segunda-feira, outubro 13, 2008

Exposição fotográfica (V)

Todas tiradas em Preston, em Inglaterra, em Julho de 2004, com uma Sony Cyber-shot P72 de 4 MPx. Uma cidadezinha notável para quem gosta de cor.


domingo, outubro 12, 2008

Não é santo quem quer

Vasco Pulido Valente – de seguida VPV para poupar o teclado, indiscutível campeão nacional da maledicência científica, categoria pesos pesados e versão “world series”, meio século de carreira e vinte anos de solitária liderança, ao pé do qual os do “Eixo do mal”, os da “Noite da má-língua”, a bancada do Bloco de Esquerda e o Paulinho das feiras – já para não falar de mim próprio – não passamos de garotos imberbes, aventurou-se por razões incógnitas a dizer bem de alguém e espalhou-se. Tinha que ser.

Na sua crónica de sábado último no Público, VPV dá uma mãozinha ao Papa Bento Ratzinger, que veio recentemente a público defender o seu precursor Eugénio Pacelli, “aka” Pio XII, das bordoadas de certos historiadores que o acusam de leniência ou cagarolice, consoante queiramos manter o nível da conversa, diante dos regimes fascistas e nazis que atingiram o pico da folia durante o seu pontificado.

Com o rigor dos factos que o caracteriza, VPV explica que, diante das perseguições dos nacionais-socialistas aos católicos do sul da Alemanha, Pacelli negociou naturalmente com Hitler uma concordata em que trocou o silêncio da Igreja para defender os seus bens materiais e o direito de culto, de ensino e de assistência. Que embora protestasse em privado contra as facinorosices de Hitler, não o fazia em público, por pensar que tal contribuiria para ainda mais violência. Que, informado, não disse uma palavra sobre os massacres de judeus e só tardiamente e em pequena escala permitiu que a Igreja protegesse alguns deles. Conclui VPV do seguinte modo: “Só que Pio XII punha o interesse da Igreja institucional à frente de qualquer outro. E, com prudência, com astúcia e uma diplomática abstenção perante os males deste mundo, chegou a 1945 com uma igreja forte e quase intacta. O que faz dele um político de talento e um santo difícil de engolir.”

Santo? Ena, pá! É o que dá ser Papa. Houve outros que tentaram a mesma abordagem “soft”, tão “naturalmente” como Pio XII, se calhar imbuídos das mais prudentes razões políticas, e que acabaram nos manuais escolares como frouxos e otários, como o Chamberlain e o Daladier, ou como traidores, caso do Pétain. E possivelmente com toda a justiça, porque até o próprio Daladier, quando foi aclamado pela multidão no retorno de Munique, terá dito a quem com ele estava: “Ah! Les cons!”.

Para VPV (e aparentemente para Bento XVI), no limite, o papel da Igreja diante dos males do mundo dos homens (“este mundo”, que parece não ser o da Igreja) resume-se “naturalmente” a preservar a sua base material e política, e não a intervir em defesa dos que sofrem e em favor de um conceito de Bem. Tem que se ser, antes de tudo, prático. Lembra-me outro Bento, este também Paulo: o importante é haver muita tranquilidade.

Quem me ajuda a contrariar tão fraca tese?

Talvez São Paulo, na sua carta aos Efésios: “Por isso vesti a armadura de Deus para que, no dia mau, possais resistir e permanecer firmes, superando todas as provas.” Ou ainda, na segunda carta aos Coríntios: “ Este é o nosso motivo de orgulho: o testemunho da consciência de que nos comportámos no mundo, […] com a santidade e sinceridade que vêm de Deus.” Ou, finalmente, na carta aos Filipenses: “Uma só coisa: comportai-vos como pessoas dignas do Evangelho de Cristo. Deste modo, indo ver-vos ou estando longe, que eu oiça dizer que estais firmes num só espírito, lutando juntos numa só alma pela fé do Evangelho, e que não temeis os vossos adversários.”

Talvez Jesus Cristo: “ … sereis presos e perseguidos; entregar-vos-ão às sinagogas e sereis metidos na prisão; sereis levados perante reis e governadores, por causa do meu nome. Isso acontecerá para que deis testemunho. Portanto, tirai da cabeça a ideia que deveis planear com antecedência a própria defesa; porque Eu vos darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater. Sereis entregues até pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. Sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas não perdereis um só cabelo. É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida.”

Ou o mesmo Cristo, quando se sacrifica para nos salvar a todos, incluindo por dever de ofício o Pacelli, o Ratzinger e o VPV.

Firmeza diante da adversidade. Orgulho na consciência. Dignidade diante dos opositores. Testemunho. Naquela época difícil da Segunda Guerra, felizmente houve muitos, crentes ou ateus, que encontraram nestes conceitos a força para fazer melhor figura que o Papa Pio XII, senão a coisa podia ter corrido ainda pior.

Cristo teria certamente perdoado a Pacelli pela fraqueza e a Ratzinger pela hipocrisia. Afinal, nem todos são da massa de que são feitos heróis ou santos. Como nem todos possuem a arte do elogio. Por isso, VPV, não afagues. Limita-te a desancar.

domingo, outubro 05, 2008

Exposição fotográfica (IV)

Todas tiradas na Casa da Música, no Porto, em 21 de Março de 2008, com uma Canon 400D.



Guindaste 1.

Guindaste 2.

A floresta.

Os raios azuis.

Os cabides.

A nona arte

O jornal Público, que quando toca a acompanhar os seus jornais de “ofertas” prima pela excelência das colecções, vai lançar a série completa dos trabalhos de Edgar Pierre Jacobs, o criador de “Blake e Mortimer”. Ao tomar conhecimento desta boa notícia, veio-me à memória uma missiva que escrevi há tempos a uma pessoa que, julgava eu, não gostaria de banda desenhada. A carta acompanhava a minha prenda aniversariante a esse bom amigo: três volumes escolhidos da melhor “bêdê” ou, porque não dizê-lo, da melhor literatura, a ver se o endoutrinava.

É esse texto que segue aqui abaixo, só com pequenas adaptações, num testemunho da minha gratidão pelo muito que me trouxe a nona arte e a excelência dos seus mestres.


“Caro …,

A minha mãe tem um hábito prudente e algarvio de gabar previamente as prendas que dá, não vá o recipiente passar ao lado da valia do embrulho que lhe estão a pôr nas mãos. Mania que nunca lhe critiquei e que só desta vez vou imitar para dizer bem destes livros. Eles merecem.

Sei que não aprecias muito Banda Desenhada. Pois eu decidi oferecer-te uma prenda de que não gostas, mas cheio de fé de que gostarás. Estes três volumes têm a difícil mas provável missão de te fazer mudar de ideias e de te abrir as portas de um mundo novo, rico de humor e tragédia, de fantasia, de luta, de sonho ou de mensagem. Neste caso são volumes, enfim, “sérios”, mas podiam ser também “cómicos”, de um Goscinny, de um Gotlib ou de um Franquin. Vinha dar ao mesmo.




A “Balada do Mar Salgado”, do italiano Hugo Pratt, é a primeira e uma das mais célebres histórias da sua principal criação, o marinheiro Corto Maltese. Nascido em La Valetta, filho de um marujo inglês da Cornualha e de uma cigana de Gibraltar, Corto cresceu no bairro judeu de Córdoba e vive, quando lá vive, na Antígua ou em Hong Kong. Em jovem, cortou com uma faca a sua linha de vida, na palma da mão, traçando ele próprio o seu destino.

Destino esse que o leva a encontrar-se permanentemente com a História, por vezes num palco principal, muitas num canto escondido, quase sempre discreto mas sempre do lado do mais fraco, mesmo quando este está votado à derrota. Apesar do seu cinismo quase diletante, que usa como ferramenta de sobrevivência do mesmo modo que refere a sua imperial cidadania britânica, Corto Maltese é um herói romântico, que aceita com naturalidade o seu papel nos acontecimentos com que se cruza, sem os evitar mas também sem se apropriar deles. É um homem vivido, um lobo solitário e só, um alforge de qualidades que gostaríamos de ver nos nossos filhos: bravura, solidariedade, caridade, amizade, inteligência prática.

As histórias de Corto Maltese ocorrem num período que abarca o antes, o durante e o depois da primeira Guerra Mundial, quase sempre num cenário conturbado de conflito ou guerra. Cobrem uma monumental diversidade geográfica, do Pacífico à Irlanda, da Sibéria ao Império Otomano, de África a Veneza. Vão de um grande realismo a incursões pelo fantástico, sonhado ou mesmo mágico. Nelas, Corto Maltese vai-se travando de amizades com assassinos e professores universitários, com feiticeiras de “vudu” e ricos herdeiros, com militares britânicos e selvagens negros, ou seja com quem quer em quem ele identifique o bem essencial por contraponto a qualquer aparência mais enganadora. Esta miscelânea reflecte a crença do autor de que não têm valor as diferenças ideológicas, religiosas ou nacionalistas e de que algo bem mais profundo une todos os homens, mesmo quando por trás os cenários se desagregam e os separam.

A “Balada do Mar Salgado” começa por ser uma história de piratas trabalhando para um misterioso personagem, “o Monge”, que traz uma nota de fantástico e aproveita a envolvente da primeira Grande Guerra no quadro inesperado dos Mares do Sul. Pouco a pouco, a “Balada” vai evoluindo para uma bela história de amizade e amor, em que as fortes relações que se vão construindo acabam por ser mais importantes que os belíssimos panos de fundo de um exotismo exuberante que é tão característico de Pratt.

Nota, neste volume, o recorte cinematográfico dos planos, de que é exemplo a pungente sequência da página 187, com as lágrimas de Pandora, que sempre me comoveram tanto como as da Debbie Reynolds na cena final do “Serenata à Chuva”: “Hey! Stop that girl!”. O desenho de Pratt é rápido, por vezes só aparentemente tosco, mas de uma grande eficácia. As personagens podem ter uma subtil expressividade, como na serenidade triste de Pandora despedindo-se, na página 198, ou no olhar malévolo de Rasputine por detrás de um livro, na página 38.

O trabalho foi originalmente desenhado só a tinta-da-china e colorido numa edição já muito posterior. Talvez a versão a preto e branco seja superior (podes vê-la cá em casa). Ainda assim, muitas imagens desta nova edição guardam a memória do original: o mar negro em que voga o catamarã na página 38, as cenas de naufrágio nas páginas 61 a 63, com as gaivotas brancas esvoaçando no céu de breu ou as cenas subaquáticas das páginas 100 a 102, em que as formas se decompõem num zebrado surrealista.

Corto Maltese é um personagem invejável de referências culturais. Se pode lembrar os grandes clássicos de juventude, como Stevenson ou Jack London, pelo lado aventuroso, a riqueza, o colorido e o inesperado das personagens vão buscar ao estranho mundo de um Jorge Luís Borges e à sua “História Universal da Infâmia”, roteiro de bons e maus piratas. A edição que te ofereço contem um intróito onde encontrarás, para além de imagens referentes aos Mares do Sul, uma explicação do próprio Hugo Pratt e um ensaio de Umberto Eco, como que confirmando que “les bons esprits se rencontrent”.


