terça-feira, setembro 02, 2008

O livro que ia mudar a minha vida (mas não vai)

Há dias, passando diante de uma montra da Bertrand, o meu olhar foi atraído por um cartaz que anunciava um livro. Não me recordo do título, nem do autor (uma senhora com cara e nome de branca, anglo-saxónica e protestante, do género Katherine Lou Smith ou equivalente), que com certeza não interessam para esta conversa. Mas fiquei a matutar no “slogan”, que prometia, com categórica certeza: “o livro que vai mudar a sua vida”.

Ora aqui está uma obra que eu não vou ler. Por pouca paciência, certamente, mas também porque quem tem cu tem medo. E se aquilo por acaso resulta? Por que raio é que eu havia de querer que a minha rica vidinha mudasse? Sinto-me razoavelmente satisfeito com a que tenho, mau grado a injustiça de o Sporting não ser (ainda) campeão europeu, e melhor fico se não arriscar. Dos livros que leio, alguns enriquecem a minha vida, outros divertem-na, uns quantos, felizmente poucos, suspendem-na num intervalo de tédio. Agora mudá-la, até agora não e ainda bem.

Como funcionará um livro que muda a vida de uma pessoa? Qual é a mecânica? Só fará efeito se lido de fio a pavio? Dobra-se a última folha e tocam à porta, a anunciar uma herança milionária de um distante e incógnito parente, ao mesmo tempo que recebemos um SMS da nossa mulher a avisar que foi viver para o Algarve com uma namorada e que não a procuremos? Ou, ao invés, terá um comportamento progressivo? Neste caso, na quinta página já nos chega uma carta das finanças com uma multa por atraso no IRS, ao terceiro capítulo penhoram-nos ordenado e carro e chegados à palavra “fim” vemo-nos envolvidos num “kafkiano” processo de fraude fiscal, no qual nos julgamos inocentes, mas que termina com prisão maior e uma nova existência, eremita e penitente, na cadeia do Linhó.

Num cenário mais ousado, o efeito poderia ser avassalador e imediato, como no célebre “sketch” dos Monthy Python da anedota assassina que nunca conseguimos saber qual é por que todos os que tentam ler o papel onde está escrita morrem de riso à segunda ou terceira palavra. Se assim fosse, à quarta linha lida a mágica leitura produzia efeito e descobríamo-nos do sexo oposto, numa transformação milagreira da nossa estrutura hormonal ou, pior, ensandecidos e sócios do Benfica. Tudo do avesso e nem valia a pena acabar tão transformante canhanho.

Admiravelmente, este livrinho vende múltiplas edições, em noventa países e trinta idiomas. Este e não só, porque há o segredo que andou perdido e só agora se revela ou o monge que vendeu o Ferrari porque lhe perturbava a introspectiva meditação ou outras gloriosas promessas do mesmo literário calibre. Milhões de exemplares. Anda portanto muita gente por aí à procura de trocar de vida, que a que tem não lhe serve, nem recauchutada.

E com razão? Será esta existência de ocidental do princípio do século XXI tão vazia de interesses e de motivações que precisemos, maciçamente, comprar a banha da cobra ou o elixir do doutor Doxey que nos canta a loa de uma vida que não é a nossa?

No extremo oposto, recordo um episódio de uma série de viagens da BBC em que Michael Palin, um “Python” que sobreviveu à letal anedota, entrevistava uma habitante de um campo de refugiados no Sahara Ocidental. Esta senhora praticamente nascera, crescera, casara, fora mãe, tudo no perímetro do campo. Sempre vivera numa tenda. Nunca beneficiou de água corrente, nem de luz, nem de qualquer dos pequenos luxos que fazem parte do nosso quadro mental mínimo de referência. Perguntava Palin: “o que é que a faria contente?” Respondia ela: “o que Deus me dá faz-me contente.” Insistia Palin: “Não, mas o que é que precisava para ser feliz?” E a mulher de retorquir, com um risinho: “o que Deus me deu faz-me feliz.” E lá ficou o Michael, de microfone à banda.

