sábado, junho 14, 2008

Leituras porreiras: "Civilization"

Acabei hoje – incrivelmente a bordo de um C-130, escuro, de um cagarim impressionante, trepidante de válvulas em alívio e hidráulicos em acção – um livro cuja leitura recomendo: “Civilization” de Roger Osborne.

São quinhentas páginas de letra miúda, portanto apropriadas a uma quinzena de férias de praia, a uma pena leve de prisão ou à convalescença de uma fractura do fémur. Ainda assim um volume pouco espesso, se soubermos que o autor aborda nada menos do que a história da civilização ocidental desde há quarenta mil anos até aos nossos dias. Contas feitas, sempre são oitenta anos por página, um número algo ambicioso para encafuar nuns míseros vinte centímetros de papel.

Apesar do risco do empreendimento, a coisa correu-lhe bem: encontramos lá quase tudo, concisão com riqueza de detalhe, encadeamento, tese e aquela ligeireza de redacção que só os ingleses e o Fernão Lopes sabem que a boa História merece. Enciclopédico, Osborne, tal como o realizador de cinema que alterna o grande plano com a grande angular, vai buscar São Tomás de Aquino quando precisa e os The Who quando estes fazem sentido, a pequena história conjugal e as grandes batalhas, tudo para desenvolver uma ideia de quem nós, ocidentais, somos na realidade.

Osborne não é historiador de formação ou profissão. Licenciado em geologia, dedica-se à escrita. Pode, por isso, gozar de toda a liberdade para pegar nos acontecimentos e recompô-los à maneira dele, sem que os seus pares o chateiem. Isto pelo simples facto de não ter pares: muito poucos geólogos se dedicam à história do Ocidente. Talvez graças a esta invulgar combinação histórico-geológica, obtemos como resultado uma perspectiva liberta e inovadora sobre aquela História que a simplicidade redutora dos manuais escolares formatou nas nossas cabeças. Aqui e ali iconoclasta, mas nunca rupturista, Osborne não procura uma História diferente, de cabalas secretas e factos escondidos, tão em voga nestes tempos. É exactamente a mesma que demos no liceu, a verdadeira, a da Bayer, só que pelo olhar de um tipo que se afastou um pouco para a ver de outro ângulo, talvez de cima de um muro, um pouco mais alto. Exemplos dessa perspectiva diferente encontramo-los no relevo que dá às culturas ditas “bárbaras”, pré-romanas, e ao papel que os francos tiverem na génese dos centros de poder no Ocidente.

Mas, para quem não tiver o saco suficientemente fundo para aviar quinhentas páginas de erudição mindinha, há um plano B para tirar grande proveito deste livro. Basta ler o último capítulo, sobre o mundo pós-guerra. Neste, Osborne não escreve sobre o passado, escreve sobre o nosso presente – que também é o dele, globalizado, neo-liberal e essas tretas. E, surpreendentemente, consegue aparentar um distanciamento tal que aquilo até parece tirado de um futuro livro de história, escrito com toda a frieza para aí no ano 2400.

Ao ler este capítulo final, se conseguirmos munir-nos de alguma honestidade intelectual, vamos poder sorrir de nós próprios e de algumas ideias enraizadas na “sabedoria convencional” dos nossos dias, de “políticos”, “economistas” e “jornalistas”. Ideias que socialmente julgamos tão inevitáveis e certas como certas foram consideradas, em seu tempo, a naturalidade da escravatura ou a rotação do sol em torno da Terra. Mas ideias que são meramente a ideologia dominante da nossa época.

Que conclui Osborne de mais importante sobre a “civilização ocidental”?

A sua tese nuclear é a de que o Ocidente, apesar da sua capacidade de gerar progresso económico e cultural, possui uma tendência histórica para derrapar para o abismo, infligindo sofrimento metódico e inigualável não só aos outros como a si próprio. Como se diz na contra-capa, “por cada Beethoven há um campo de concentração, por cada Edifício Chrysler há um massacre de My Lai”. O exemplo acabado desta tendência é a Primeira Grande Guerra, sem bases racionais tanto para o modo disparatado como começou como para a maneira enguiçada como acabou.