“A Marca Amarela” é uma obra-prima noutro estilo. O seu autor, o belga Edgar P. Jacobs, ocupa na BD o lugar que na literatura pertence a Verne, a Wells ou a Bradbury. Com uma longa carreira de desenhador e argumentista, Jacobs só produziu oito livros da série “Blake e Mortimer”, um dos quais não terminou antes de morrer. Todos são livros de primeira linha: “O segredo do Espadão”, “O mistério da Grande Pirâmide”, “O enigma da Atlântida”, “A armadilha diabólica”, e por aí fora. Jacobs escreve e ilustra uma ficção científica quase realista, só uns anos à frente do passado, que com o passar do tempo ganhou uma soberba “patine”, tornando-se um futuro que nunca aconteceu.

Uma das razões pelas quais Jacobs publicou tão pouco está no rigor que pôs no desenho dos cenários. Muitos destes, como por exemplo de uma casa, podem resultar de centenas de fotografias, tiradas pelo próprio ou recebidas do Cairo, do Afeganistão, de onde fosse. Construiu maquetas de objectos ou bustos de personagens para se certificar que a sua representação era a correcta sob qualquer ângulo. Redesenhava diversas cenas sob outras perspectivas, que não iriam ser publicadas, apenas para verificar a sua coerência. Certa vez esteve três semanas com o trabalho parado, à espera de fotografias dos caixotes de rua em Tóquio – detalhe importante. Neste aspecto lembra o escultor que talhou o “Auriga”, na Grécia Antiga: embora a estátua estivesse colocado no topo do frontispício de um templo, só visível da cintura para cima, todo o resto do corpo, e sobretudo os pés, está esculpido com uma impecável perfeição, porque se é para se fazer bem, é para se fazer bem!

Esta representação perfeccionista, associada ao facto de a narrativa ocorrer sempre num futuro quase presente, permitem que Jacobs aborde temas fantásticos “clássicos” sem cair na exuberância barroca da grande maioria dos outros autores. Sobriedade é a palavra de ordem, e Jacobs descreve civilizações perdidas, guerras holocáusticas, viagens no tempo ou homens artificiais como quem pinta cavalheiros de gravata a fumar um charuto após o jantar. Enquanto Hugo Pratt traz o exotismo da Polinésia para falar de corriqueiros amores e desilusões humanas, Edgar Pierre Jacobs usa de sobriedade para nos mostrar Mortimer a fugir de um “Tiranossaurus Rex”, depois de uma avaria na máquina de viajar no tempo. Nas palavras do próprio, “em ficção científica é preciso saber até onde se pode ir longe demais”.

Os heróis, o Capitão Francis Blake e o Professor Philip Mortimore, perfazem o modelo ideal e idílico do gentil homem britânico: cultos, educados, corajosos, dedicados ao bem comum, leais, patriotas, honrados e sempre impecavelmente compostos (excepto se perseguidos por “Tiranossaurus Rex”). Partilham uma amizade viril, num mundo tipicamente masculino como é o da banda desenhada franco-belga dos anos 40 a 60, em que a sexualidade das personagens era totalmente mitigada e substituída pela amizade, sentimento mais adequado a rapazes em formação (a BD não era na altura leitura própria para meninas). E assim temos Tintin e Haddock, Astérix e Obélix, Spirou e Fantasio, Alix e Enak, etc., para além, claro, de Blake & Mortimer. Só depois do Maio de 68 e da revolução sexual que se lhe seguiu, o sexo feminino – e o sexo “tout court” – entram na banda desenhada, com namoradas ou amantes dos heróis, com companheiras de aventuras ou com heroínas a título próprio. Nessa altura, a situação destes heróis misóginos foi revisitada, levando a sugestões, sem dúvida exageradas, de homossexualidade latente entre as personagens. Talvez por isso, os argumentistas e desenhadores que continuaram a série após a morte de Jacobs, e que tiveram sempre uma preocupação extrema em respeitar as temáticas, a tipologia da narrativa, o grafismo, os enquadramentos, o colorido, etc., originais do mestre, optaram por humanizar (ou melhor – “mulherizar”) neste aspecto um pouco a série: Blake e Mortimer passaram a ser mais sensíveis aos encantos femininos e surgiram revelações de amores de juventude. Em qualquer caso, Blake & Mortimer são personagens de outro tempo ou, melhor, do nosso imaginário sobre outros tempos.

Philip-Edgar-Angus Mortimer nasceu em Simla, na Índia, filho de um médico escocês do Exército Britânico das Índias. Aos onze anos, rumou à Escócia onde estudou nas melhores escolas até um BSc, após o que se especializou em física nuclear no M.I.T. e em Berkeley. Fino currículo, portanto. O seu saber não é facilmente confinável. É o investigador humanista, aberto a todos os problemas que se lhe deparam. Acumulando a ciência com a acção, Mortimore é um homem robusto com experiência de boxe, judo e karaté, o que lhe é bastante útil em muitas das situações delicadas a que o seu carácter impulsivo e a sua intransigência em questões de honra o estão sempre a atrair. Bebe Cardhu e fuma Virgínia no seu cachimbo.

Francis-Percy Blake nasceu em Llangowlen, no País de Gales, filho de um coronel do corpo de Reais Fuzileiros Galeses. Oriundo de uma família notável de militares e homens de lei, Francis preferiu a carreira castrense. Assim, após estudos em Eton, entra para o “Staff College” da “Royal Air Force”, de onde sai já com o grau de capitão. Segue-se a R.A.F. e depois a “aeronaval” como líder de esquadrilha a bordo do porta-aviões Intrepid. É daqui destacado para a Secção Especial do Almirantado em Scaw-Fell, on se leva a cabo, no maior segredo, a construção do Espadão, o submarino voador desenhado pelo Professor Mortimer. Aí nascerá a solidíssima amizade entre Blake e Mortimer.

Ao contrário de Mortimer, Francis Blake é a fleugma britânica em pessoa. Comparado com o amigo, parece frio e afastado, e absolutamente seguro das suas reacções. Mas tal aparente insensibilidade apenas se deve a um horror muito atavicamente britânico em manifestar publicamente os seus sentimentos. Blake é tenaz, perseverante, combativo, não se poupando a esforços até encontrar uma solução. Contrariamente a Mortimer, sempre pronto a mandar-se de cabeça para a aventura, Blake é circunspecto, ponderado e prudente. Mas quando chega o momento da acção, a sua bravura não fica a dever nada à do seu companheiro. Colecciona condecorações (“Disguinshed Service Order”, “Military Cross”, “St.George Medal”, “Victoria Cross”) e um título de baronete! Se bem que promovido a coronel, os colegas continua a tratá-lo amigavelmente por “capitão”, em homenagem a um longíquo antepassado que desbaratou os navios de Filipe-Augusto de França em 1213. Como bom bife da elíte, pratica desportos “snobs”: pólo, golfe e vela.

A descrição dos personagens que acabaste de ler foi adaptada de palavras do próprio autor. É óbvio que Jacobs quis criar estereótipos perfeitos, modelos pelas qualidades mas também pelo extracto social. Reflectem portanto uma visão elitista, a dos “bem nascidos e bem fadados”. Na banda desenhada de hoje, os heróis tendem a ser mais complexos, menos puros, mais torturados. Personagens como estes até serão sujeitos a chacota: há, aliás, uma sátira recente, chamada “As aventuras de Philip e Francis”, em que toda esta assepsia britânica sai coberta de grande gozo. Mas o facto de Blake & Mortimer continuarem a encantar novas gerações mostra que heróis exemplares e uma boa e emocionante história ainda encontram eco na nossa disposição para sonhar.

E a “Marca Amarela”? Uma história na essência simples: heróis contra vilões, o bem contra um mal misterioso e inexplicavelmente todo-poderoso. Um romance policial com inspirações no fantástico gótico tão ao gosto anglo-saxónico. Um filme negro em quadradinhos. Mas por cima disto, um pouco mais do que isto. Sem entrar em detalhes, para não te estragar a leitura e a descoberta, “A Marca Amarela” é também uma história de vingança, que contem uma reflexão, explícita, sobre o papel da ciência e do saber e outra, implícita, sobre a intolerância e o pedantismo daqueles que julgam ser donos da verdade. Estas são reflexões recorrentes em Jacobs, que escreve a sua obra durante uma Guerra Fria atormentada pelo risco do holocausto nuclear e dos novos demónios que o cogumelo de Hiroshima tinha libertado para a paranóia colectiva.

O grafismo, que atinge aqui uma sobriedade extrema, está todo ao serviço da vertente negra da história. O aspecto quase sobrenatural do “Marca Amarela”, deixando a permanente dúvida se ainda estamos num policial ou já no terror, a eficácia do logótipo, a oposição entre o claro e o escuro, a representação da noite como momento do mal, tudo concorre para dar ao enredo a sua personalidade de história fantástica.


E, sobretudo, a “Marca Amarela” é Londres. Não há obra – literária, cinematográfica ou outra – que melhor represente a minha ideia de Londres do que esta. Começando logo, com a fabulosa cena inicial na Torre de Londres, sob um céu de chumbo e uma chuva intemporal. Continuando com as imagens do “Centaur Club”, em Picadilly, ou o passeio do Dr. Vernay da página 11, ou de Limehouse Dock. Sobretudo, a humidade permanente nas lajes de cimento dos passeios que calcorreei tantas vezes e que as encontrei tal e qual as descreve Jacobs em “A Marca Amarela”.



Por último, “A Caçada”, do franco-jugoslavo Enki Bilal (desenho) e do francês Pierre Christin (texto). Enki Bilal, embora aqui só desenhe, é também argumentista e autor de um universo imaginário passado num futuro inquietante (vide, por exemplo, a “Trilogia Nikopol”), com imagens cheias de simbolismo e de um primor gráfico único. É essa inquietação que imediatamente assaltará, desde o primeiro quadrado, o leitor da “Caçada” que reconheça o estilo. Pierre Christin foi escritor, argumentista de BD e cinema, jornalista, músico de “jazz”, etc. e tal. Em banda desenhada, aparte esta colaboração com Bilal, criou com o desenhador Mezières a excelente – embora por vezes um pouco delirante – série de ficção científica “Valérian”, que inclui um dos meus livros favoritos, “A cidade das águas vivas”, aventura e acção numa Nova Iorque pós-apocalíptica, mas com uma mensagem de esperança no futuro.

Quanto a “A Caçada”, é uma obra complexa e densa no enredo, na mensagem e no desenho. A história passa-se em 1983, em pleno “Breznevismo”, perto de Krolowka, na Polónia, durante uma caçada na neve em que participam proeminentes membros dos partidos comunistas dos diversos países do então “bloco de leste”. Não te irei obviamente dizer o que se passa, para que não percas o interesse, mas o personagem fulcral é Vassili Alexandrovitch Tchevtchenko, influente veterano do regime soviético, com um passado que remonta aos dias da Revolução Russa.

