifestam, ou já agora os portugueses: não é o polidíssimo João Miguel Tavares, com óculos da moda e tudo, que se arroga de forma militante o direito de negar a presunção de inocência, como se esta fosse uma tecnicalidade dos canhanhos e não um princípio básico da pessoa civilizada? E aquela promessa de Trump que ia limpar o pântano de Washington, porque estava cheio de políticos? Qual a diferença com a oposição entre “casta” e “pessoas da rua” que o Podemos vocifera em Espanha e o Bloco de Esquerda e a generalidade dos jornais papagueiam em Portugal? E já agora, qual a diferença para a plataforma eleitoral que levou Macron ao Eliseu? O Trump mente conforme lhe dá jeito e eleva a mentira a ferramenta do poder do Estado? Não é coisa nova no mundo, mas nunca esteve tão na berra como hoje. Quem se interessa pela verdade nos dias que correm? Pelo que vejo, muito pouca gente: o debate factual desapareceu do espaço público, substituído pela monocordia dos comentadores, pela construção da notícia pelos jornalistas (o recente caso da Catalunha é emblemático) e pela mentira útil suportada em “likes” do Facebook, tão de gosto por exemplo do novo fascismo ambientalista.

O Trump? Não me venham com o Trump. O Trump somos nós.