quinta-feira, dezembro 27, 2007

Portugal dos pequeninos

A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando.
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.

O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.

Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.

O rosto com que fita é Portugal.


Fernando Pessoa , in “Mensagem”


Nós, os portugueses, somos moldados desde pequenos num complexo de inferioridade terrível. Bem lá no fundo, sentimo-nos anões deste mundo, vemo-nos como um “Lilliput” à beira-mar plantado, cercado de gente que ganha campeonatos europeus, prémios Nobel e ordenados mais vultuosos.

Por isso, desde que me lembro, sempre nos vi a exacerbar qualquer sucesso internacional, por ridículo que fosse, como se de uma Aljubarrota se tratasse. Recordo hoje com um sorriso (amarelo) as figuras que em criança fazia a vibrar com as vitórias de Portugal em hóquei em patins sobre a Guatemala e afins, mais de quarenta a zero. Seguia liturgicamente estas proezas nas noites de Julho, de orelha colada ao transístor, com o comentador a atropelar-se a si próprio nos gritos de golo, urrados durante minutos. Quarenta a zero – que pátrio orgulho! Teve que ser o meu pai a pôr as coisas em perspectiva, lembrando-me que os guatemaltecos mal sabiam patinar e só lá estavam para que o campeonato, supostamente mundial, contasse com uns centro-americanos. E que o hóquei patinado, sendo uma modalidade apenas praticada num país (Portugal), numa cidade (Barcelona) e numa rua de San Juan na Argentina, não valia, portanto, a ponta de um papo-seco.



Havia quem fizesse piores figuras. Certa vez, um apresentador de telejornal relatou-nos, com entusiasmado ar de proeza, que Portugal conseguira um terceiro lugar no torneio triangular de atletismo Portugal/Espanha/Marrocos. Claro! Um terceiro lugar sempre soa melhor que último. Ainda bem que o conseguimos.

Quando o Futre foi jogar, nos anos oitenta, para o Atlético Madrid, sendo pioneiro no que constitui hoje um dos nossos principais produtos de exportação – artistas da bola – os nossos noticiários passaram a apresentar periodicamente uns “flashes” dos jogos dessa equipa, permitindo aos comentadores novas e até aí inimagináveis façanhas de exagero lusitano. Se o Futre marcava, o Atlético tinha ganho graças a um golo de Futre, mesmo que o resultado tivesse sido de cinco a zero. Se o Futre intervinha numa jogada bem sucedida, era a classe de Futre que estava na origem do golo: o caramelo que lá tinha ido cabecear no meio dos defesas, expondo os dentes à cotovelada mas metendo-a lá dentro, nem sequer era referido. Se o Futre tocara na bola três minutos antes de um golo, tratava-se de “um tento com a participação de Paulo Futre”.


Claro que optimismos tão patetas tinham que ter reversos de medalha, sob a forma de monumentais cacholas. E a nossa medalha até tinha mais coroas do que caras, numa geometria esotérica. Quanto tinha doze anos, assisti a altas horas da madrugada, num hotel do Carvoeiro, à final dos dez mil metros dos Jogos Olímpicos de Montréal. Todo o hotel estava na sala de têvê: empregados, clientes e penetras. Durante vinte e tal minutos, vibrámos com o nosso Carlos Lopes, cuja vitória, tal como a nossa confiança, se adensava a cada passada. Na última volta, porém, o finlandês Lasse Viren ligou os reactores, passou o nosso Lopes já entretido a voltar a meter os pulmões para dentro da caixa torácica e ganhou aí com uns bons cinquenta metros de avanço. Não me lembro, em toda a minha vida, de um silêncio tão sepulcral como o que então caiu, nem nos velórios menos concorridos. Nos dias seguintes, os jornais ventilavam rumores de que o Viren ganhara recorrendo a expedientes obscuros, no limite dos regulamentos e para lá de toda a ética desportiva. Falava-se de transfusões sanguíneas e oxigenação de glóbulos vermelhos. Oxigenação era o que o meu cérebro precisava, que me indignei a ler essas patranhas.

Consolámo-nos nessa altura com uma medalha de prata. Entretanto, as coisas foram piorando, porque os etíopes e os quenianos começaram vir às meias-dúzias e a limpar tudo o que eram maratonas e corta-matos. O orgulho nacional, na sua versão televisiva, logo encontrou solução para o problema: fulano tal, português, décimo terceiro na meia-maratona de Mangualde, foi o “melhor europeu” ou o “primeiro não-africano”. Como quem diz: à parte os pretos, que não contam, ganhámos. Que portento!