Através do desenrolar da acção e paralelamente através das memórias que Evgueni Golozov, seu adjunto, e os restantes personagens nos vão dando de Tchevtchenko, vamos descobrindo as diversas facetas de um indivíduo complexo, de uma pessoa real tão diferente do homem imaginado que é Corto Maltese ou dos heróis ideais que são Blake & Mortimer. Vamos descobrindo como Tchevtchenko navegou a torrente histórica da Revolução Russa, lutando, manobrando, amando e sofrendo. Ficamos, no final, na dúvida sobre quem é este homem. Um revolucionário ou uma vítima da revolução? Um grande líder ou um assassino? Um figurante sujeito aos ditames de um enredo maior do que ele ou um actor principal, com autonomia para modificar o seu papel e conduzir o desenvolver da trama?

O que faz deste livro um grande livro, capaz de repousar sem vergonha na estante ao lado de um “O estrangeiro”, de um “D. Quixote” ou de um “O jogador” é esta capacidade de nos revelar a diversidade que há no Homem, através da agregação de diferentes mas comunicantes planos, de histórias dentro da história: a história pessoal de Vassili Alexandrovitch Tchevtchenko, a da Revolução Soviética, a do processo estalinista ou mais genericamente totalitário, a análise do poder e do seu exercício.

O desvendar, lento mas inexorável, desta múltipla geometria dá-se sobre o pano de fundo do desenho de um Enki Bilal no seu melhor, em que o realismo genérico da representação é subtilmente modificado, aqui e ali, na arquitectura do hotel ou nas memórias dolorosas, para invocar os universos imaginários de outras obras dos autores, alertando-nos e inquietando-nos. O cromatismo é fabuloso, com o simbolismo vermelho de sangue da violência sempre latente, bem como o falcão, ave de mau augúrio, sobrevoando discretamente a história, ora ave, ora massa sanguinolenta como as mãos ou as consciências dos personagens.

Enfim, já me alonguei, tirando-te precioso tempo para te lançares na leitura dos três canhanhos que aí tens. Espero que no fim fiques com vontade de mais, porque há muito mais para ler, rir e chorar no mundo da BD: as reportagens desenhadas de Joe Sacco na Palestina e na Faixa de Gaza, as memórias torturadas de um sobrevivente de Auschwitz, vistas pelo seu filho, em “Maus”, o fabuloso humor de Marcel Gotlib no “Rubrique-á-Brac”, as linhas da História enovelando-se através da descoberta de uns “Dez Mandamentos” muçulmanos, na série “O Decálogo” de Giroud, o “Grito do Povo” na comuna de Paris com Tardi, o mundo a preto e branco de Will Eisner e o seu “Spirit”, etc., etc., etc.

Um abraço amigo e boas leituras”

quarta-feira, outubro 01, 2008

Exposição fotográfica (III)

Casa em Preston, no Lancashire. Uma antiga cidade operária, hoje essencialmente dedicada à sua universidade, em que o velho tijolo contrasta com ombreiras e portadas de todas as cores. Julho de 2004. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Plasma no Visionarium de Santa Maria da Feira. Março de 2008. Canon 400D, 52mm, 1/40s, f5.6.



Bancadas desertas no Estádio Alvalade XXI. "Esforço, dedicação, devoção e glória", "só eu sei porque não fico em casa" e essas coisas... Canon 400D, 200 mm, 1/200s, f6.3.



Pôr do sol em Porto Covo. Agosto de 2007. Canon 400D, 200mm, 1/100s, f5.6.



Museu da ELectricidade em Lisboa. Março de 2007. Canon 400D, 200mm, 1/800s, f11.

terça-feira, setembro 30, 2008

Outra vez a palhinha

Hoje estou com grã vontade de arrear nos republicanos americanos. Isto, depois de mais uma machadada nas minhas pobrezitas aplicações, resultante do chumbo, maioritariamente votado por eles, do plano por acaso gizado por eles para resolver a cratera financeira criada por eles. “So being”, aqui vai um videozito do mais puro realismo sobre a Sara Palhinha.

segunda-feira, setembro 29, 2008

Exposição fotográfica (II)

Guimarães: Afonso Henrinques saindo pela manhã para o trabalho. Março de 2008. Canon 400D, 55 mm, 1/400s, f14.



O boneco é angolano e ter-se-á farto do National Geographic. Fevereiro de 2008. Canon 400D, 39 mm, 30s, f29, com tripé.



Funchal, tirada num hotel do Lido. Janeiro de 2006. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Na Casa da Calma, turismo rural ao pé de Santa Catarina, no Algarve. O gato da proprietária adormeceu na espreguiçadeira. A toalha pu-la lá eu e o difícil foi não acordar o bicho. Setembro de 2004. Sony Cyber-shot DSC-P72.



Alfama: resquícios de arraial no Largo de São Rafael. Abril de 2008. Canon 400D, 18 mm, 1/200s, f8.

domingo, setembro 28, 2008

É uma casa portuguesa com certeza

No Expresso de hoje, titulava-se que 3200 (três mil e duzentas) casas foram atribuídas por cunha em Lisboa. O processo está em investigação e os detalhes ventilados pela imprensa desanimam o mais confiante dos optimistas quanto à perspectiva de isto algum dia tomar rumo de jeito.

Sempre houve cunhas em Lisboa. Só na lista telefónica encontrei próximo de seiscentos, incluindo uma Aida Purificação, um Albérico, uma Anália, uma Carmelita (suponho que das calçadas), um Gumercindo, uma Liseta, uma Osmia e um Otílio. Mas tão peculiares antropónimos não são metade do estranho que são os casos de cunha que o Expresso relata. E estes, o mais estranho – e preocupante – que têm é o facto de já não estranharmos.

Como nós não estranhamos, os cunhados e os afilhados também já não. Escolho um apenas como emblemático exemplo. Funcionário da tipografia da Câmara de Lisboa, foi-lhe atribuído nos anos oitenta um T1 em Telheiras, porque estava em processo de divórcio e tinha um filho a cargo. Piedosa atenção da edilidade, assumamos que justa. Pois hoje, o então indigente já subiu a pulso até director camarário (vamos generosamente supor que por mérito), casou outra vez, comprou nova habitação, mas mantém a casa atribuída pela CML e, não ciente do abuso que comete, ainda disparata do seguinte modo: “O meu filho é que mora lá. Não tenho dinheiro para lhe comprar uma casa nova”. E alonga-se mais: “É a minha casa de reserva. Se amanhã tiver que me separar outra vez, para onde é que eu vou?” E agora digo eu: “Olha, vai para o caralho!” Com perdão aos meus leitores pela má palavra, mas não consegui encontrar nos seis gordos volumes do dicionário Houaiss outro vocábulo que melhor se aplicasse aqui. E juro que procurei.

Então o teu filho, que agora pelas minhas contas andará a caminho dos trinta anos, não pode arranjar casa sozinho, como o resto das tropas? Agora o direito a tê-uns em Telheiras tornou-se hereditário? Coitado, o rapaz deve ter saído a ti! E tu, se não queres ir para o olho da rua, não te separes. Põe-te à tabela. Torna-te indispensável. Vai a uma consulta de andrologia ou compra umas caixas de Viagra®. Mas devolve lá a casinha ao erário público, que eu, que pago imposto municipal, não tenho nada a ver com os teus problemas sentimentais.

Não haverá na Praça do Município alguém de coração misericordioso que cometa a caridade de oferecer a este senhor uma tardia oportunidade de aprender a desenrascar-se sozinho, despedindo-o sumariamente?
Quando me casei, comprei um apartamento na periferia de Lisboa. A mensalidade custava 75% do meu salário. Como não tinha dinheiro para a mobilar, vivi dois anos numa casa dos meus pais (não atribuída por qualquer autarquia) até me poder mudar. Consequentemente, a câmara retirou-me dois anos de isenção de contribuição autárquica, um direito que eu tinha, sob o pretexto que não habitava lá. Pudera! Só se me deitasse no chão! Ainda me desloquei às Finanças, mas o funcionário, embora simpático para com a minha situação, explicou-me que nada havia a fazer. Aplicava-se a letra da lei, não o seu espírito.

Este meu caso nem sequer é dos mais danosos ou chocantes, quando comparado com outros que conheço e, suponho, muitos outros que desconheço, de prepotência sobre os contribuintes. Mas todos eles fazem com que os abusos que o Expresso hoje relata e, sobretudo, a ligeireza desculpabilizadora com que os beneficiados se justificam se revistam de uma gravidade extrema.

Ficar com um T1 em Telheiras que não se lhe pertence é, na prática, como roubar 150.000 €. Quando um bandido assalta uma agência do Espírito Santo e leva uma quantia destas, vê-se a braços com a justiça se apanhado. A quem se apropria indevidamente de um valor imobiliário de igual montante, ou a quem deixa apropriar, não lhe deveria acontecer exactamente o mesmo? A única diferença entre as duas situações reside na identidade dos lesados: no primeiro, o Dr. Ricardo Salgado e os restantes accionistas do BES; no segundo, eu e os demais habitantes de Lisboa.


A corrupção, o clientelismo, o nepotismo, são dos maiores cancros que um regime democrático pode ter. Porque minam o próprio âmago do que faz ou deveria fazer a força das democracias: a igualdade de deveres e oportunidades diante da Lei, a condução da coisa pública na procura desinteressada do bem comum, a superioridade moral que advém de a todos atender de igual modo, de acordo com as necessidades de cada um e as possibilidades existentes.

Se a democracia for forte e as pessoas sentirem que estes princípios de justiça e igualdade são aplicados, aceitarão pacificamente que sobre elas se faça o exercício do poder, uma vez que reconhecerão que é para o bem de todos. Se, pelo contrário, a democracia for fraca e as pessoas verificarem que o poder é exercido por uns em proveito de poucos, afastar-se-ão progressivamente do regime e, ao primeiro tropeção da situação (crise económica, aumento de insegurança, escândalo maior, etc.), virar-se-ão para soluções mais nefastas, como derivas autoritárias, homens providenciais, sanhas moralistas e outras que tais. A História assim o demonstra, no modo como terminou a nossa Primeira República e na tele-democracia de Berlusconi, da subida ao poder de Júlio César à subida ao poder de Adolf Hitler, do peronismo ao bonapartismo.

A democracia portuguesa é recente e ainda não está suficientemente escorada, sobretudo na mentalidade dos governantes e na dos governados. Na dos primeiros, para quem o poder ainda é um fim e não meramente um meio e que vêem com frequência os bens públicos como sendo deles, quando são de todos. Na dos segundos porque ainda toleram excessivamente os primeiros. E tolerar excessivamente aqui significa tolerar, nem que seja marginalmente, aquilo que é intolerável, como o clientelismo e a corrupção. Significa, por exemplo, voltar a votar, com o pretexto de que não há alternativa, num partido que aceita sem nada fazer situações como as descritas. Há sempre alternativa, nem que seja dar maciçamente o nosso voto àquele partido dos Açores que tem uma ave no emblema.

Conta a anedota que perguntaram uma vez a um lorde inglês o que era preciso para construir uma democracia, ao que ele respondeu: várias gerações. Temos portanto a desculpa de ainda ter algum tempo, mas convém ir começando.

Exposição fotográfica (I)

Provavelmente menos atentos, os organizadores das mostras fotográficas no CCB e em Serralves ainda não me convidaram para expôr a minha arte. Perderam uma boa oportunidade, pois acabo de negociar com o blogue Mataspeak o exclusivo da exposição regular de alguns dos meus melhores instantâneos. A começar... agora!




