sábado, dezembro 18, 2010

Wikinóias

“Benjamin felt a nose nuzzling at his shoulder. He looked round. It was Clover. Her old eyes looked dimmer than ever. Without saying anything, she tugged gently at his mane and led him round to the end of the big barn, where the Seven Commandments were written. For a minute or two they stood gazing at the tatted wall with its white lettering.

"My sight is failing," she said finally. "Even when I was young I could not have read what was written there. But it appears to me that that wall looks different. Are the Seven Commandments the same as they used to be, Benjamin?"

For once Benjamin consented to break his rule, and he read out to her what was written on the wall. There was nothing there now except a single Commandment. It ran:

ALL ANIMALS ARE EQUAL
BUT SOME ANIMALS ARE MORE EQUAL THAN OTHERS


After that it did not seem strange when next day the pigs who were supervising the work of the farm all carried whips in their trotters.”


George Orwell, in “Animal farm”


Tenho lido excitações várias a propósito do caso de Julian Assange e das por si desviadas duzentas e tal mil mensagens do Departamento de Estado norte-americano que, a conta-gotas, nos vão dizendo do mundo em que vivemos.


Surpreendentemente, e falando apenas de Portugal, algumas das argumentações mais pindéricas vêm de jornalistas de estatuto, como Miguel Sousa Tavares, Teresa de Sousa ou José Manuel Fernandes, que às vezes parecem ter esquecido qual a carteira profissional que levam na carteira.


A ver:


Argumento 1: o gajo só faz essas maldades aos Estados Unidos e não à Rússia ou à China ou ao Irão; logo está feito com essas potências malévolas.


Não sei se está feito ou não e também é totalmente irrelevante. Acho muito mais provável ele não ter conseguido sacar nada aos russos ou aos chineses, que pelos vistos são mais profissionais nessas coisas do secretismo. Mas pergunto: uma fonte de informação (que é o que ele na prática é) ou um jornal (que são o que são o Le Monde, o El País, o The Guardian, o Der Spiegel e o New York Times) têm que se preocupar com esse equilíbrio do terror na produção de notícias? O Bob Woodward e o Carl Bernstein, quando mandaram o Nixon de carrinho num contexto de Guerra Fria, deveriam ter tido em conta que não estavam a dar o mesmo tratamento ao Brejnev e ter-se patrioticamente recusado a pôr o Watergate nas rotativas?


Argumento 2: o gajo com essas revelações está a pôr em perigo a luta contra o terrorismo.


Não vejo que esteja e assim sendo é totalmente irrelevante. A informação foi entregue a cinco jornais dos mais prestigiados do mundo que vão tratando editorialmente a informação em bruto. Neste aspecto ele foi ou esperto ou prudente. E será ou não importante sabermos (e não apenas suspeitarmos ou conjecturarmos) que uma petrolífera corrompe governos, que uma farmacêutica persegue magistrados que investigam mortes causadas por testes de medicamentos seus ou que o nosso Zé deu o seu aval à utilização do nosso território para transferências de presos para Guantanamo e mentiu sobre esse facto aos eleitos em representação do povo (que, já agora, somos nós)? A mim parece-me de algum interesse público. Que diríamos de um jornalista que mantivesse esta informação para si? Certamente que tinha um jota pequenino.


Argumento 3: o gajo está a usar informação criminosamente roubada.


Quase de certeza mas também é totalmente irrelevante. E é por ser totalmente irrelevante que o direito ao sigilo sobre as fontes é uma pedra basilar da actividade jornalística nas democracias. Voltando ao Watergate, quase de certeza que o “Garganta Funda”, quando passou a informação cá para fora, não se chibou em total respeito pela legalidade. Mais uma vez, deveriam por isso Woodward e Bernstein ter ficado calados?


Argumento 4: o gajo andou a dormir com umas suecas.


Que lhe tenha feito bom proveito mas também é totalmente irrelevante. Aqui, os americanos tiveram azar. Logo agora que eles precisavam que isto não acontecesse e que tudo mantivesse um ar respeitável, aparecem estas tipas e fica logo o pessoal todo (que é maldoso) com a pulga atrás da orelha a dizer que estas duas não surgiram por acaso. E para mais com umas acusações que só traduzido do sueco: “sexo de surpresa” ou “sexo com ela meio a dormir”. Maravilha! Até eu já às vezes ando meio a dormir. Ainda vou parar aos tribunais.