Vem-me tudo isto à lembrança agora que Lisboa está cheia de monumentais lonas com garrafais letras a dizer Portugal e brindando o povo com “retratos da Costa Oeste da Europa por Nick Knight”. Uma nova campanha, destinada a promover o bom nome português como costa ocidental da Europa, não sei se por referência a Fernando Pessoa, se como colagem à West Coast californiana.

Ao que é público, a dita campanha, anunciada debaixo das luzes televisivas com ministerial presença, pompa e circunstância, conta com um orçamento de três milhões de euros, trezentos mil dos quais para pagar ao Nick, que ainda se deve estar a rir a esta hora. Aliás, o ministro, inquirido por um jornalista mais perspicaz sobre a razão de pagar com dinheiros públicos trezentas mil broas a um fotógrafo inglês, revelou presença de espírito e sentido de Estado ao afirmar que não tinha nada a ver com o assunto, que perguntassem ao responsável pela campanha. Afinal, não era ele o responsável. É só um detalhe, mas fiquei sem perceber o que é que ele lá andava a fazer.

Continuando, não sei bem que público é o alvo desta campanha, se interno, se externo. Li que em parte será externo, em "revistas de prestígio", mas não deve ser campanha muito massiva, porque descontando o dinheiro para pagar por cá as lonas e os anúncios de revista, mais o cacau do Nick Cavaleiro e a festarola de lançamento, não há-de sobrar muito. Resta a hipótese, que vou explorar de seguida, disto tudo ser para nos fazer a nós, portugueses, festas no ego.

E de que nos devemos orgulhar, de acordo com a campanha? De alguns atletas, um treinador de futebol, uma fadista, um arquitecto, uma artista plástica, uma cientista. Gente certamente notável, que merece toda a nossa admiração, que conseguiu ser excelente entre os melhores do mundo nas sua área de actividade. Feitos económicos, como a maior central solar do mundo ou a presença na crescente indústria da energia eólica, efectivamente louváveis num país com uma economia frágil. Mas que não chegam para que Portugal seja o último dos exemplos. São, meramente, os Futres e os hóqueis dos nossos dias.

Se a campanha se destinasse a promover lá fora a marca Portugal, para atrair turistas e investidores, poderia ser útil, se fosse pensada e desenvolvida com esse propósito. Mas, sendo para dentro, que vende esta campanha aos portugueses? O orgulho de sermos compatriotas daquelas pessoas? Será que os etíopes também acham que vivem no paraíso na terra só porque o Haile Gebrselassie tem o recorde do mundo da maratona?

Cresceremos como país se nos dedicarmos menos à vanglória das nossas excelências e mais à correcção dos nossos defeitos. Foi aliás isso que tiveram que fazer muitos dos nomes que aparecem nesta campanha. Quando o Cristiano Ronaldo chegou ao Manchester, o Ferguson, que come vedetas ao pequeno-almoço, não lhe gabou certamente o jeitinho para dar toques sem deixar cair a bola. Pô-lo no ginásio a fazer músculo, deixou-o no banco enquanto ele não pôs o génio ao serviço da equipa, transformou-o num capitão. Corrigindo o que estava errado, preenchendo o que não existia, em três anos fez dele um dos melhores do mundo.

Com os países passa-se o mesmo. Mais importante do que gastar bom dinheiro a propagandear os circunstanciais sucessos de A ou de B, muitos deles só possíveis por que A e B trabalham no estrangeiro onde lhes dão condições de trabalho e de exigência, interessa corrigir as nossas lacunas, na educação, na saúde, na justiça, na atitude que como um todo temos perante a vida. Se os portugueses sentirem que os seus governos dão o litro nessa tarefa, terão algumas razões para estar satisfeitos. Se as coisas forem melhorando nesses domínios, terão motivos para alguma vaidade.