Carcaça de navio no norte da Bretanha, perto de Paimpol, onde a amplitude de maré é enorme. Passado algumas horas, o mar iria submergi-lo, como todos os dias. Junho de 2005. Tirado com uma mísera Sony Cyber-shot de 4 Mpx.



Fundo de um tanque num jardim contíguo à pousada do Alvito. Janeiro de 2007. Sony Cyber-shot DSC-P72.



"Lobby" do hotel Intercontinental em Abu Dhabi. Tirada durante o Ramadão, o cartaz publicita a excelência do "iftar" servido. O "iftar" é a refeição de fim de dia que quebra o jejum obrigatório. Sony Cyber-shot DSC-P72.


Rua de Odeceixe, numa noite de Verão. Agosto de 2006. Sony Cyber-shot DSC-P72.




Rue de l'Alboni, em Paris, ao pé do Trocadero. O letreiro fluorescente de uma farmácia forneceu o reflexo esverdeado. Outubro de 2007. Canon 400D, zoom a 28 mm, 1/60s, f6.3.

segunda-feira, setembro 08, 2008

A Sara Palhinha

Imaginemos que no partido que governa hoje o nosso país cerca de metade do eleitorado acreditasse no Pai Natal. Não no sentido figurado da expressão: que acreditasse mesmo a sério. Que escrevesse carta para o pólo norte abonando o seu bom comportamento anual, a ver se pingava uma prendinha. Que, na véspera do dia vinte e cinco, pendurasse as meias à lareira e lubrificasse o rebordo da chaminé. E que piamente cresse, na manhã de natividade, que o embrulho colocado debaixo do pinheiro viera nessa noite em trenó puxado por renas.

Deliremos mais um pouco. Assumamos agora que essas pessoas consideravam imorais ou incapazes quem, ao contrário delas, não acreditasse no Pai Natal. Que contribuíssem, com finanças mais ou menos parcas, para a promoção de estudos ditos científicos que, em teoria, comprovassem teoricamente a existência do velho barbudo. E que fizessem da crença neste São Nicolau condição necessária para eleger os seus governantes. Que tal? “O Mataspeak, hoje, passou-se de vez!”, dirão os muito estimados leitores.

Ora, o líder deste partido, se de forma pública e notória não acreditasse no Pai Natal, teria um problema para resolver. Como manobraria para ser reeleito? Por um lado, se se mantivesse firme no seu cepticismo, alienaria metade do seu eleitorado, correndo à ruína. Mas se, ao contrário, desatasse a proclamar que tinha andado ao engano, que afinal existia, que por epifania se lhe revelara, de casaca vermelha e barba branca, aí seria pior a emenda que o soneto. Não só os crentes desconfiariam da jogada, aderindo moderadamente, como a outra metade da sua base de apoio fugiria, receosa de eleger um fanático.

Que fazer, então? Uma safa possível passaria por escolher para número dois do partido um tipo que acreditasse mesmo muito no Pai Natal. Um fanático da prenda no sapatinho. Um louquinho do “oh-oh-oh”. Este totó atrairia o voto dos “painatalistas”, que pensariam tacticamente que sempre vale mais ter um número dois do que não ter nada. E o líder garantiria a cruzinha dos que não são parvos, que se resignariam a aturar os dislates do número dois a título de mal necessário.

Bom! O filme de terror acima descrito por acaso até saiu da minha cabeça, mas representa uma versão reduzida e simplificada do “multilema” que se punha até há dias atrás ao senador John McCain. McCain concorre à presidência dos Estados Unidos da América, por detalhe a maior potência mundial, representando um partido, o republicano, onde uma parte significativa e decisiva dos eleitores acredita não num, não em dois, mas numa data de Pais Natal.

Uns acham que o homem foi criado todo bem-postinho ao sexto dia e que isto é que deveria ser ensinado nas aulas de biologia. Outros pensam que o facto de qualquer idiota poder ser dono de uma arma de fogo não tem nada a ver com as matanças que todos os anos ocorrem nos liceus americanos, quase com a mesma tradicional frequência que o baile de formatura. Há os que julgam que a substituição da educação sexual escolar pela promoção da abstinência entre os adolescentes não está na origem da maior taxa de gravidez precoce do mundo ocidental. Aqueloutros ainda não perceberam que os furacões cada vez mais vezeiros e violentos que levam no toutiço têm origem no aquecimento global promovido pelas carradas de CO2 que a indústria americana debita cá para fora. Verdade seja dita, não devem morar na Louisiana ou na Florida. Outros ainda supõem que a coisa se resolve furando mais poços de petróleo, dê lá onde der. E não me admirava que alguns haja lá para o meio que acreditam mesmo na existência do Santa Claus, “himself”. Já agora, para maluco, maluco e meio.

Ora o McCain, do alto dos seus setenta anos, inscreve-se mais no estilo do velho partido fundado em 1854 por anti-esclavagistas e modernizadores da política americana, o partido de Lincoln e de Theodore Roosevelt, partido que pouco tem a ver com a cegarrega autoritária e atrasada mental dos últimos tempos. Para parte da turba votante, é um suspeito esquerdista, apesar das condecorações e das cicatrizes.

Com tanto sandeu para contentar, McCain precisava de vários vice-presidentes, mas as regras deixadas pelos pais fundadores só lhe permitem um. Vai daí, passou a base de dados com os trezentos milhões de norte-americanos num algoritmo de optimização multi-variável e conseguiu desencantar numa vilória do Alasca o único americano – no caso uma americana – que não só acredita nos Pais Natal todos, como tem a idade e o sexo que ele não tem (demograficamente falando, é claro).

Sarah Palin nasceu no Idaho mas foi criança para o Alaska. O pai Palin ia com ela caçar o alce antes da hora de entrada na escola e a família entretinha-se com corridas de 5 e 10 km, o que a menos quarenta deve ser o máximo. Claro que isto tinha que deixar marcas na pequena Sarah que cresceu cristã evangélica, criacionista, membro da “National Rifle Association”, “pro-life”, “pró-virgem até ao casamento”, “pró-corte de subsídios aos deficientes”, “pró-esburacar o Alasca a sacar petróleo”, “pró-censura dos livros inconvenientes”, “pró etc.” Pró caraças não lhe faria mal nenhum!

Mas como Deus dá com uma mão o que tira com a outra, para compensar tanta burrice deu-lhe uma carinha laroca, com a qual ganhou o título de Miss Wasilla, possivelmente competindo contra duas ursas polares e uma “inuit” velhota, para que o “quorum” fosse preenchido. Forte desse diploma de beleza, andou em cinco universidades diferentes para acabar um curso de jornalismo, tornou-se repórter desportiva, presidente da câmara de Wasilla (sete mil alminhas, já contando os alces que sobreviveram ao pai Palin), governadora do estado (onde rapidamente deixou o orçamento num triste estado) e agora candidata à vice-presidência dos Estados Unidos da América. É assim como se a presidente da junta de freguesia de Curral das Moinas se visse de repente em ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.

Tudo isto seria motivo para uma boa galhofa, não fosse o McCain ter setenta e dois anos, com quatro melanomas, muita porrada levada no Vietname e qualquer dia poder dar-lhe um badagaio. E, se tiver sido eleito, lá vão os códigos do arsenal nuclear para os dedinhos habituados ao gatilho da presidente Sarah Palin. Um sossego!


P.S.

Para quem não entendeu ainda bem o que é a direita evangélica norte-americana, recomendo os capítulos quatro a sete de “American Theocracy”, de Kevin Phillips, um antigo conselheiro de estratégia eleitoral de Richard Nixon. Um bocado maçudo, mas com dois ou três cafés vai.

Se quiserem uma versão sintetizada, vejam este extracto do Jon Stewart, que fala por si (o extracto, não o Jon):

terça-feira, setembro 02, 2008

O livro que ia mudar a minha vida (mas não vai)

Há dias, passando diante de uma montra da Bertrand, o meu olhar foi atraído por um cartaz que anunciava um livro. Não me recordo do título, nem do autor (uma senhora com cara e nome de branca, anglo-saxónica e protestante, do género Katherine Lou Smith ou equivalente), que com certeza não interessam para esta conversa. Mas fiquei a matutar no “slogan”, que prometia, com categórica certeza: “o livro que vai mudar a sua vida”.

Ora aqui está uma obra que eu não vou ler. Por pouca paciência, certamente, mas também porque quem tem cu tem medo. E se aquilo por acaso resulta? Por que raio é que eu havia de querer que a minha rica vidinha mudasse? Sinto-me razoavelmente satisfeito com a que tenho, mau grado a injustiça de o Sporting não ser (ainda) campeão europeu, e melhor fico se não arriscar. Dos livros que leio, alguns enriquecem a minha vida, outros divertem-na, uns quantos, felizmente poucos, suspendem-na num intervalo de tédio. Agora mudá-la, até agora não e ainda bem.

Como funcionará um livro que muda a vida de uma pessoa? Qual é a mecânica? Só fará efeito se lido de fio a pavio? Dobra-se a última folha e tocam à porta, a anunciar uma herança milionária de um distante e incógnito parente, ao mesmo tempo que recebemos um SMS da nossa mulher a avisar que foi viver para o Algarve com uma namorada e que não a procuremos? Ou, ao invés, terá um comportamento progressivo? Neste caso, na quinta página já nos chega uma carta das finanças com uma multa por atraso no IRS, ao terceiro capítulo penhoram-nos ordenado e carro e chegados à palavra “fim” vemo-nos envolvidos num “kafkiano” processo de fraude fiscal, no qual nos julgamos inocentes, mas que termina com prisão maior e uma nova existência, eremita e penitente, na cadeia do Linhó.

Num cenário mais ousado, o efeito poderia ser avassalador e imediato, como no célebre “sketch” dos Monthy Python da anedota assassina que nunca conseguimos saber qual é por que todos os que tentam ler o papel onde está escrita morrem de riso à segunda ou terceira palavra. Se assim fosse, à quarta linha lida a mágica leitura produzia efeito e descobríamo-nos do sexo oposto, numa transformação milagreira da nossa estrutura hormonal ou, pior, ensandecidos e sócios do Benfica. Tudo do avesso e nem valia a pena acabar tão transformante canhanho.

Admiravelmente, este livrinho vende múltiplas edições, em noventa países e trinta idiomas. Este e não só, porque há o segredo que andou perdido e só agora se revela ou o monge que vendeu o Ferrari porque lhe perturbava a introspectiva meditação ou outras gloriosas promessas do mesmo literário calibre. Milhões de exemplares. Anda portanto muita gente por aí à procura de trocar de vida, que a que tem não lhe serve, nem recauchutada.

E com razão? Será esta existência de ocidental do princípio do século XXI tão vazia de interesses e de motivações que precisemos, maciçamente, comprar a banha da cobra ou o elixir do doutor Doxey que nos canta a loa de uma vida que não é a nossa?

No extremo oposto, recordo um episódio de uma série de viagens da BBC em que Michael Palin, um “Python” que sobreviveu à letal anedota, entrevistava uma habitante de um campo de refugiados no Sahara Ocidental. Esta senhora praticamente nascera, crescera, casara, fora mãe, tudo no perímetro do campo. Sempre vivera numa tenda. Nunca beneficiou de água corrente, nem de luz, nem de qualquer dos pequenos luxos que fazem parte do nosso quadro mental mínimo de referência. Perguntava Palin: “o que é que a faria contente?” Respondia ela: “o que Deus me dá faz-me contente.” Insistia Palin: “Não, mas o que é que precisava para ser feliz?” E a mulher de retorquir, com um risinho: “o que Deus me deu faz-me feliz.” E lá ficou o Michael, de microfone à banda.

