segunda-feira, agosto 31, 2009

Exposição fotográfica (XIX)

A 29 de agosto, cantarolando Arlo Guthrie: "Goin' up to the country/Don't you want to come along"





segunda-feira, agosto 24, 2009

Os "singles" do Solnado

Como que aproveitando o sossego que no mês de Agosto assenta praça na sua cidade de Lisboa, morreu Raul Solnado. Morreu de leve, como Eça disse de Júlio Dinis mas, ao contrário deste, não viveu de leve.

À parte a ironia suave do velho Mata que na altura ainda passava por mim como uma oura que refresca mas não se nota, creio que ouvir Solnado foi, no final dos anos sessenta, o meu primeiro contacto com o Humor com agá à cabeça. Eu tinha dele uns “singles”, que para esclarecimento dos leitores mais jovens informo serem uns discos de plástico preto estriado com um buraco no meio que, rodados a quarenta e cinco rotações por minuto contra uma agulha de safira, emitiam através de um altifalante uma mistura de crepitações e de voz do Solnado a contar umas histórias.

Nesse tempo, Portugal ria pouco e ria mal: recordo que para os mais anciães qualquer historieta que tivesse puns passava por ser uma boa laracha, que nos era contada com um piscar de olhos como se de uma prova de iniciação se tratasse. A época de ouro da comédia portuguesa filmada já passara e já só passava, com estranhas parangonas de novidade, nas noites de cinema do único canal da têvê. Nesta, para sorrir mais, apenas com séries americanas como o “Get Smart”, o “Green Acres” ou o macho que falava.

Não havia humor político à superfície. Normalmente, a autoridade vê com medo a liberdade que o acto de rir implica, como bem se retrata no “O nome da rosa”. Por isso a anedota política circulava baixinho, da boca de um druida para a orelha de outro e não chegava aos pátios de escola que eu frequentava.

No meio deste aparente deserto, flamejava o Solnado e o seu “stand-up comedy” de pronúncia alfacinha e hesitante, com um humor absurdo dirigido ao coração do absurdo do Portugal do fim dos anos sessenta: a guerra (de 1908), o orgulhosamente sós (na chamada para Washington), o ténue movimento “hippie” (pelo Ludgero Clodoaldo), a explosão turística (o Fritz), e sobretudo a história da vida dele, que era em muitos sentidos a nossa, colectiva.

Nos obituários que agora lhe dedicaram verifico haver unanimidade sobre o carácter vertical e carinhoso do seu humor, sem agressões e sem palavrões. Concordo inteiramente. Os grandes humoristas são como um exército, combatendo contra a tacanhez e a pusilanimidade que como grilhetas genéticas vão atormentando a humanidade que se julga sempre mais esperta do que é. A maioria dos humoristas combate em campo aberto, atacando de frente. Alguns, como a tropa fandanga dos seis Monthy Pithon ou dos quatro Gato Fedorento, entram que nem um comando especial pelos nossos preconceitos adentro, à bruta, não deixando pedra sobre pedra. Outros, “snipers” de pontaria exímia, vigiam longilíneos, esperando o melhor ângulo para ferir de morte o nosso ridículo: assim Seinfeld ou Jon Stewart (ou Herman nos seus já muito remotos tempos de veia inspirada).

Raul Solnado, esse, era um infiltrado. Trabalhava no meio da tropa adversária, aparecia de surpresa mesmo ao nosso lado, sem que ninguém tivesse dado por ele, solto para causar a maior mossa, assim à boa-fila. Parecia um dos nossos mas era do inimigo, de um inimigo comparsa como o da sua guerra das terças, quintas e sábados. Como companheiros de armas, para aí Tati ou Chaplin.

Solnado dizia sentir pena de um cómico que precisasse de dizer palavrões para fazer rir. Talvez aqui não concorde com ele: Gil Vicente, Bocage, Lobo de Carvalho, o abade de Jazente e tantos outros largaram fortes bujardas, com piada e muito a-propósito. Da minha geração, Manuel João Vieira consegue ter uma graça subtil à base das maiores cavalidades. Em qualquer caso, seja com palavreado ou sem ele, é preciso um espírito que ele tinha e a maior parte dos nossos contemporâneos nem cheira.

Com o tempo, foi aparecendo menos. Talvez se sentisse pouco inspirado, talvez andasse simplesmente ocupado a ser solidário, a deixar uma obra tão relevante para os seus companheiros de ofício como a Casa do Artista, realização em que muito se empenhou. E muito discretamente, o que é notável num país onde os presumidos notáveis passam o dia a empinar-se para aquelas revistas hediondas que vendem bronzeados de lata.

