domingo, outubro 12, 2008

Não é santo quem quer

Vasco Pulido Valente – de seguida VPV para poupar o teclado, indiscutível campeão nacional da maledicência científica, categoria pesos pesados e versão “world series”, meio século de carreira e vinte anos de solitária liderança, ao pé do qual os do “Eixo do mal”, os da “Noite da má-língua”, a bancada do Bloco de Esquerda e o Paulinho das feiras – já para não falar de mim próprio – não passamos de garotos imberbes, aventurou-se por razões incógnitas a dizer bem de alguém e espalhou-se. Tinha que ser.

Na sua crónica de sábado último no Público, VPV dá uma mãozinha ao Papa Bento Ratzinger, que veio recentemente a público defender o seu precursor Eugénio Pacelli, “aka” Pio XII, das bordoadas de certos historiadores que o acusam de leniência ou cagarolice, consoante queiramos manter o nível da conversa, diante dos regimes fascistas e nazis que atingiram o pico da folia durante o seu pontificado.

Com o rigor dos factos que o caracteriza, VPV explica que, diante das perseguições dos nacionais-socialistas aos católicos do sul da Alemanha, Pacelli negociou naturalmente com Hitler uma concordata em que trocou o silêncio da Igreja para defender os seus bens materiais e o direito de culto, de ensino e de assistência. Que embora protestasse em privado contra as facinorosices de Hitler, não o fazia em público, por pensar que tal contribuiria para ainda mais violência. Que, informado, não disse uma palavra sobre os massacres de judeus e só tardiamente e em pequena escala permitiu que a Igreja protegesse alguns deles. Conclui VPV do seguinte modo: “Só que Pio XII punha o interesse da Igreja institucional à frente de qualquer outro. E, com prudência, com astúcia e uma diplomática abstenção perante os males deste mundo, chegou a 1945 com uma igreja forte e quase intacta. O que faz dele um político de talento e um santo difícil de engolir.”

Santo? Ena, pá! É o que dá ser Papa. Houve outros que tentaram a mesma abordagem “soft”, tão “naturalmente” como Pio XII, se calhar imbuídos das mais prudentes razões políticas, e que acabaram nos manuais escolares como frouxos e otários, como o Chamberlain e o Daladier, ou como traidores, caso do Pétain. E possivelmente com toda a justiça, porque até o próprio Daladier, quando foi aclamado pela multidão no retorno de Munique, terá dito a quem com ele estava: “Ah! Les cons!”.

Para VPV (e aparentemente para Bento XVI), no limite, o papel da Igreja diante dos males do mundo dos homens (“este mundo”, que parece não ser o da Igreja) resume-se “naturalmente” a preservar a sua base material e política, e não a intervir em defesa dos que sofrem e em favor de um conceito de Bem. Tem que se ser, antes de tudo, prático. Lembra-me outro Bento, este também Paulo: o importante é haver muita tranquilidade.

Quem me ajuda a contrariar tão fraca tese?

Talvez São Paulo, na sua carta aos Efésios: “Por isso vesti a armadura de Deus para que, no dia mau, possais resistir e permanecer firmes, superando todas as provas.” Ou ainda, na segunda carta aos Coríntios: “ Este é o nosso motivo de orgulho: o testemunho da consciência de que nos comportámos no mundo, […] com a santidade e sinceridade que vêm de Deus.” Ou, finalmente, na carta aos Filipenses: “Uma só coisa: comportai-vos como pessoas dignas do Evangelho de Cristo. Deste modo, indo ver-vos ou estando longe, que eu oiça dizer que estais firmes num só espírito, lutando juntos numa só alma pela fé do Evangelho, e que não temeis os vossos adversários.”

Talvez Jesus Cristo: “ … sereis presos e perseguidos; entregar-vos-ão às sinagogas e sereis metidos na prisão; sereis levados perante reis e governadores, por causa do meu nome. Isso acontecerá para que deis testemunho. Portanto, tirai da cabeça a ideia que deveis planear com antecedência a própria defesa; porque Eu vos darei palavras de sabedoria, de tal modo que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater. Sereis entregues até pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. Sereis odiados por todos, por causa do meu nome. Mas não perdereis um só cabelo. É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida.”


Ou o mesmo Cristo, quando se sacrifica para nos salvar a todos, incluindo por dever de ofício o Pacelli, o Ratzinger e o VPV.

Firmeza diante da adversidade. Orgulho na consciência. Dignidade diante dos opositores. Testemunho. Naquela época difícil da Segunda Guerra, felizmente houve muitos, crentes ou ateus, que encontraram nestes conceitos a força para fazer melhor figura que o Papa Pio XII, senão a coisa podia ter corrido ainda pior.

Cristo teria certamente perdoado a Pacelli pela fraqueza e a Ratzinger pela hipocrisia. Afinal, nem todos são da massa de que são feitos heróis ou santos. Como nem todos possuem a arte do elogio. Por isso, VPV, não afagues. Limita-te a desancar.

1 comentário:

PW$$$ disse...

Gostei em particular da analogia sobre Paulo, o Bento, que não veste púrpura e prefere o verde.

Também ele e a igreja/instituição que lidera sabem umas coisas sobre "Firmeza diante da adversidade, orgulho na consciência, dignidade diante dos opositores".

Mas isto sou eu a desconversar...

Quanto ao VPV, deixa-o lá. Isto de escrever semanalmente crónicas pode cansar; e convém dar uns tiros ao lado para reacender o interesse na leitura e trazer novos leitores curiosos.