Esta Saaraui exibe, certamente com cândido exagero, uma característica que muito deve faltar aos fiéis leitores dos livros que mudam vidas: contentamento. Será por vítima de obscurantismo, por ignorância do que está para lá das dunas que desenham o horizonte do campo de refugiados, por religiosa alienação, por todas essas excelentes razões. Mas, e com todas as ressalvas que aqui possamos colocar com receio da ira do politicamente correcto, aquele sorriso tímido mirando a câmara da BBC faz pensar. Não que a minha tese seja a de que devíamos todos morar em tendas num deserto e que aí tudo iria pelo melhor no melhor dos mundos. Não sou muito atreito ao mito do bom selvagem. Mas contemplo a sumária serenidade daquela mulher, descontextualizo-a, isolo-a e encapsulo-a. Que obtenho? Algo que procuram aqueles que, por essas Europas e Américas, apanham grandes barrigadas de auto-ajuda e outra literatura salvadora.

O contentamento tem uma receita simples. Procurar gozar, em cada momento, o lado bom da vida – há (quase) sempre um, neste privilegiado hemisfério norte. Saborear mais o que se tem do que sofrer o que não se pode ter. Viver. Deixar viver. Não se mortificar com a pouca cilindrada do carro ou com o pensamento remoto de que não havemos de cá ficar ou com a nossa miserável falta de notoriedade, que temos todos pinta de vedeta e ninguém nos conhece. E o que é que isso interessa? “Carpe diem!” E, aos mais receosos com o mistério das coisas, relembrar Alberto Caeiro: “Sei lá o que é o mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério.”

Quem está contente não precisa de mudar a vida, o que não implica que não faça por a melhorar: um bocadinho, imenso ou meramente o necessário. Contentamento não quer dizer resignação ou fatalismo. Pelo contrário, sobre ele se pode construir a mudança, em nós como nos outros. Viver o dia não obsta a que se prepare o futuro.
Não gastemos pois preciosos segundos a tragar as baboseiras que o mais ignóbil “marketing” editorial nos quer impingir como indispensáveis. Mas se já compraram algum desses malfadados volumes, não se inibam de retirar alguma utilidade desse acto menos reflectido. Há sempre uma mesa a precisar de um calço, um tipo de quem não gostamos a cujo aniversário temos que assistir ou outro destino de igual nobreza para as prosas que querem mudar as nossas pobres vidas.

quinta-feira, agosto 14, 2008

A minha tia Marquinhas e as dores dos leninistas

Parece não ter nada a ver, mas tem.

Quando eu era muito pequeno, tão pequeno que não me lembro já de quão pequeno seria, visitava-nos por vezes uma velha parente pela via paterna: a tia Marquinhas. De baixa estatura, a cara sulcada, já corcovando, o cabelo grisalho apanhado com aqueles pentitos que se diziam de tartaruga mas já eram de plástico, cangalhas empoleiradas à frente de dois olhinhos miúdos e vivos, trajava sempre de negro à conta de uma viuvez que eu percebia remota. De um modo secreto, e provavelmente ainda inconsciente, parecia-me soturna.

Trazia-me sempre uma prenda na mala de mão: ou uma barra de chocolate da Favorita, daquelas com papel às riscas brancas e vermelhas que se vendiam na altura em todo o lado, ou uns soquetes envoltos num embrulho de papel pardo. A minha mãe obrigava-me a agradecer qualquer um deles com igual e fingido reconhecimento. Depois, eu ficava por ali sentado e via a minha mãe, deferente, ouvindo a tia Marquinhas em conversas de circunstância, alongando-se, despedindo-se demoradamente – embora afectando pressa para regressar à sua vidinha que mesmo eu, com poucos anos, adivinhava algo vazia.

A certa altura, por razões que desconheço, a tia Marquinhas deixou de aparecer em nossa casa. Não sei se por zanga, menos saúde ou menor paciência, tinham acabado os chocolates de leite e as meiazinhas e as conversas longas à roda de um chá. Não morrera, porque ouvia ocasionais referências à sua continuada existência em jantares familiares, mas nunca a voltei a ver. Lembrei-me por vezes dela, no final da adolescência, quando comecei a ler Eça e Camilo e me apareciam personagens destes, no confessionário do padre Amaro ou preparando a ceia nalgum solar minhoto.

Ora havia um episódio picaresco envolvendo esta tia que se tornara motivo de comentário humorado nas reuniões mais alargadas de família. Dada vez, logo após o vinte e cinco de Abril, a senhora, talvez aborrecida com os desmandos característicos da fase de granel revolucionário, flectindo joelhos e cerrando punhos, três vezes alterada, terminara uma conversa com um “Sou fascista! Sou fascista! Sou fascista!”. Declaração ousada, numa época em que o termo “fascista” era utilizado para conseguir saneamentos, arruinar reputações e insultar árbitros menos benévolos para com a nossa equipa.

E foi este triplo estado de alma que me veio à memória, ao ler no jornal Público de 5 de Agosto o artigo reportando a morte de Soljenitsin. O imprudente diário tivera a funesta lembrança de ir perguntar coisas à Zita Seabra – ignoro se incógnita especialista em literatura russa – que informou que só leu Soljenitsin depois de sair do PCP e arrematou com a seguinte pérola: “A esquerda não o lia.” Dei comigo de repente a imaginar a tia Zitinha, com a mesma e engelhada carinha de grão-de-bico, com o mesmíssimo e desanimante ar de figura do passado, aos pulos, tri-gritando “Sou direitista! Sou direitista! Sou direitista!”, num orgulho bacoco e cosmético. A lata da bicha!

A Ziteca engana-se redondamente. Em minha casa, o meu pai, que simpatizava com a esquerda e sempre lá votou, tinha Soljenitsin na sua biblioteca: o “Denisovitch”, o “Gulag”, “O carvalho e o bezerro”, pelo menos e que me lembre. Mas não precisou de ler Soljenitsin para perceber (e para nos transmitir) que não se prendem e matam pessoas pelas ideias que têm, que não se nega a realidade para que ela bata certo com o que a ideologia determina, que votar de mão no ar não dá saúde a nenhum sistema, e “et caetera”, tudo noções básicas para ele mas que a camarada Zita na altura teria considerado desvios burgueses, uma vez que precisou de sair do PCP e de cinquenta anos de vida para as entender. Se por mero acaso as entendeu.

Tenho pouquíssimo saco para estes grandes democratas da vigésima quinta hora, que passaram mais de meia existência a elaborar pesadas construções argumentativas para justificar o pacto Ribentrop-Molotov, as habilidades do Beria, o esmagamento de Praga ou os privilégios da “nomenklatura”, e que agora, na hora da derrota do ideário de uma vida, viram rapidamente a casaca, mudando num ápice de ferrenhos do partido a ferozes opositores, sem passar pela casa “partida” e sem receber os dois contos. Pior, ainda se arrogam o direito de se achar modernos e liberais e coiso e tal. Não são. Até porque a antipatia ideológica que os move quando tecem comentários insultuosos à esquerda democrática é a mesmíssima que Lenine tinha para com Liebknecht ou Luxembourg, que os comandantes russos enviados à guerra civil de Espanha exibiam para com os militantes socialistas ou que Cunhal afectava para com Soares. Há coisas que não mudam assim tão facilmente.

Claro que todos têm direito a alterar a sua opinião, que mais vale tarde que nunca, que a constituição portuguesa consagra o direito à asneira e mais todo o blá-blá. Sei tudo isso. Mas também sei que deveria haver vergonha na cara, que nessa gente escasseia. Quando a ouço, tão segura e sectariamente anti-esquerdista como no passado fora comunista, só me apetece dizer como o rei Juan Carlos: “porque no te callas?”

domingo, julho 20, 2008

Cenas ridículas (IV): a unhaca vermelha

Lisboa em Julho: apertou o calor e os suaves pezinhos do mulherio passaram a calcorrear a calçada calçados de sandálias e havaianas, expondo “urbi et orbi” o último grito do requinte feminino: a unha do pé envernizada a vermelho.

A gama de encarnados vai do rosa “shocking” ao acastanhado “sangue coagulado na calçada” passando pelo encarnado “camisola do Benfica” e pelo grená “tintol do Cartaxo”, tudo cores que ferem a vista e poluem a paisagem. Dizem-me que deveria achar “sexy”. Ora eu não sou como o gajo que entrevistaram na Ribeira do Porto: a mim, o bermelho não me dá reaçom.
 

Recordo-me, em criança, de uma fase em que as mulheres pintavam a cascaria nestas cores proletárias. Mas tal pancada deve ter acabado a meio dos anos setenta, porque daí até cá, só pintavam a unha de vermelho as velhas que geriam o “métier” e as novas que o praticavam, bamboleando avenida acima e avenida abaixo. Agora, numa estatística rápida mas confiável, são para aí quatro em cada cinco, numa praga que atingiu púberes e caducas, tias e mitras, desconhecidas e até amigas minhas que eu pensava estarem ao abrigo das modas mais tolas. Não deixo de me rir para dentro ao imaginá-las corcovadas na cama, pincelando em esforço as unhas longínquas, de papelotes nos espaços interdigitais, os dedos da pantufa abertos em leque como se estivessem a atingir o sétimo céu.

Reconheço, por outro lado, o génio do pessoal do “marketing” das L’Oréal e das Shiseido deste mundo, para meter a malta a comprar o que lhes dá jeito. De facto, só putas não davam para alimentar grandes vendas. Com a criação desta mania, as companhias de cosmética empocham uma massa valente. Se não, calculemos.

Em Portugal há dez milhões de habitantes. Metade será do sexo feminino. Noventa e cinco por cento têm mais de dez anos. Quatro em cinco pintam a unhaca de encarnado. Dá 3,8 milhões de clientes. Se ninguém se tiver aleijado, cada uma ostenta dois pés, cada qual com cinco dedos, cada qual com uma unha. Se entre dedo grande e mindinho, passando pelos três do meio, a área média de cada unha for de 0,5 centímetros quadrados, se a espessura do filme de verniz andar nos 0,2 mm e se cada dama aplicar uma nova demão duas vezes por semana, cada uma vai gastar anualmente cerca de dez centímetros cúbicos, o volume de um frasco de verniz. Entre baratos de supermercado e exorbitantes de perfumaria, o preço médio ronda os dez euros.

Multiplicando tudo: quarenta milhões de euros por ano, provavelmente mais, só em Portugal. Muito cacau, para acabar limpo com diluente!