Quando morreu, o país sentiu aquele amargo de boca de pouco se ter lembrado dele nos últimos tempos. Terá estado acompanhado pela família (e esses é que importam), mas todos nós que ríamos sentados de calções e joelhos esfolados ao lado do gira-discos nem demos pela coisa. Por isto, relembrando aquela parte da “História da minha vida” em que a mãe, que tinha ido pedir um ramo de salsa à vizinha, lhe ralhava por ele ter nascido sem ela lá estar, apetece-me dizer-lhe: “Olha! É a última vez que morres sozinho, ouviste?”

quinta-feira, agosto 06, 2009

Exposição fotográfica (XVIII)

Porto Covo, 2 de Agosto de 2009. O Criador pegou na trincha e andou a pintar o céu.





O boticário

Existem neste cantinho da península estranhos personagens, que estranhamente se perpetuam e mais estranhamente se toleram. Um deles é o presidente da associação local das boticas, um tal de Cordeiro.

Este Cordeiro já pouco tem de lãzudo, mas compensa com uma barba à moda de século indefinido, algures entre os Filipes e a Carlota Joaquina. Desculpar-me-ão os amigos farmacêuticos, mas um passa-piolhos destes não traz credibilidade nenhuma à vossa corporação. É como se o bastonário dos engenheiros se apresentasse de cota de malha, o dos médicos de libré ou o dos advogados de braguilha de brocado flamengo.



Consta na melhor imprensa que o senhor é dos mais poderosos de Portugal. Pelo menos, fala – ou, melhor, vocifera – como tal. Em geral, as suas indignações fulminam ideias mais liberalizantes, como a unidose ou a venda de aspirinas nos supermercados, e alertam para riscos iminentes se tais heresias vingarem, riscos esses oscilando entre o fim meteórico da farmácia em Portugal, na versão mais benigna, e a morte da civilização ocidental tal como a concebemos, em dias em que acordou menos disposto.

Sobre isto, tenho que partir do princípio que ele lá saberá o que anda a dizer. Que as cruzes verdes que lampejam nas noites de Londres ou Paris (cidades que adoptaram medidas funestas do género daquelas que ele denodadamente procura evitar neste Portugal desorientado) são meros engodos destinados a convencer o estrangeiro incauto que ainda se vendem nessas metrópoles analgésicos e profiláticos sem ser num mercado negro, apesar das libertinagens que os governos locais tiveram para com os monopólios das farmácias.

No período prévio às férias estivais, o senhor andou activo que nem um princípio activo. Acusou o primeiro-ministro (que ele tolera como interlocutor à falta de mais alta figura governativa) de traidor e mentiroso. Depois apareceu e adoçou o comprimido: afinal tinha sido engano. Não foi a mais feliz das figurinhas mas enfim: isso é lá com ele.

Nestes entretantos, aconteceu o dramático episódio dos seis pacientes de Santa Maria que cegaram na sequência da injecção de um fármaco no globo ocular. E lá volta o Dr. Cordeiro aos ecrãs, entre os quais o meu, a insinuar que o governo tinha culpas no cartório desta cegueira acidental porque autorizara uma farmácia de venda ao público nesse hospital de modo diferente ao que ele recomendara e se calhar até poderia esta ter metido a pata na poça e ele bem avisara e pim e pam e pum.

Rapidamente, médicos e até farmacêuticos vieram a terreiro retorquir, explicando que a farmácia interna do hospital, de onde provêm os medicamentos administrados aos doentes internados, é uma estrutura hospitalar que nada tem a ver com a farmácia de venda ao público situada no espaço do hospital, tal como não tem com a cafetaria ou a tabacaria.

Por acaso também tinha essa ideia, mas também não é o mais relevante. O que interessa é o seguinte: não se aproveita a desgraça de seis seres humanos que perderam a vista, se calhar para sempre, para fazer política corporativa da mais rasteirinha. É uma atitude que define um carácter. Como diz hoje a malta nova: ó Cordeiro, és a base.

E já que a mãezinha dele não se deu em tempo útil à tarefa de lhe ensinar que essas coisas não se fazem, que alguém lhe explique agora. Talvez os sócios da Associação Nacional de Farmácias se queiram encarregar dessa didáctica missão, votando maciçamente a sua destituição, nas próximas eleições para a direcção.

sábado, agosto 01, 2009

Exposição fotográfica (XVII)

Odeceixe, há um ano

Homens honoráveis

For Brutus is an honourable man;
So are they all; all honourable men

William Shakespeare, in “Julius Caesar”, III, 2

Aconteceu recentemente algo que, na minha óptica de pagante do pato, é de uma gravidade inusitada, tão inusitada como o fraco burburinho que causou neste país que tanto rosna quando em matilha. Para pouco morder, verdade seja…

O Estado português estendeu até 2042 a concessão do terminal de contentores de Alcântara, em Lisboa, a um grupo privado, sem concurso público e em condições que, naquilo que é do conhecimento público, não parecem nada defensivas para o nosso erário: reforço da taxa de rentabilidade da concessionária, partilha de risco desequilibrada com menor protecção do concedente, perda de valor em relação ao contrato anterior. O Tribunal de Contas tomou sobre o assunto uma posição particularmente forte para os brandos costumes cá da terra, dizendo que não consubstanciava nem um bom negócio, nem um bom exemplo. Será cedo para decidir sobre a primeira conclusão, mas se calhar concordaria já com a segunda.