Por tudo isto, esta campanha acaba por ser, ao mesmo tempo, um desperdício de recursos e uma parolada. Uma fachada para pendurar nas fachadas. Um regozijo estéril, pago por todos nós e promovido por quem deveria investir-se em actividades mais úteis para o país.

sexta-feira, dezembro 14, 2007

A coisa está a aquecer

O jornal Público brinda-nos durante a semana, na última página, com uma curiosa secção chamada “Pingue-pongue”. Nela, um Rui Tavares, historiador, e uma Helena Matos, jornalista, alternam a desdizer-se e a digladiar-se, seja qual for o tema, para nosso sorriso e por vezes para nosso bocejo. O Tavares é suposto representar a “esquerda” e a Matos a “direita”. Ambos se entregam ao desempenho dos seus papéis com a sofreguidão própria de gente de ideias muito arrumadinhas, em prateleiras e gavetinhas, com muitas certezas à mistura. Acabam por isso a interpretar mais os estereótipos do que o pensamento, propriamente dito, de esquerda ou de direita.

Espreitando nas entrelinhas, vem-nos espontaneamente a imagem de um Rui todo sensível, de lágrima ao canto do olho perante as maldades do mundo, empolgando-se com multidões embandeiradas, usando garridas calças de algodão do Egipto e sandálias alemãs. Do outro lado, uma Helena muito mulher-macha, arvorando rigores de testosterona, indignada com as fraquezas de carácter do Estado social e as lamúrias mariquinhas dos bons selvagens que preferem a aspereza inútil de uma falésia algarvia a um bom golfe de nove buracos e mil e quinhentas camas.


Lenine escreveu que o esquerdismo era a doença infantil do comunismo. Lenine queria criticar certos comunistas, que de tão obcecados com a pureza dos princípios, perdiam puerilmente o sentido das realidades e a eficácia da luta política. Sem querer ombrear, pobre de mim, com o homem com a pêra mais célebre da história, eu acrescentaria que o direitismo deve ser a doença geriátrica do fascismo. O direitista debita, vai-não-vai, farrapos de ideias velhas, que emergem sem aparente noção da realidade, vindas de uma memória nostálgica e vencida, num autêntico Alzheimer de conceitos.

Obrigados a encher a cada dois dias três colunas de diário, com o cérebro espartilhado pelos esquerdismos ou direitismos que se impuseram, o Tavares e a Matos frequentemente assistem ao próprio pé a fugir para a chinela do disparate. Em menos de um fósforo, aí estão eles a pensar o impensável, agitando um chavão qualquer num vácuo de ideias, freneticamente, como as braçadas que dão os cágados virados de costas.

Há dias, a Helena pulverizou todos os recordes de idiotice, de regionais a interplanetários, atacando as preocupações com o aquecimento global – pelos vistos, uma inquietação esquerdista – com o seguinte e tranquilizador exemplo: na Europa Central, entre 1570 e 1630, três a quatro mil mulheres terão sido queimadas como bruxas na sequência de chuvas, secas e outras pragas que destruíram as colheitas da vizinhança. Donde, já havia desordens climáticas. Donde, não há azar com o CO2 que se anda para aí a debitar. “Quod erat demonstrandum”, versão Helena Matos.

Obviamente, a menina Helena não captou a essência do problema, que se resume nos seguintes passos:

1) Os políticos ou os ecologistas não inventaram o efeito de estufa. O efeito de estufa é um fenómeno conhecido, física e quimicamente bem caracterizado. O efeito de estufa já existia na altura em que os dinossauros andavam aí a contribuir para o problema, exalando dióxido de carbono e bufando metano quando a digestão lhes corria menos bem. O efeito de estufa sempre foi uma das componentes do equilíbrio termodinâmico da nossa atmosfera.


2) A teoria diz-nos que mais emissões de gases de estufa provocarão maior retenção de energia solar na nossa atmosfera e logo temperaturas de equilíbrio mais altas. Faço notar, em proveito das Helenas deste mundo, que a palavra teoria não tem conotações pejorativas. As teorias do electromagnetismo permitem ao pessoal ter luz lá em casa e as teorias da mecânica dos fluidos aguentam no ar algumas toneladas de alumínio, pintadas com as cores da TAP.


3) As grandezas da física da atmosfera apresentam, por natureza, uma enorme variabilidade, no espaço e no tempo. Temperaturas, precipitações, velocidades do vento, flutuam a cada dia, a cada mês, a cada ano. A nossa vivência transmite-nos essa experiência. A nossa memória, essa, funciona como um filtro, valorizando mais os acontecimentos recentes e, sobretudo, os valores extremos. Eu, por exemplo, tenho uma memória muito nítida dos dias dos meus exames finais de liceu, em que uma vaga de calor levou Lisboa acima dos quarenta graus, fazendo com que as meninas se apresentassem às provas de “cai-cai” e mini-saia. É uma imagem que, provavelmente devido ao calor, guardo num cantinho privilegiado da minha lembrança.