Argumento 5: o gajo tem aquela cara.


Sim! Já li este argumento em letra de imprensa! Sem palavras. Totalmente irrelevante, claro.



Vamo-nos cingir ao que interessa. Cinco dos maiores e melhores jornais mundiais estão a seleccionar e publicar informação diplomática norte-americana, confidencial, sobre os mais variados assuntos e países. Obtiveram licitamente esse material de um fulano que o recebeu de terceiros, terceiros esses que ilicitamente promoveram a fuga. A veracidade dos conteúdos não foi desmentida. No global, as duzentas e cinquenta mil mensagens permitem-nos perceber o paternalismo suficiente com que o Império nos trata. Só os ingénuos se surpreenderão. Algumas dessas mensagens indiciam ou provam factos realmente graves. A situação é muito embaraçosa para a diplomacia dos Estados Unidos, que já se viu obrigada a começar a rodar diplomatas.


A única diferença face a outras vulgares fugas de informação está no volume, só possível nestes tempos de “terabytes” fáceis, no facto de a fonte dos jornais – Julian Assange – se manifestar publicamente em vez de ficar quietinha no anonimato e de ter um “site”, o Wikileaks, que tem como propósito divulgar publicamente informação que empresas, estados ou outros gostariam de manter confidencial. No Wikileaks podemos encontrar em bruto as tais duzentas e cinquenta mil mensagens.


Não muito surpreendentemente, os Estados Unidos querem a cabeça do homem e pressionaram empresas fornecedoras de serviços ao “site” (Amazon, Paypal, etc.) para rescindir com ele, tentando vaporizá-lo do ciberespaço. Também não muito surpreendentemente, a manobra não lhes saiu bem. A “internet” é mar para enguias e facilmente o “site” foge e se replica, existindo hoje na rede mais de dois mil espelhos do mesmo.


Mais surpreendentemente, muita imprensa (nomeadamente a portuguesa, mas não só), em vez de se atirar de cabeça a esmiuçar a informação disponibilizada e as suas consequências, prefere conjecturar sobre as “reais” intenções de Assange ou sobre a sua “verdadeira” personalidade ou dissertar sobre o carácter “voyeur” ou anarquista do “site” Wikileaks. Relatórios minoritários. O que admira e preocupa é ninguém se admirar ou preocupar. Deste estado espantoso só ouvi o Lula da Silva comentar, intrigado, no seu jeito pernambucano e com aquela sagacidade de quem perdeu um dedo no torno: “Oi! Ninguém vem defender a liberdade de opinião, não?”


Como gosto de saber sabido, visitei o “site”, julgando – à vista da sanha – que iria encontrar textos de Kropotkine ou arengas de Ossama Bin Laden. As únicas citações de políticos que lá encontrei pertenciam a Thomas Jefferson e James Madison, senhores cuja carantonha circula nas notas de dólar. Encontrei um “site” normalíssimo de uma ONG de recorte anglo-saxónico com um propósito declarado: revelar, da forma mais segura possível para as fontes, segredos que achem que o público deve saber. Apresenta uma política de confirmação de informação com a qual a nossa imprensa poderia aprender qualquer coisa. O “site” refere ter ganho prémios, da Amnistia Internacional e outro patrocinado pelo The Economist, pela sua actividade em prol da liberdade de expressão. Fui verificar e é verdade.


A Democracia tem aquela virtude binária que caracteriza a virgindade: ou sim ou não. Claro que faz parte do trabalho dos governos manterem informação confidencial em matérias cuja divulgação possa lesar gravemente o interesse colectivo dos países que governam ou a segurança dos seus habitantes. Convinha já agora que essa componente fosse controlada, por exemplo por comissões parlamentares. Por seu lado, a imprensa pode e deve, quando tem acesso a informação desta, analisá-la e divulgá-la se a considerar do interesse público. E é particularmente do interesse público quando o segredo serve para defender interesses privados. A este escrutínio podemos chamar sem medo “checks and balances”. E os governos democráticos ou aceitam estas regras do jogo ou passam a ser meramente governos, “tout court”.