Ainda por cima, quando as coisas são mal feitas, como aparentam, o azar acaba por casar com a incompetência. Por azar, o presidente do conselho de administração da empresa beneficiada é um antigo ministro das obras públicas do partido que governa. Para mais azar, o presidente do Tribunal de Contas é um antigo ministro das finanças do partido que governa. Não podia ser mais picante, nem mais azar…

Já aqui escrevi sobre a presunção de inocência como um valor fundamental numa sociedade decente e que infelizmente em Portugal muito se espezinha. Não vou por isso dizer que o ministro ou o ex-ministro são isto ou são aquilo. Mas, quando um órgão com a importância do Tribunal de Contas afirma com todos os efes-e-erres aquilo que afirma, então existem indícios de algo que na hipótese simpática é incompetência e na pior não o é. Qualquer uma delas potencialmente muito grave e a requerer investigação e esclarecimento. O incómodo, para não dizer a suspeita, são aqui legítimos e expressá-los publicamente não contradiz o respeito que nos merece a possível inocência dos visados nesta história. Estes últimos deveriam aliás ser, nesta óptica, os mais interessados em que a Justiça investigue e conclua, porque neste momento já estão a ser julgados na praça pública.

O ministro optou exactamente pelo caminho contrário e atacou o Tribunal de Contas. Fez muito mal: não entendeu que num sistema de “checks and balances” os outros poderes não são adversários, nem se combatam com a converseta própria da política partidária. Se eu estivesse no lugar dele queria mas é que as investigações começassem rápido para poder provar a minha inocência.

Ao primeiro-ministro ainda não ouvi uma palavra sobre o assunto. Se não a disse, fez muito mal: o governo é dele e – já que o ministro não o faz – deveria ele ser o primeiro a manifestar preocupação pelas conclusões do Tribunal de Contas e a solicitar célere o mais rápido e aprofundado inquérito ao tema. Ao estar caladinho, está-se a atar de livre vontade ao poste onde o ministro já começa a chamuscar, lambido pelas chamas da má-língua.

Os jornalistas, esses, fizeram pior ainda, para não variar: o tema passou algo despercebido, ou então ligeiro, como se de um mau passo se tratasse, quase como uma tecnicalidade, quando no fundo pode ser uma questão de regime. Sem querer exagerar. Quando comparamos com o banzé que a mesma ministerial figura suscitou com o deserto ao sul do Tejo e com o “jamais”, percebemos o que interessa à nosso magra imprensa, especialmente a televisiva: circo máximo e risco mínimo.

A frase que aparece em epígrafe a este texto veio-me à memória quando li pela primeira vez sobre este caso. Pertence à peça Júlio César, de Shakespeare, e a um notável discurso fúnebre que Marco António diz junto ao cadáver de César logo após a sua morte. Bruto autorizara-o a fazer o elogio do defunto mas proibira-o de criticar os que haviam perpetrado o assassínio. Marco António, que é um sacaninha, obedece mas acaba por conseguir manobrar a plebe e arrebanhá-la para limpar o sebo a Bruto e seus aliados. Fá-lo referindo-se sistematicamente a Bruto e aos seus parceiros como “homens honoráveis”, com crescente ironia. E foi essa levíssima mas feroz ironia (“so are they all, all honourable men”) que me assaltou o pensamento, se calhar irracionalmente, se calhar injustamente. Certamente, com uma carga negativa.


Na peça, Bruto divide-se entre a amizade e admiração que tem por César em quem, no entanto, reconhece uma ambição perigosa e o seu amor pela república romana, que essa ambição põe em causa. Acaba por embarcar no conluio para matar César, por considerar que só assim protege Roma, mas fá-lo assumindo e mesmo antecipando as implicações do seu acto. Se Bruto é ou não um homem honorável, tal questão deixa-a Shakespeare ao critério do espectador.

Por mim, no final, não tive dúvidas: Bruto foi um homem honrado, que agiu como a sua consciência lhe ditava e assumiu as consequências sob a forma de um destino trágico. Voltando às concessões que precipitadamente se renovam sem concurso, gostava de ver o fim da peça e que esta não ficasse a meio, como por cá costuma. E não peço, nem ao nosso primeiro nem aos segundos que comanda, que morram como Bruto, no fio da espada. Peço que percebam que existe um ponto para além do qual a ética democrática não lhes permite que assobiem para o lado, mas lhes recomenda que ajam. Que se preocupem, que investiguem e, se caso for, que assuma as consequências quem tiver que o fazer.