4) A matemática, por outro lado, aborda a evolução das grandezas meteorológicas de uma forma mais rigorosa do que a memória humana. Se pegar numa hipotética listagem com todas as temperaturas tiradas ao meio-dia no Terreiro do Paço durante cem anos, um matemático olhará para a sequência de números e colocá-los-á num gráfico para ver o aspecto da evolução ao longo do tempo. A temperatura andará num permanente zigue-zague, para cima e para baixo, sem uma lógica aparente. No entanto, calculando certas grandezas a partir daqueles números (médias, variações e outras mais complicadas), o matemático eliminará a informação que não interessa (a que se chama “ruído”) e encontrará a resposta a muitas perguntas: será que existem comportamentos que se repetem? Provavelmente, são as estações do ano. Será que existe uma tendência para as temperaturas no longo prazo, a mais de um ano, irem subindo? Uma inflação das temperaturas parecida com a que encontraríamos numa série de preços de um bem?


5) No caso das análises a variáveis meteorológicas, o tal ruído é enorme, dificultando a obtenção de conclusões com um grau de certeza muito elevado (as pessoas de ciência, contrariamente à Helena, gostam de graus de certeza elevados para poder tirar conclusões). No entanto, a análise feita pela grande maioria dos especialistas sérios aponta para que exista uma tendência nessas grandezas (subida das temperaturas, aumento do número de furacões por ano gerados por um mar mais quente, diminuição das área das calotes polares que derretem com um ambiente menos frio, etc.). Tendência que aponta para a existência de um aumento global da temperatura do planeta.


6) Existindo um mecanismo teórico que aponta para a existência do fenómeno, havendo números que sugerem que as coisas não estão de facto a correr muito bem, e sendo as consequências potencialmente muito chatas para os que vierem a seguir a nós, se calhar convinha fazer qualquer coisa. A menos que não nos importemos que os nossos descendentes apanhem o cacilheiro no cimo do Parque Eduardo Sétimo e que os futuros Sporting-Benfica possam ser interrompidos por tempestades de areia. Isto, para não falar aqui de coisas piores, como guerras pela água, fomes e outros cenários.

O problema da Helena está em não ter percebido que a ciência não se discute como se discute um conceito ético ou metafísico. A ciência discute-se pondo mais ciência em cima, contrapondo ciência, melhor ciência, à ciência. Se a Helena não quer fazer má figura, que trabalhe os dados, melhor do que os cientistas que o fazem. Ou então que se cale!

Por mim, estou moderadamente preocupado. Não me sabe bem que os meus netos nos venham acusar de lhes ter deixado para viver um forno onde se esturrica que nem na fogueira das bruxas, de que falava a Helena. Por outro lado, acredito que se pode fazer algo. Que o problema pode ser controlado ou invertido. Mas, como diria o meu avô, para ganhar a lotaria é preciso comprar um vigésimo. Ou, em linguagem do século XXI, para ganhar o Euromilhões tem que se depositar o boletim.

domingo, dezembro 09, 2007

Don't give up

Hoje, calhou ouvir isto:

Nesta terra de orgulho crescemos fortes
Sempre desejados
Fui ensinado a combater, ensinado a ganhar
Nunca pensei que pudesse falhar

Não há por onde lutar ou pelo menos parece
Sou um homem cujos sonhos desertaram todos
Mudei a minha face e mudei o meu nome
Mas ninguém te quer quando perdes


Não desistas
Porque tens amigos
Não desistas
Ainda não estás vencido
Não desistas
Sabes que podes conseguir


Embora o visse por todo o lado
Nunca pensei que me pudesse afectar
Pensei que seríamos os últimos a ir
É tão estranho o modo como as coisas mudam

Guiei toda a noite até casa
O lugar em que nasci, à beira-lago
Quando veio a aurora, vi a terra
As árvores tinham ardido até cair

Não desistas
Ainda nos tens a nós
Não desistas
Não precisamos de muito de nada
Não desistas
Porque algures há um lugar a que pertencemos

Encosta a cabeça
Preocupas-te demais
Vai correr tudo bem
Quando os tempos são difíceis
Podes volver a nós
Não desistas
Por favor não desistas


Tenho que sair daqui
Não aguento mais
Vou até aquela ponte
E olhar para a água
Seja o que for que me advenha
E seja o que for que parta
Aquele rio corre
Aquele rio corre

Fui até outra cidade
Esforcei-me por assentar
Por cada emprego, tantos homens
Tantos homens de quem ninguém precisa


Não desistas
Porque tens amigos
Não desistas
Não és o único
Não desistas
Não há razões para teres vergonha
Não desistas
Ainda nos tens a nós
Não desistas agora
Temos orgulho em quem tu és
Não desistas
Sabes que nunca foi fácil
Não desistas
Porque eu acredito que há um lugar
Há um lugar a que pertencemos




Cantado ao vivo, em Itália, por Peter Gabriel e Paula Cole.