Esta Saaraui exibe, certamente com cândido exagero, uma característica que muito deve faltar aos fiéis leitores dos livros que mudam vidas: contentamento. Será por vítima de obscurantismo, por ignorância do que está para lá das dunas que desenham o horizonte do campo de refugiados, por religiosa alienação, por todas essas excelentes razões. Mas, e com todas as ressalvas que aqui possamos colocar com receio da ira do politicamente correcto, aquele sorriso tímido mirando a câmara da BBC faz pensar. Não que a minha tese seja a de que devíamos todos morar em tendas num deserto e que aí tudo iria pelo melhor no melhor dos mundos. Não sou muito atreito ao mito do bom selvagem. Mas contemplo a sumária serenidade daquela mulher, descontextualizo-a, isolo-a e encapsulo-a. Que obtenho? Algo que procuram aqueles que, por essas Europas e Américas, apanham grandes barrigadas de auto-ajuda e outra literatura salvadora.

O contentamento tem uma receita simples. Procurar gozar, em cada momento, o lado bom da vida – há (quase) sempre um, neste privilegiado hemisfério norte. Saborear mais o que se tem do que sofrer o que não se pode ter. Viver. Deixar viver. Não se mortificar com a pouca cilindrada do carro ou com o pensamento remoto de que não havemos de cá ficar ou com a nossa miserável falta de notoriedade, que temos todos pinta de vedeta e ninguém nos conhece. E o que é que isso interessa? “Carpe diem!” E, aos mais receosos com o mistério das coisas, relembrar Alberto Caeiro: “Sei lá o que é o mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério.”

Quem está contente não precisa de mudar a vida, o que não implica que não faça por a melhorar: um bocadinho, imenso ou meramente o necessário. Contentamento não quer dizer resignação ou fatalismo. Pelo contrário, sobre ele se pode construir a mudança, em nós como nos outros. Viver o dia não obsta a que se prepare o futuro.

Não gastemos pois preciosos segundos a tragar as baboseiras que o mais ignóbil “marketing” editorial nos quer impingir como indispensáveis. Mas se já compraram algum desses malfadados volumes, não se inibam de retirar alguma utilidade desse acto menos reflectido. Há sempre uma mesa a precisar de um calço, um tipo de quem não gostamos a cujo aniversário temos que assistir ou outro destino de igual nobreza para as prosas que querem mudar as nossas pobres vidas.

3 comentários:

NunoF disse...

Carlos, vais ter que explicar essa tua teoria do contentamento, pois parece-me muito, mas mesmo muito com resignação à sorte.

E digo isto porque como bem sabes, aqui há umas décadas atrás havia uma velha senhora que advogava precisamente essa doutrina: "Devemos estar contentes com aquilo que Deus nos deu."

durindana disse...

Gostei.
Principalmente do desfecho. Porque a focagem foi feita no último momento.
Esses livros que o marketing afirma que irão mudar as nossas vidas não mentem.
Mudam efectivamente a vida de muita gente… para pior.

Mas porque não leram quando deviam as “Cinco semanas em balão”, “Sandokan o Corsário”, “As pupilas do Sr Reitor, o Eça, a estopada do Sartre, o chato do Victor Hugo, “A ilha dos Pinguins” o malfadado “O Castelo” que não era do Almourol, nem os 5 volumes do “Jean Christophe”, leituras que entretanto ajudaram a moldar aquilo que somos hoje.
Um abraço;

Cristina Rodo disse...

Ééééé páááá... até parece que andas a ler a sopa de ideias... Boa Carlinhos!
E explica lá ao outro anormal o que ele quer saber que ele a mim já não me ouve ;)

PS: Porquê na cadeia do Linhó?! Eles deixam jogar Tarot de vez em quando é?