Justificou-me uma amiga, em tom de desculpa, quando a descobri de unha rubi nos pés achinelados: “olha, decidi dar largas à minha feminilidade”. Porreiro. Também quero. Rapazes! Vamos dar largas à nossa masculinidade, mas versão anos setenta. Todos a deixar crescer a patilha à Ramalho, o bigode à turco, a unha do mindinho a tornear o canal auditivo em voltinha higiénica, com os colarinhos da camisa que nem as asas de um Airbus e a parte de baixo das calças de ganga como os carrilhões do convento de Mafra.

sábado, julho 12, 2008

Cenas ridículas (III): Os modelos

Gostos não se discutem, por isso não se ofenderão que eu considere algumas actividades humanas patéticas ou inúteis ou ambas. Coisas como o veraneio ziguezagueante nos corredores do Colombo, o solitário estudo académico da sexualidade do caracol ou o manso exercício de um lugar de deputado no parlamento madeirense. Maior bocejo, a mim, só o mundo da moda.

Não concebo, nem o prestígio social de “costureiros” e “modelos”, nem a admiração pelas capacidades de desfile das pequenas, nem qualquer interesse, por pequerruchinho que seja, no espectáculo de roupagens gongóricas a circular por cima de um estrado. Tal e qual como na britagem de pedra a martelo pneumático, não vejo naquilo arte ou entretenimento, mesmo que remotamente.

Não quero cair aqui no lugar-comum de afirmar que os modelos são todos palminhos de cara com meia-dúzia de gramas de massa encefálica. Talvez não exactamente todos. Admito que haja uma ou outra doutorada em física atómica ou filologia românica, como aquelas Miss Mundo colombianas que a voz “off” do locutor garante andarem a estudar gestão na pontifícia universidade de Medellin e que, quando forem grandes, querem trabalhar a ajudar crianças.

Só que para o que elas e eles fazem, se tiverem quatro neurónios, um já se pode candidatar ao subsídio de desemprego. Desfilar não tem segredos: basta enfiar uma vara de metro pela garganta abaixo para dar um andar marcial, marchar dez passos com ar de andróide, meneando a anca, estufar o peito no fim da passadeira, de mãozinhas à varina e cara de não-me-toques, voltar pelo mesmo caminho e correr aos bastidores trocar de roupa e snifar uma eventual linha. Até eu fazia aquilo, não fora o meu pouco jeito enquanto engolidor de sabres.

Por outro lado, qualquer broto descido da Rocinha ou da Tijuca para uma perninha de Carnaval no sambódromo saracoteia melhor que a mais bem remunerada das “top-models”. Mas de dez a zero! Por vezes fico aparvalhado ao ouvir referir o “talento natural” ou a “arte do desfilar” de fulana ou sicrana, como se estivéssemos a falar da Margot Fonteyn ou do Maradona. Sejamos sinceros: não existem bons modelos, o que existe são modelos boas, mesmo muito boas, e mais não se espera delas. O povo está-se nas tintas para a Gisela Bundchen: quer é sonhar com a Bundchen da Gisela!

Mas se tudo se resume às qualidades físicas das moças, porquê perder tempo e esbanjar recursos com passarelas e costureiros, modas Lisboa e criações Outono-Inverno, caprichos de vedetinha ou até com roupas? Compre-se daquelas revistas que os adolescentes tão a gosto empunham e arregale-se o olho, descomplexadamente e sem subterfúgios.

E as roupas, as “criações”? Voltemos a usar de sinceridade: quem seria capaz de vestir os barrocos e bacocos disparates saídos do lápis daquela malta? Aparte os extraterrestres que aparecem nos episódios do Star Trek e os cabeçudos do Carnaval de Torres Vedras, não vejo mais ninguém.


O mundo das “passerelles” faz-me a mesma espécie que fazem, nas suas diversas formas, a vacuidade e a vaidade. A palavra “vaidade” tem, aliás, a mesma raiz etimológica que “vão” e “vazio”. Veja-se o francês “vanité”. Transformar um vil defeito numa rentável indústria, já chateia um bocado. Querer-lhe dar ares de “glamour” e inteligência, para atrair tontinhas com pensamentos anorécticos para carreiras de desgaste rápido, chateia mais ainda. A pretensão de exclusividade, essa, soa ridícula. Moda, por definição, é o valor que aparece mais frequentemente num conjunto. Por isto, moda vende a Zara ou o C&A, e não a Fátima Lopes ou a Ana Salazar.

sábado, julho 05, 2008

O princípio de Peter aplicado à Virgem do Caravaggio

Agora que a selecção nacional foi com os porcos, chegou a hora sempre vibrante e consoladora de encontrar os culpados de tão fraca figura. Afinal, nem todos os dias vemos equipas potencialmente campeãs do mundo – a nossa, segundo a nossa objectiva imprensa – borregar miseravelmente contra um bando de pernas-de-pau teutónicos, apesar de arvorar a melhor junta de centrais da Europa, o mais imaginativo centro de campo a oeste dos Urais, o mais metrossexual extremo do planeta com brinco de diamante, etc. Alguém meteu água! Por isso, aqui estou eu para dar o meu maledicente contributo, rabo enterrado no sofá, trajando fato-de-treino grená com vivos verdes, alimpando o canal auricular com a unha do mindinho, sorvendo bojeca, imbuído sobretudo daquele espírito essencial e tão nacional de que prognósticos só no fim do jogo.

E o escolhido é – abra-se o envelope – é… “suspense”, é… mais “suspense”, é… “suspense” insustentável, é… Scolariii! O Felipão lá do sertão!

Sei que a minha escolha, apesar de muito clarividente – passe a imodéstia – é minoritária entre os cerca de dez milhões de portugueses, croniqueiros profissionais ou boquistas amadores, que doutamente se pronunciaram sobre o assunto, escalpelizando os factos para identificar os responsáveis.

Um grande número escolheu a via arbitral, invocando o empurrão nas costas do Paulo Ferreira pelo Ballack antes do cabeceamento final, a que o árbitro, mancomunado com interesses obscuros e germanófilos, teria feito vista grossa. Segundo essa facção, que nem se indigna com batotas mas que lamenta sobretudo que Portugal não tenha na UEFA influência para influenciar as arbitragens, não quer dizer absolutamente nada o facto de os dois supostos melhores centrais do mundo (Carvalho e Pepe, para os mais distraídos) nem sequer lá estarem para ser empurrados.

Outros seguiram a tendência fadista, que se chora do nosso triste fado de apanhar equipas difíceis nos quartos de final. Esta gente vive no sonho de chegar à finalíssima defrontando sucessivamente o principado do Mónaco e as ilhas Faroé, para então disputar o caneco contra a selecção do enclave de Nagorno-Karabakh. De memória curta, não se lembram que em 2004 tivemos a Grécia de prenda na derradeira partida, em casa ainda por cima, e foi a secura que se viu.

Finalmente, há a corrente homofóbica, que ataca os coitadinhos do Ricardo e do Nuno Gomes, só porque um defende com as mãozinhas encolhidas à frente e outra ataca com as mãozinhas saídas para trás. Reconheço que o Ricardo desaprendeu, no Bétis, aquilo que os berros do Paulo Bento lhe tinham ensinado no Sporting: que ou se fica na linha ou se vai de punho em riste para arrebentar com a bola ou com o crânio do avançado, o que aparecer primeiro. E que a Maria Alice, por vezes, consegue que as bolas que chuta saiam na direcção perpendicular à aplicação da força, como os rotores dos motores eléctricos. Mas já pensaram em quem que lá pôs estas duas abetardas, a cantar o hino ao lado dos outros?


Tenho hoje de Scolari a mesma ideia que formei logo ao princípio: um treinador mediano, sem rasgo, conservador como há poucos, cujos limites de adaptabilidade táctica estão na troca de lado dos extremos e na entrada de mais um defesa para o lugar de um avançado.

Por outro lado, um fulano bacoco que nunca ninguém por cá teve hortícolas suficientes para o meter no seu lugar, especialmente o seu patrão, o federativo presidente de pêra. Este falhanço educacional ficou particularmente patente quando o Scolari, com as quinas ao peito e em directo para a Eurovisão, decidiu aplicar um gancho na tromba de um jogador sérvio que aproveitou a deixa para cair de costas com estrépito, enquanto o nosso seleccionador, valentíssimo, corria a esconder-se atrás da sua corte, a ver se ninguém o tinha visto. Deveria então ter sido expeditamente despedido, mas a federação perdeu essa derradeira oportunidade de polir o senhor.

Dizem-me que o homem ganhou o mundial. Com o Brasil, não é grande ciência. Recorda-me uma crónica do Duda Guennes, jornalista brasileiro que cá viveu muitos anos, escrevendo para o “A Bola”. Contava que um treinador tentava explicar a um avançado uma táctica complicada, com basculações laterais, triangulações, entradas pelos flancos. O jogador, um moço talentoso mas algo favelado e de poucas capacidades intelectuais, ia ouvindo sem entender, olhando confundido. A certo momento, o treinador desistiu e disse-lhe: “Vamos trocar por miúdos. Ficas lá à frente e marcas golos. Percebeste?” O rapaz percebeu e meteu três batatas na baliza do adversário, levando a sua equipa à vitória. No final, quando a rádio lhe perguntou como tinha feito, respondeu: “Cumpri as instruções do mister. Ele mandou trocar por miúdos e eu troquei.” Com o escrete, passa-se o mesmo. Qualquer treinador se arrisca a ganhar o mundial, desde que seja capaz de lhes dizer para irem lá para dentro trocar por miúdos.

Dizem-me também que Portugal se qualificou sempre e que chegou a quartos e a meias-finais. Como dizia o “The Guardian”, Portugal possuía a equipa mais cara do Euro, quase toda constituída por jogadores de grandes clubes europeus. Melhor seria se não se qualificasse, e ficarei sempre com um amargo de boca de termos falhados sucessivas oportunidades soberanas de ganhar um grande título. Que teriam feito Gus Hidding ou José Mourinho com uma equipa destas?

Scolari é o treinador mais medroso do planeta, com excepção para aí do Camacho, que se esconde sempre atrás das culpas dos jogadores. Se precisa desesperadamente de ganhar um jogo por um a zero, duas coisas podem acontecer: se a equipa marca ao minuto quarenta e oito e estiver a dar um banho de bola ao adversário, ameaçando chegar à goleada, imediatamente tira um avançado e põe um médio defensivo, do tipo buldogue, rezando à Virgem do Caravaggio para que a bola não entre na nossa baliza. Se as coisas se complicam e o zero a zero se mantém, ou até se estiver perder, Scolari atrasa até aos oitenta e tal minutos a entrada de mais um avançado, rezando à Virgem do Caravaggio para que a bola entre na baliza oposta.

Outra peculiaridade de Scolari é o conservadorismo das escolhas. Jogador que caia nas graças do sargentão tem sérias hipóteses de jogar de muletas, se por acaso se lesionar. Há meia dúzia de eleitos que até podem estar no banco dos seus clubes uma época inteira, ou parados com uma rotura de ligamentos, mas que já sabem que lá irão ter à espera uma camisola com a cruz de Cristo. Uma excelente maneira de promover a concorrência e de incentivar a equipa: os preferidos sabem que não tem que se chatear excessivamente; os suplentes percebem que escusam de morrer em campo, porque o esforço não os vai tirar do banco. Na selecção portuguesa, só falta um sistema de diuturnidades.