Raramente vi o desemprego tratado de forma tão sensível – mas tão perspicaz – e olhado na perspectiva do lado de lá, o da surpresa, do desespero, da vergonha, da anomia e da cedência.

Peter Gabriel canta o problema. Paula Cole canta uma solução, que passa por fazer do mundo um lugar a que pertençamos.

Passe um certo lirismo, o que esta canção alerta, aos que têm a mania que são mais espertos, é que o sistema que vangloriam em nome da eficiência, enquanto temporários vencedores, não lhes vai perdoar no dia em que eles já não derem jeito.

E mesmo aqueles que, neste mesmo sistema, estarão sempre na mó de cima, a arrotar postas sobre a ineficácia e o esbanjamento que resultam da protecção social, mesmo esses não têm grandes razões para estar tranquilos. A história demonstra que atitudes construtivas do género “comam brioche” acabam por ser mal percebidas pelos ingratos destinatários e levam a que rolem cabeças. Literalmente.

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Mataspeak faz um aninho

Faz hoje um ano, coloquei o primeiro texto num novo blogue: o Mataspeak. Reli hoje esse primeiro “post”, uma declaração de intenções sobre o que seria este espaço. Tenho que reconhecer que o Mataspeak evolui por caminhos diferentes daqueles que eu pensava inicialmente.

Uma coisa julgo ter cumprido: dizer o que penso, sobre o que me apetece e dar largas ao que vai dentro dos poucos centímetros do meu crânio. Ao fazê-lo, aproveitei para gozar o acto da escrita. Por vezes, peguei no microscópio e falei de coisas mindinhas, de importância aparentemente modesta. Noutras alturas, quis pretensiosamente mudar o mundo em três parágrafos. Numas e noutras, procurei partilhar questões que me fazem pensar com aqueles que me são queridos para que, sem que tivessem que concordar comigo, sobre elas reflectissem também. Tal deu origem a muitas conversas “a posteriori”, frente-a-frente, de copo na mão. Porque Mataspeak tem também sido uma casa onde os meus amigos me visitam, e as visitas retribuem-se.

Durante este ano foram quarenta e três entradas. Quase uma por semana, uma média pequeno-burguesa mas que ainda assim deu alguma satisfação. Aos meus maltratados leitores agradeço a paciência.


Contra as esperanças dos mais optimistas, Mataspeak vai continuar pelo segundo ano. E não, não vou mudar as cores: verde, branco e preto. Não quero saber que firam a vista. Só por estas cores é que vocês sabem porque não ficaaaam em caaaasa.

Três aparições de Kant num curral

Imagine quem me lê que uma mulher tinha dois filhos, um normal e outro que nascera com uma deficiência mental profunda. Posta nesta situação, adoptava o seguinte raciocínio: o meu dinheiro não chega para tudo; o meu tempo também não; mais vale por isso dar mais ao que é normal e que precisa de crescer bem do que ao outro que se calhar nem percebe o que se está a passar e que não tem grande futuro. E consequentemente, esta mãe canalizava os seus recursos e a sua dedicação ao filho são, deixando o outro mais abandonado, sacrificava por vezes a compra dos medicamentos deste último à satisfação dos normais caprichos de criança do primeiro, dedicava mais tempo a apoiar os trabalhos de casa de um do que a mudar a cama onde o outro jazia e assim sucessivamente. Mesmo que fosse verdade que a deficiência do filho doente fosse tal que ele nem sequer entendesse ou, no limite, que ele nem sofresse, que pensariam desta senhora? Aposto, singelo contra dobrado, que lhe chamariam monstro, com todas as letras.