O Wikileaks não é um fenómeno vulgar. Surge como mais uma das novidades da “Internet” que muda o modo como vivemos o mundo. Traz consigo um comboio de novas interrogações sobre novas formas quer da liberdade, quer da sua irmã gémea, a responsabilidade. Admito que poderá ter aspectos discutíveis e criticáveis – valerá a pena ler sobre isto o que escreveu Pedro Lomba no Público. Mas matar o Wikileaks a golpes de poder político e económico parece-me muito perigoso. E aceitar placidamente ainda mais. O que tenho visto nos dias recentes cheira nauseabundamente a perseguição e não me deixa descansado.


Por isso recuperei para nossa leitura o longo parágrafo em epígrafe tirado de “O triunfo dos porcos”, onde aparece a célebre “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros. A frase faz todo o seu sentido se lermos o que está imediatamente antes e o que vem logo a seguir. Os animais acabaram de ver o porco Squealer andar de pé, de chicote na mão, contradizendo o primeiro dos sete mandamentos da revolução animal que foram pintados na parede do celeiro: “tudo o que anda com dois pés é inimigo”. Baralhada, a égua Clover pede ao burro Benjamim, um dos poucos animais que sabe ler, que lhe diga o que está escrito na parede. Benjamim, que, à medida que os porcos iam alterando em seu proveito os sete mandamentos, várias vezes tinha mentido – por medo, piedade e cinismo – sobre o que lia, diz finalmente a verdade. Mas tarde de mais: no dia seguinte, todos os porcos usavam um chicote.


Se aqueles que podem falar se calarem, ou forem calados, mais facilmente os suínos se põem de chicote. Quanto aos Miguéis, Teresas e José Manuéis deste mundo, Orwell, preclaro, não os esqueceu: a quinta tinha uns carneiros que baliam sempre o que dava jeito aos porcos que fosse balido.


Curiosamente, o meu exemplar de “O triunfo dos porcos” foi-me oferecido nos meus doze anos, nos idos do PREC, por um casal amigo da minha mãe que era de direita e militante cristão, numa altura em que essa posição não era cómoda. Eles não tiveram dúvidas que uma fábula sobre a aspiração dos oprimidos à liberdade e sobre o modo como o poder pode corromper essa aspiração, escrita por um socialista, seria excelente leitura para um miúdo. Perdi-lhes o rasto e aproveito para lhes agradecer, se por improbabilidade lerem este texto. Não esqueci o exemplo do seu gesto. De facto, há pessoas para quem a Democracia é como o ar que se respira e outras para quem é como a roupa que se veste. Ou que se troca.

2 comentários:

NunoF disse...

E a parte que me surpreende mais em toda a gente que comenta ou fala sobre o assunto é o simples facto de não fazerem a mínima ideia como funciona o Wikileaks... Et tu amigo Mata, assumes que é o "gajo" que sabe e coloca lá as coisas.

O gajo propriamente dito no máximo decide quando, como e o que divulgar. Não tem fontes milagrosas nem contactos tipo Deep Throat que lhes passam as coisas em encontros furtivos nalgum parque de estacionamento dos subúrbios.

O Wikileaks tem um formulário, simples, onde qualquer um, através de um sistema que garante o anonimato, pode fazer upload de seja lá que documentos para o Wikileaks... daí o nome ser parecido com Wikipedia, uma enciclopédia online que qualquer um pode editar.

O Assange é apenas a cara do site... mas o site irá continuar a funcionar com o tipo na prisão, em casa ou a boiar no Tamisa. Quem faz o Wikileaks são os cidadãos do mundo que possuindo informação privilegiada decidem torná-la pública.

Para os políticos é o pesadelo mais profundo tornado realidade.
Para os jornalistas é mais um sinal de alarme que o asteróide está mesmo aí e os dinossauros estão no último estertor...

Alex disse...

Por uma vez não estamos de acordo; já não era sem tempo...

É que não me parece que Liberdade de expressão e Liberdade de informação estejam relacionadas com o que se passa com a WikiLeaks

Mas o que quero mesmo, mas mesmo, mesmo, é desejar-te um Bom Ano, sem retrocessos...