terça-feira, setembro 07, 2010

Férias VII : O preto dos DVDs

“Is this the world we created?
We made it on our own
Is this the world we devastated
Right to the bone?"


Queen, in “Is this the world we created”


A praia, de pedra negra miúda, serpenteava esguia durante quilómetros pela orla de um Mediterrâneo quase lacustre. De longe a longe, a passagem de um barco distante empurrava uma onda que vinha marulhar o silêncio, como um arfar súbito num sono profundo. A cada poucos metros, as cores garridas de uma toalha ou de um pára-sol e corpos despidos que torravam rosados ao sol, abandonados ao calor opressivo do Agosto malaguenho.


Ao fundo, uma silhueta escura desenhou-se e foi-se aproximando num passo firme, quase veloz. Era um homem, de um negro profundo, vestido com uma camisa preta e umas calças de ganga escuras, a cabeça protegida da torreira inclemente por um boné de beisebol, uma das mãos segurando um saco de plástico que algo enchia. Cada vez que passava junto a alguém adiantava a mão livre na direcção da pessoa, num gesto mecânico, com um olhar de esguelha que de vazio quase não era um olhar. Na mão que ia apontando à esquerda e à direita, uma mão grande, possante, uma garra, tinha um monte de DVDs piratas, embalados em capas quadradas maleáveis, atados com dois elásticos.


Gente ergueu a cabeça para logo a baixar. Ele não diminuiu a passada. Ninguém quis comprar e ele também não esperava vender. Ia, meramente. Foi e desapareceu no horizonte de azul e preto e rosa. Algumas horas depois, voltou no sentido contrário, com o seu caminhar de autómato, provavelmente sem ter vendido nada.


À noite, jantava eu numa esplanada em Torre de la Mar e viu-o de novo, com o mesmo saco verde, a mesma mão oscilante, a mesma indiferença nos olhos, o mesmo andar de mecanismo. Provavelmente fizera muitos quilómetros desde um país para lá do deserto à procura do eldorado que nós sem o saber somos. Possivelmente pagara a um proxeneta das fronteiras uma parte importante das suas poupanças para o levar até às terras da fortuna. Tivera sorte: patrícios seus vão regularmente dando às costas do sul da Espanha, já cadáveres, quando o barco sobrelotado não resiste às correntes do estreito. Outros, descobertos pela polícia são recambiados e ficam entalados entre dois países que não os querem. Este chegara, mas a sua esperança já partira.


As migrações humanas são normalmente representadas nos mapas por longas setas a verde e vermelho e azul. Nessa visão esquemática e remota, parecem ordenadas, sociológicas, inevitáveis. Vistas de perto, são feitas de sonhos traídos, de dor, de brutais anomias e também da mais baixa cupidez: a de quem os explora (uns quantos) e a de quem os ignora (nós, os outros).


Marfinenses para serventes em Espanha, hondurenhos para operários na América, ucranianas para prostitutas em França, filipinos para criados no Dubai. Não são os novos proletários. São os novos escravos, os nossos escravos, que acartam o cimento de nossas casas, apanham os morangos de nossas mesas, cozem os pespontos das bolas com que os nossos filhos jogam e saciam os apetites que muitos, de pouco homens, já não conseguem de outra maneira.


Exploram-nos máfias organizadas ou xico-espertos de ocasião, que os iludem, agridem, ficam com o passaporte, violam, roubam e sugam até que não sobre pinga de sangue ou grama de tutano.


Ignoram-nos os governos que elegemos, com auréola democrática, entalados entre as necessidades de mão-de-obra barata e a vontade de mostrar serviço securitário para tranquilizar as massas eleitoras, inquietas com a diferença que é e será sempre um alvo fácil. Se a decência fosse relevante, perseguir até à exaustão os novos negreiros passaria a prioridade mundial. Mas a decência gasta recursos e não rende votos.


Apesar de tudo isto, eles partem. Talvez porque não saibam o inferno que os espera, talvez porque o inferno onde vivem seja pior, talvez porque achem que vale a pena tentar para ser uma das raras histórias com final feliz. Estima-se a probabilidade de um guatemalteco ou de um nicaraguense morrer numa migração para os Estados Unidos em vinte por cento. Mais do que na roleta russa. Partem centenas todos os dias.