Já todos vimos filmes em que um grupo de pessoas que não se conheciam se vê de repente atingido por uma catástrofe daquelas que os seguros não cobrem (naufrágio, incêndio no Empire State Building, fusão de um reactor nuclear, etc.). Em regra, nessas fitas, há sempre um ferido com alguma gravidade, de prognóstico reservadíssimo, que atrasa o grupo na sua fuga pela sobrevivência, reduzindo dramaticamente as suas já escassas probabilidades de sucesso. À primeira contrariedade, tipo desmoronamento ou explosão de gás, um dos personagens, sobre quem vai recair o ódio dos espectadores, diz algo como “se não o deixamos aqui, não temos qualquer hipótese”. O visado não pode deixar de concordar: “Ele tem razão. Safem-se vocês. Deixem-me ou morremos todos”. Claro que ele tem razão e todos o sabem. No entanto, o herói da história, contrariando o bom senso e as probabilidades, faz um “statement” do género “ou vamos todos ou não vai ninguém”, pega no ferido às cavalitas e desarvora por ali fora com os outros a reboque.

Perto do fim do filme, acontece sempre algum azar ao cínico que queria abandonar o outro desgraçado à sua sorte. Ou leva com uma viga de duas toneladas em cima ou cai por um inesperado poço abaixo, o que salva todo o grupo, numa espécie de “trade-off” cósmico. A morte do malandreco é celebrada mentalmente pelos espectadores, que pensam algo como “Querias deixar lá o outro não é? Bem que te lixaste”. Digam lá que não é assim?

Nas duas situações que referi, o que está em jogo é uma visão ética bastante vulgar nos seres humanos, independentemente do “background “ cultural, segundo a qual quando está em causa a dignidade, o sofrimento ou a vida de pessoas, o comportamento colectivo dos grupos nos quais essas pessoas se integram não deve resultar apenas de considerações de eficiência ou eficácia.

A grande maioria de nós vê como absolutamente errado que não se tente até ao limite salvar um ferido, mesmo num caso como o descrito em que, racionalmente, o comportamento oposto levaria a maximizar a esperança de vida de todo um grupo. De igual modo, a nossa condição humana leva-nos a esperar que uma mãe que se veja na situação inicialmente mencionada tenha, senão tanta, mais dedicação ainda ao filho doente, porque é o mais frágil. O facto de a criança poder nem ter consciência não altera esta nossa percepção. Pelo contrário, vemos como exemplos a seguir ou, até, heróis, aqueles que em situações como as citadas adoptam um comportamento que, podendo não ser o mais “lógico”, é o “correcto”.

Tentar salvar o nosso semelhante, não abandonar os mais fracos, são aquilo que Kant definia como “imperativos categóricos” ou seja actos sem fim instrumental, que se impõem por si próprios e que devem ser praticados incondicionalmente.

A concepção moral que lhes está associada é tão frequente que a biologia põe hoje a hipótese de o homem a ter desenvolvido de uma forma “darwiniana”: os grupos que tinham comportamentos que hoje vemos como nobres tinham melhores condições, a longo prazo, de sobreviver. Se assim foi ou não, para mim não tem importância. O que interessa é que a humanidade tenha conseguido criar e fazer perdurar um quadro de valores que não é puramente egoísta.


Veio-me esta lenga-lenga toda à cabeça após ler um artigo sobre a situação de crianças que, em Portugal, nascem com doenças raras, por vezes muito incapacitantes. Pais que pagam do seu bolso viagens ao estrangeiro para visitar médicos com a especialidade que em Portugal não há, usando os seus dias férias porque não têm qualquer apoio no emprego, com grande sacrifício, como se expiassem uma falta que não cometeram. Como sociedade, em que os ajudamos? Em nada. Estes pais foram abandonados por todos nós. Fomos andando para nos safar, que se fazia tarde, e ali os largámos à sua sorte. Portamo-nos como o filho-da-puta do filme, pensando mais na vidinha do que nas nossas obrigações. Pode ser que também acabemos debaixo de uma viga, antes da última cena. Não deixava de ser muito bem feito.

Para mais, nestes como noutros casos, não está em causa a maior ou menor probabilidade de morrermos todos. Está apenas em causa dinheiro. Paciência. Crescemos menos meio por cento ao ano. Investimos em menos uma auto-estrada. Vamos mais devagar. Não podemos é tolerar que sejamos uma sociedade que abandona os seus doentes à sua sorte, num “darwinismo” social repugnante.

Uma sociedade que não entende que também tem os tais imperativos categóricos, que nem tudo se traduz em entradas e saídas de orçamento, não é uma sociedade. É um curral.