À falta de conhecimentos tácticos e de estudo do adversário, Scolari recorre sobretudo a um esforço de mentalização que passa por papelinhos debaixo da porta dos jogadores na véspera dos jogos, com frases de fino recorte psicológico sobre os deveres para com os colegas de equipa ou por palestras à boca do jogo pelo Ricardo ou pelo Figo, com todos abraçados, do género “vamos lá cambada”, ou, ainda, por rezas colectivas. Só faltou ver o nosso seleccionador em transe a exorcizar o demónio, no palco do antigo cinema Império, em pose pentecostal, a segurar a melena de um Nuno Gomes ajoelhado e a gritar, sofrido: “Vai embora, Satanás! Deixa o minino marcar gol! Banco é caixa! Bota lá o dízimo!”. À próxima, mais vale contratar logo o bispo Edir Macedo para orientar a selecção.
 

Compreende-se agora que os dois mais importantes adjuntos de Scolari sejam o Murtosa, modelo de seguidismo canino, e a Virgem do Caravaggio, promotora de paia milagreira. Mas fidelidade e sorte não são adversárias credíveis para a organização e para o talento, sobretudo quando o nome que se apanha pela frente é o da Itália ou da Alemanha e não o da Bélgica ou da Letónia.

À medida que os adversários vão ficando sucessivamente mais poderosos, a Virgem do Caravaggio, figura menor da hagiologia católica, vai baixando de potencial, erodido pelo famoso princípio de Peter. A santa talvez chegue para bater os maometanos do Cazaquistão, mas torna-se impotente contra os alemães, que têm “Gott mit uns”, para além de um treinador a sério. E assim se perdeu uma geração de ouro e a oportunidade de ganhar qualquer coisinha.

sábado, junho 14, 2008

Leituras porreiras: "Civilization"

Acabei hoje – incrivelmente a bordo de um C-130, escuro, de um cagarim impressionante, trepidante de válvulas em alívio e hidráulicos em acção – um livro cuja leitura recomendo: “Civilization” de Roger Osborne.

São quinhentas páginas de letra miúda, portanto apropriadas a uma quinzena de férias de praia, a uma pena leve de prisão ou à convalescença de uma fractura do fémur. Ainda assim um volume pouco espesso, se soubermos que o autor aborda nada menos do que a história da civilização ocidental desde há quarenta mil anos até aos nossos dias. Contas feitas, sempre são oitenta anos por página, um número algo ambicioso para encafuar nuns míseros vinte centímetros de papel.

Apesar do risco do empreendimento, a coisa correu-lhe bem: encontramos lá quase tudo, concisão com riqueza de detalhe, encadeamento, tese e aquela ligeireza de redacção que só os ingleses e o Fernão Lopes sabem que a boa História merece. Enciclopédico, Osborne, tal como o realizador de cinema que alterna o grande plano com a grande angular, vai buscar São Tomás de Aquino quando precisa e os The Who quando estes fazem sentido, a pequena história conjugal e as grandes batalhas, tudo para desenvolver uma ideia de quem nós, ocidentais, somos na realidade.

Osborne não é historiador de formação ou profissão. Licenciado em geologia, dedica-se à escrita. Pode, por isso, gozar de toda a liberdade para pegar nos acontecimentos e recompô-los à maneira dele, sem que os seus pares o chateiem. Isto pelo simples facto de não ter pares: muito poucos geólogos se dedicam à história do Ocidente. Talvez graças a esta invulgar combinação histórico-geológica, obtemos como resultado uma perspectiva liberta e inovadora sobre aquela História que a simplicidade redutora dos manuais escolares formatou nas nossas cabeças. Aqui e ali iconoclasta, mas nunca rupturista, Osborne não procura uma História diferente, de cabalas secretas e factos escondidos, tão em voga nestes tempos. É exactamente a mesma que demos no liceu, a verdadeira, a da Bayer, só que pelo olhar de um tipo que se afastou um pouco para a ver de outro ângulo, talvez de cima de um muro, um pouco mais alto. Exemplos dessa perspectiva diferente encontramo-los no relevo que dá às culturas ditas “bárbaras”, pré-romanas, e ao papel que os francos tiverem na génese dos centros de poder no Ocidente.

Mas, para quem não tiver o saco suficientemente fundo para aviar quinhentas páginas de erudição mindinha, há um plano B para tirar grande proveito deste livro. Basta ler o último capítulo, sobre o mundo pós-guerra. Neste, Osborne não escreve sobre o passado, escreve sobre o nosso presente – que também é o dele, globalizado, neo-liberal e essas tretas. E, surpreendentemente, consegue aparentar um distanciamento tal que aquilo até parece tirado de um futuro livro de história, escrito com toda a frieza para aí no ano 2400.

Ao ler este capítulo final, se conseguirmos munir-nos de alguma honestidade intelectual, vamos poder sorrir de nós próprios e de algumas ideias enraizadas na “sabedoria convencional” dos nossos dias, de “políticos”, “economistas” e “jornalistas”. Ideias que socialmente julgamos tão inevitáveis e certas como certas foram consideradas, em seu tempo, a naturalidade da escravatura ou a rotação do sol em torno da Terra. Mas ideias que são meramente a ideologia dominante da nossa época.

Que conclui Osborne de mais importante sobre a “civilização ocidental”?

A sua tese nuclear é a de que o Ocidente, apesar da sua capacidade de gerar progresso económico e cultural, possui uma tendência histórica para derrapar para o abismo, infligindo sofrimento metódico e inigualável não só aos outros como a si próprio. Como se diz na contra-capa, “por cada Beethoven há um campo de concentração, por cada Edifício Chrysler há um massacre de My Lai”. O exemplo acabado desta tendência é a Primeira Grande Guerra, sem bases racionais tanto para o modo disparatado como começou como para a maneira enguiçada como acabou.

Para Osborne, o mal estrutural do Ocidente reside num tendência para um poder centralizado, com uma perspectiva nacionalista, convicto da sua superioridade racionalista, impor a sua visão, destruindo o que encontra pelo caminho, nomeadamente outras estruturas de equilíbrio social e cultural, baseadas em tradições ou laços de comunidade localizados. Quando esse poder centralizado justifica através de uma perspectiva ideológica (muitas vezes racista) a sua pretensa superioridade moral sobre terceiros, e quando o poder tecnológico e bélico é grande, então acontecem massacres e genocídios. Se ao ler isto, vos vêm à mente os óbvios nazis, desenganem-se: o autor está também a pensar nos civilizadíssimos ingleses e franceses, e estes não durante os tempos longínquos da Guerra dos Cem Anos, mas há pouco mais de cem anos.

No final do século XIX, os franceses deslocaram os nativos da Nova Caledónia para terras inférteis. Quando estes, à fome, se revoltaram, foram massacrados e a cabeça do seu líder foi levada para Paris – como diz Osborne, a Paris de Renoir e Degas – como troféu! Pela mesma altura, morria na Tasmânia o último indígena da ilha, após um trabalho cruel e metódico pelos britânicos de matança da população local. Tal limpeza étnica, como se diria hoje, foi levada a cabo durante setenta anos e incluiu detalhes tão sórdidos como a utilização de pessoas como alvos de caça desportiva e de prática de tiro. Curiosamente, é hoje muito mais conhecida e deplorada a extinção do lobo da Tasmânia do que a extinção do próprio homem da Tasmânia. Sensibilidades ecológicas!

Finalmente, o autor considera que vivemos, no presente, um momento em que esse mal estrutural está de novo muito activo e em que o conceito de “civilização ocidental” volta a ser usado com contornos de superioridade moral, para atacar terceiros. Por exemplo, pela administração Bush. Osborne chega mesmo à afirmação pessimista que actualmente, e contrariamente ao que acontecia há poucos anos, as populações europeias sentem, de forma generalizada, que nos encaminhamos para tempos muito piores do que os actuais.


As reflexões deste livro são a mais das vezes pertinentes e por isso a sua leitura tem grande utilidade para que entendamos por que caminhos nos levam. Isto, embora eu não partilhe com Osborne um sentimento tão negativo em relação a esse conceito, tão lato que ele é, de “civilização ocidental”. O autor de “Civilization”, se lido nas entrelinhas, surge muitas vezes como um romântico, saudoso do “bom selvagem” de Rousseau, que a civilização afasta do seu recto caminho e que viveria mais feliz num mundinho aldeão de hábitos e tradições, com o seu “pubezito” de fim de tarde, para uma cerveja e conversa mole.

Por mim, estou contente de ter nascido e de viver como “ocidental”, mesmo estando ciente das limitações que demonstrámos no passado. No entanto, na história dos povos, como na história das nossas próprias vidas, devemos valorizar os momentos altos e não nos focarmos apenas no que foi menos feliz. Temos que ter orgulho não só nas pedras de Notre-Dame e nos rabiscos de Picasso, mas também no facto de termos sido capazes de promover ambientes em que a mortalidade infantil é desprezável, em que toda a gente sabe ler e escrever e em que se consegue levar uma nave à Lua. E estes sucessos são fruto do racionalismo ocidental e não se repetiram muito noutras culturas.

Embora este pormenor possa ser menos simpático para os meus leitores, é graças à “civilização ocidental” que posso estar aqui despreocupadamente a escrever estes meus disparates. Isto porque a liberdade de pensamento e expressão, bem como a possibilidade e o dever de crítica às formas de autoridade, são ganhos mentais da nossa forma de civilização que nunca tiveram noutras sociedades – verdade se diga – a mesma valorização ou a mesma amplitude de presença.

Não posso deixar de concordar com Osborne, quando ele diz que a “civilização ocidental” levou no passado, muitas vezes, ao sofrimento maciço de milhões de pessoas. Mas não creio que isso acontecesse por racionalismo dos governos e dos povos. Penso que isso aconteceu por estupidez dos governos e dos povos. E à estupidez convém chamar estupidez, tal como à razão convém chamar razão, justamente para que os dois conceitos não se confundam.

E para ajudar a não confundir conceitos, nada melhor que relembrar os bons feitos e as grandes asneiras dos nossos avós, de modo a não repetir as cretinices do passado. Também com este intuito, se justifica a leitura de “Civilization”.

domingo, maio 25, 2008

My old man

O meu pai faleceu hoje, com setenta anos e dois dias. Tenho a ferida demasiado aberta e a alma demasiado desertada para falar sobre este homem, sobre o pai exemplar, o marido extremoso, o grande português que ele é. Mas esta é uma história que eu quero contar, mais tarde.