Para Osborne, o mal estrutural do Ocidente reside num tendência para um poder centralizado, com uma perspectiva nacionalista, convicto da sua superioridade racionalista, impor a sua visão, destruindo o que encontra pelo caminho, nomeadamente outras estruturas de equilíbrio social e cultural, baseadas em tradições ou laços de comunidade localizados. Quando esse poder centralizado justifica através de uma perspectiva ideológica (muitas vezes racista) a sua pretensa superioridade moral sobre terceiros, e quando o poder tecnológico e bélico é grande, então acontecem massacres e genocídios. Se ao ler isto, vos vêm à mente os óbvios nazis, desenganem-se: o autor está também a pensar nos civilizadíssimos ingleses e franceses, e estes não durante os tempos longínquos da Guerra dos Cem Anos, mas há pouco mais de cem anos.

No final do século XIX, os franceses deslocaram os nativos da Nova Caledónia para terras inférteis. Quando estes, à fome, se revoltaram, foram massacrados e a cabeça do seu líder foi levada para Paris – como diz Osborne, a Paris de Renoir e Degas – como troféu! Pela mesma altura, morria na Tasmânia o último indígena da ilha, após um trabalho cruel e metódico pelos britânicos de matança da população local. Tal limpeza étnica, como se diria hoje, foi levada a cabo durante setenta anos e incluiu detalhes tão sórdidos como a utilização de pessoas como alvos de caça desportiva e de prática de tiro. Curiosamente, é hoje muito mais conhecida e deplorada a extinção do lobo da Tasmânia do que a extinção do próprio homem da Tasmânia. Sensibilidades ecológicas!

Finalmente, o autor considera que vivemos, no presente, um momento em que esse mal estrutural está de novo muito activo e em que o conceito de “civilização ocidental” volta a ser usado com contornos de superioridade moral, para atacar terceiros. Por exemplo, pela administração Bush. Osborne chega mesmo à afirmação pessimista que actualmente, e contrariamente ao que acontecia há poucos anos, as populações europeias sentem, de forma generalizada, que nos encaminhamos para tempos muito piores do que os actuais.


As reflexões deste livro são a mais das vezes pertinentes e por isso a sua leitura tem grande utilidade para que entendamos por que caminhos nos levam. Isto, embora eu não partilhe com Osborne um sentimento tão negativo em relação a esse conceito, tão lato que ele é, de “civilização ocidental”. O autor de “Civilization”, se lido nas entrelinhas, surge muitas vezes como um romântico, saudoso do “bom selvagem” de Rousseau, que a civilização afasta do seu recto caminho e que viveria mais feliz num mundinho aldeão de hábitos e tradições, com o seu “pubezito” de fim de tarde, para uma cerveja e conversa mole.

Por mim, estou contente de ter nascido e de viver como “ocidental”, mesmo estando ciente das limitações que demonstrámos no passado. No entanto, na história dos povos, como na história das nossas próprias vidas, devemos valorizar os momentos altos e não nos focarmos apenas no que foi menos feliz. Temos que ter orgulho não só nas pedras de Notre-Dame e nos rabiscos de Picasso, mas também no facto de termos sido capazes de promover ambientes em que a mortalidade infantil é desprezável, em que toda a gente sabe ler e escrever e em que se consegue levar uma nave à Lua. E estes sucessos são fruto do racionalismo ocidental e não se repetiram muito noutras culturas.

Embora este pormenor possa ser menos simpático para os meus leitores, é graças à “civilização ocidental” que posso estar aqui despreocupadamente a escrever estes meus disparates. Isto porque a liberdade de pensamento e expressão, bem como a possibilidade e o dever de crítica às formas de autoridade, são ganhos mentais da nossa forma de civilização que nunca tiveram noutras sociedades – verdade se diga – a mesma valorização ou a mesma amplitude de presença.

Não posso deixar de concordar com Osborne, quando ele diz que a “civilização ocidental” levou no passado, muitas vezes, ao sofrimento maciço de milhões de pessoas. Mas não creio que isso acontecesse por racionalismo dos governos e dos povos. Penso que isso aconteceu por estupidez dos governos e dos povos. E à estupidez convém chamar estupidez, tal como à razão convém chamar razão, justamente para que os dois conceitos não se confundam.

E para ajudar a não confundir conceitos, nada melhor que relembrar os bons feitos e as grandes asneiras dos nossos avós, de modo a não repetir as cretinices do passado. Também com este intuito, se justifica a leitura de “Civilization”.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Quando fôr grande quero ser como tu... ;)