Entretanto, recordo que quando ele fez sessenta e quatro lhe escrevi uma carta. O que estava nessa carta fica entre mim e ele. Mas, em anexo, levava esta letra de uma canção do Ian Dury, que é o poema que eu, enquanto filho, gostava de ter escrito ao meu “velho”:

My old man wore three piece whistles
He was never home for long
Drove a bus for London Transport
He knew where he belonged
Number 18 down to Euston
Double decker move along
Double decker move along
My old man

Later on he drove a Roller
Chauffeuring for foreign men
Dropped his aitches on occasion
Said, "Cor blimey!" now and then
Did the crossword in the Standard
At the airport in the rain
At the airport in the rain
My old man

Wouldn't ever let his governers
Call him 'Billy', he was proud
Personal reasons make a difference
His last boss was allowed
Perhaps he had to keep his distance
Made a racket when he rowed
Made a racket when he rowed
My old man
My old man

My old man was fairly handsome
He smoked too many cigs
Lived in one room in Victoria
He was tidy in his digs
Had to have an operation
When his ulcer got too big
When his ulcer got too big
My old man
My old man

Seven years went out the window
We met as one to one
Died before we'd done much talking
A friendship had begun
All the while we thought about each other
All the best, mate, from your son
All the best, mate, from your son
My old man
My old man

sábado, maio 24, 2008

A fumarada

Li, reli e não cri. Depois vi na têvê, confirmei e pasmei. O nosso socrático primeiro pôs de lado o ar de proa e veio todo contrito, que nem um Egas Moniz atabacado, para diante de um pelotão de periodistas, pedir desculpas ao país por ter fumado um cigarro no voo “charter” que o levava em visita de Estado à Venezuela. Um cigarro! Ainda se tivesse sido apanhado a sorver uma chinesa de pó, eu compreendia a atrapalhação. Mas deve ter sido para aí um mero SG filtro…

E para piorar a coisa, numa figurinha digna de menino de escola primária apanhado em flagrante, adiantou à turba jornaleira que não tinha sido só ele (delatou que estava lá outro ministro a dar umas passas), que não sabia que era proibido (assinou a lei que proíbe) e que, assim sendo, ia deixar de fumar!

Deixar de fumar? Ó senhor primeiro-ministro! Que exagero! Não havia necessidade... O Clinton, para conseguir safar o pêlo e a presidência, só teve que pedir desculpa à “moral majority” americana pelo oral deslize com a estagiária reboluda. Não precisou de jurar voto de castidade doravante e até ao fim dos seus dias.


Este é um daqueles episódios que ao princípio se estranha, mas depois se entranha. Porque, pensando bem, diz muito sobre os tempos que correm.

Começa pelo detalhe delicioso do escândalo ser despoletado pelos mesmíssimos jornalistas que seguiam no avião, a convite do governo, para reportar os seus sucessos diplomáticos. Estou a imaginá-los, nos lugares traseiros da aeronave, a cochichar de uns para os outros, enquanto puxavam eles próprios umas baforadas nos seus cigarros: “Olha o gajo a fumar! O gajo não conhece a lei? Ganda bronca!”. E vai daí, toca de bufar para as redacções, para transformar um pequeno vício privado numa barracada pública. Não lhes ocorre que o assunto não só é totalmente irrelevante e distrai dos reais problemas do país, como, ainda por cima, constitui um suíno abuso de confiança para com quem os convidou. Para aliviar as consciências, hão de colocar em itálico no fim dos artigos “o jornalista viajou a convite do governo”. Por mim, à próxima, compram bilhete na TAP ou atravessam o Atlântico a nado. Mas da nossa triste classe jornalística, que é daqueles cães que só rosnam enquanto não lhe servem a malga, pouco mais temos que esperar.

Claro que a florescente oposição deste país, de pêpêdêspêessedês e quejandos, aproveitou esta mísera deixa para se fazer notar, pedindo multas para os governantes fumadores e outras sugestões importantes do mesmo quilate. Para esses, este parágrafo já tem mais linhas do que merecem.

Passando agora ao que importa. O que eu não consigo conceber é que o primeiro-ministro do meu país se rebaixe a fazer um número humilhante destes por causa de umas passas num avião, enxovalhando nesse “hara-kiri” moralista a próprio Nação que representa.

É verdade que vivemos tempos idiotas em que se construiu na opinião pública a ideia errónea que quem nos governa tem que ser virginal, branquinho e asséptico que nem um supositório de glicerina. Esta noção é cretina e é perigosa.

Cretina, porque a moralidade pessoal não é condição necessária – nem suficiente – para a eficácia governativa. Porque a moral privada e a moral pública operaram em planos diferentes, com diferentes exigências. Por mim, não me interessa se um político dá umas facadas no casamento, se tem duas multas por excesso de velocidade ou se fumou um havano em sítio sem exaustão de ar independente. Preocupa-me que tenha ideias, que faça frente aos lóbis que tentam (e hoje conseguem) gerir o país por interposta pessoa, que conheça as suas obrigações e os seus limites e que não game.

Perigosa, porque permite que excelentes governantes sejam convenientemente queimados na fogueira mediática alimentada por interesses económicos e políticos, por razões que no fundo são do seu foro íntimo. Porque cria uma sociedade de “voyeurs” e de chibos.

Noutros tempos, o povo esperava dos monarcas que tivessem força de carácter para governar justamente e força de braço para manter a paz ou ganhar a guerra. A sua moral privada relevava pouco para a apreciação que deles faziam os governados. Na realidade, estes estavam-se nas tintas para se os reis tinham amantes ou usavam de crueldade na sua gestão política. O que a malta queria era “realpolitik” que a mantivesse ao abrigo de chatices, e o resto era conversa. Muitos dos antepassados que nos são apontados na primária como pátrio exemplo estavam muito longe de ser exemplos de fino comportamento pessoal.

Consta que Afonso Henriques se hospedou certa vez no castelo de um nobre seu vassalo que, honrado pela visita, foi caçar para o jantar do seu convidado. Em má hora foi, porque o nosso fundador, aproveitando a ausência, logo lhe doneou a mulher, como à época se dizia. Regressado da caça, o novel corno ainda ousou esboçar um protesto, mas o rei imediatamente o ameaçou, lembrando-lhe uma história antiga: “Cuidado! Por menos do que isso o meu avô mandou cegar sete condes.” E só não o mandou comprar um maço de Português Suave porque na altura não se vendia nos quiosques.

Afonso Henriques não abusava só da confiança de maridos desprevenidos. Comportava-se de igual modo com os outros monarcas da península (na prática, seus familiares próximos), assinando e rasgando tratados conforme lhe dava jeito, atacando à traição, o que acontecia muitas vezes. Mas foi este homem de baixa confiabilidade que criou Portugal, multiplicando por três a sua área e legitimando a independência pelo reconhecimento papal, sabiamente pedido com boa argumentação e conseguido com melhor dinheiro.

Outro exemplo flagrante é o de D. Pedro, o cruel e justiceiro, de quem Fernão Lopes conta que “diziam as gentes que tais dez anos nunca houve em Portugal, como estes em que reinara el-rei D. Pedro.” O comportamento pessoal que Pedro sempre exibiu seria qualificado, nos dias de hoje, de total passanço dos carretos. O homem foi um dissoluto sexual e um sádico, que exercia uma justiça draconiana, frequentemente pelas próprias mãos, muitas vezes por mero capricho.

Pedro tinha um escudeiro chamado Afonso Madeira que, não sendo de pau, se afeiçoou e chegou a vias de facto com uma Catarina Tosse, mulher de “graciosas prendas” que andava lá pela corte. Ora o rei, a Afonso Madeira, “pelas suas qualidades amava-o muito e fazia-lhe generosas mercês”. Quando soube do ocorrido, D. Pedro, invocando o facto de a senhora ser casada mas na realidade por ciúme, decidiu tratar da tosse ao escudeiro. Fernão Lopes relata o que aconteceu com grande fineza de humor:

“E como quer que o rei muito amasse o escudeiro (mais do que se deve aqui dizer), posta de parte toda a bemquerença, mandou-o tomar na sua câmara e cortar-lhe aqueles membros que os homens em maior apreço têm. Afonso Madeira foi pensado e curou-se, mas engrossou nas pernas e no corpo e viveu alguns anos com o rosto engelhado e sem barba.”

Apesar de ser ele como era, o povo gostava de D. Pedro. O reinado foi pacífico, a sua justiça, embora bruta, praticava-a sem olhar a classes sociais (o que, na prática, pouco ocorre hoje) e o amor romântico com Inês de Castro ajudou a construir a lenda.

Não resisto a um último episódio. Na sua vida diária, um cavalheiro nunca falta a o respeito a uma senhora. Na política, pode não ser assim. Quando morreu com uma queda de cavalo o único filho legítimo de João II, este apressou-se a tentar legitimar um dos seus bastardos, casando-o com uma princesa de sangue. Para tal, mandou à corte dos Reis Católicos um embaixador, Lourenço da Cunha, para pedir a mão da filha mais nova destes, D. Catarina. A rainha, Isabel de Castela, tratou o nosso embaixador por cima da burra, propondo antes uma filha bastarda do marido. O nosso Lourenço deu-lhe uma resposta à altura: “senhora, el-rei meu senhor não pretende tanto aparentar-se com el-rei D. Fernando como com vossa alteza; por isso, se vossa alteza tem outra filha bastarda, ele a tomará para seu filho.”

Dito de outro modo: chamou puta à rainha de Espanha, em público e em plena corte. Não conseguiu o casamento pretendido, mas D. João II ficou tão satisfeito com a tirada que o premiou com terras em Beja, Serpa e Moura, que rendiam quatro contos. Tipo “spot bonus”.


Claro que esses exemplos têm que ser vistos no contexto das épocas respectivas. Mas ilustram situações em que os ocupantes de cargos públicos tinham os defeitos que tinham, enquanto indivíduos e eram julgados pelos efeitos práticos do que faziam e não pela relativa proximidade a uma imagem ideal de santidade. Obviamente muita coisa mudou e ainda bem. É evidente que constitui um avanço civilizacional que se tenha tornado completamente inaceitável que Sócrates se pudesse manter no poder se mandasse capar um secretário de Estado. Mas, ao revés, não constitui grande progresso que um governo eleito tenha receio de cair pela pressão da rua só porque o seu líder fumou um cigarro ou deu a um charuto uma utilização indevida.

Já estou a ouvir os puristas: ele incumpriu a legislação! Deu uma bicadita numa lei? Se formos por aí, temos todos muito por onde nos preocupar antes da baforada do Sr. Sócrates. Num Estado que não cumpre prazos, não cumpre leis, não paga o que deve mas cobra indevidamente e não devolve, mantém centenas de milhar de trabalhadores precários por falta de coragem para afrontar outras centenas de milhar que não fazem nenhum e “et caetera”, as passas do primeiro-ministro são irrelevantes.

Não sei se são efeitos das sucessivas restrições impostas por Bruxelas à quota do tomate, mas sinto hoje a desagradável impressão de que faltam governantes com um mínimo de coragem, que se foquem no essencial, não se envergonhem de quem são e não vivam escondidos atrás dos consultores de imagem, aterrorizados com o impacto de qualquer pecadilho nas setas para cima e para baixo da contra-capa dos jornais.

Conta-se que quando se tornou público que o presidente Mitterrand tinha uma filha ilegítima e um jornalista o tentou entalar com o assunto, aquele respondeu calmamente “Et alors?” Não sei se esta história ocorreu na realidade, mas, se sim, é exemplar.

O que não é exemplar é o comportamento de um primeiro-ministro, afrontando as câmaras com carinha de arenque fumado, para entaramelar banalidades e desculpas que nos envergonham enquanto portugueses, à volta de umas passas em tabaco. Se ele chamasse as câmaras e se propusesse pedir perdão ao país pela inexistência de um sistema de aplicação de justiça, pela inumanidade do serviço nacional de saúde ou pela pobreza franciscana do nosso ensino, eu compreenderia. Até talvez lhe desse um desconto e uma nova oportunidade …

Mas do modo que foi, só me apetece dizer como o memorável almirante Pinheiro de Azevedo: é só fumaça!