segunda-feira, setembro 08, 2008

A Sara Palhinha

Imaginemos que no partido que governa hoje o nosso país cerca de metade do eleitorado acreditasse no Pai Natal. Não no sentido figurado da expressão: que acreditasse mesmo a sério. Que escrevesse carta para o pólo norte abonando o seu bom comportamento anual, a ver se pingava uma prendinha. Que, na véspera do dia vinte e cinco, pendurasse as meias à lareira e lubrificasse o rebordo da chaminé. E que piamente cresse, na manhã de natividade, que o embrulho colocado debaixo do pinheiro viera nessa noite em trenó puxado por renas.

Deliremos mais um pouco. Assumamos agora que essas pessoas consideravam imorais ou incapazes quem, ao contrário delas, não acreditasse no Pai Natal. Que contribuíssem, com finanças mais ou menos parcas, para a promoção de estudos ditos científicos que, em teoria, comprovassem teoricamente a existência do velho barbudo. E que fizessem da crença neste São Nicolau condição necessária para eleger os seus governantes. Que tal? “O Mataspeak, hoje, passou-se de vez!”, dirão os muito estimados leitores.

Ora, o líder deste partido, se de forma pública e notória não acreditasse no Pai Natal, teria um problema para resolver. Como manobraria para ser reeleito? Por um lado, se se mantivesse firme no seu cepticismo, alienaria metade do seu eleitorado, correndo à ruína. Mas se, ao contrário, desatasse a proclamar que tinha andado ao engano, que afinal existia, que por epifania se lhe revelara, de casaca vermelha e barba branca, aí seria pior a emenda que o soneto. Não só os crentes desconfiariam da jogada, aderindo moderadamente, como a outra metade da sua base de apoio fugiria, receosa de eleger um fanático.

Que fazer, então? Uma safa possível passaria por escolher para número dois do partido um tipo que acreditasse mesmo muito no Pai Natal. Um fanático da prenda no sapatinho. Um louquinho do “oh-oh-oh”. Este totó atrairia o voto dos “painatalistas”, que pensariam tacticamente que sempre vale mais ter um número dois do que não ter nada. E o líder garantiria a cruzinha dos que não são parvos, que se resignariam a aturar os dislates do número dois a título de mal necessário.

Bom! O filme de terror acima descrito por acaso até saiu da minha cabeça, mas representa uma versão reduzida e simplificada do “multilema” que se punha até há dias atrás ao senador John McCain. McCain concorre à presidência dos Estados Unidos da América, por detalhe a maior potência mundial, representando um partido, o republicano, onde uma parte significativa e decisiva dos eleitores acredita não num, não em dois, mas numa data de Pais Natal.

Uns acham que o homem foi criado todo bem-postinho ao sexto dia e que isto é que deveria ser ensinado nas aulas de biologia. Outros pensam que o facto de qualquer idiota poder ser dono de uma arma de fogo não tem nada a ver com as matanças que todos os anos ocorrem nos liceus americanos, quase com a mesma tradicional frequência que o baile de formatura. Há os que julgam que a substituição da educação sexual escolar pela promoção da abstinência entre os adolescentes não está na origem da maior taxa de gravidez precoce do mundo ocidental. Aqueloutros ainda não perceberam que os furacões cada vez mais vezeiros e violentos que levam no toutiço têm origem no aquecimento global promovido pelas carradas de CO2 que a indústria americana debita cá para fora. Verdade seja dita, não devem morar na Louisiana ou na Florida. Outros ainda supõem que a coisa se resolve furando mais poços de petróleo, dê lá onde der. E não me admirava que alguns haja lá para o meio que acreditam mesmo na existência do Santa Claus, “himself”. Já agora, para maluco, maluco e meio.

Ora o McCain, do alto dos seus setenta anos, inscreve-se mais no estilo do velho partido fundado em 1854 por anti-esclavagistas e modernizadores da política americana, o partido de Lincoln e de Theodore Roosevelt, partido que pouco tem a ver com a cegarrega autoritária e atrasada mental dos últimos tempos. Para parte da turba votante, é um suspeito esquerdista, apesar das condecorações e das cicatrizes.

Com tanto sandeu para contentar, McCain precisava de vários vice-presidentes, mas as regras deixadas pelos pais fundadores só lhe permitem um. Vai daí, passou a base de dados com os trezentos milhões de norte-americanos num algoritmo de optimização multi-variável e conseguiu desencantar numa vilória do Alasca o único americano – no caso uma americana – que não só acredita nos Pais Natal todos, como tem a idade e o sexo que ele não tem (demograficamente falando, é claro).

Sarah Palin nasceu no Idaho mas foi criança para o Alaska. O pai Palin ia com ela caçar o alce antes da hora de entrada na escola e a família entretinha-se com corridas de 5 e 10 km, o que a menos quarenta deve ser o máximo. Claro que isto tinha que deixar marcas na pequena Sarah que cresceu cristã evangélica, criacionista, membro da “National Rifle Association”, “pro-life”, “pró-virgem até ao casamento”, “pró-corte de subsídios aos deficientes”, “pró-esburacar o Alasca a sacar petróleo”, “pró-censura dos livros inconvenientes”, “pró etc.” Pró caraças não lhe faria mal nenhum!

Mas como Deus dá com uma mão o que tira com a outra, para compensar tanta burrice deu-lhe uma carinha laroca, com a qual ganhou o título de Miss Wasilla, possivelmente competindo contra duas ursas polares e uma “inuit” velhota, para que o “quorum” fosse preenchido. Forte desse diploma de beleza, andou em cinco universidades diferentes para acabar um curso de jornalismo, tornou-se repórter desportiva, presidente da câmara de Wasilla (sete mil alminhas, já contando os alces que sobreviveram ao pai Palin), governadora do estado (onde rapidamente deixou o orçamento num triste estado) e agora candidata à vice-presidência dos Estados Unidos da América. É assim como se a presidente da junta de freguesia de Curral das Moinas se visse de repente em ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.

Tudo isto seria motivo para uma boa galhofa, não fosse o McCain ter setenta e dois anos, com quatro melanomas, muita porrada levada no Vietname e qualquer dia poder dar-lhe um badagaio. E, se tiver sido eleito, lá vão os códigos do arsenal nuclear para os dedinhos habituados ao gatilho da presidente Sarah Palin. Um sossego!


P.S.

Para quem não entendeu ainda bem o que é a direita evangélica norte-americana, recomendo os capítulos quatro a sete de “American Theocracy”, de Kevin Phillips, um antigo conselheiro de estratégia eleitoral de Richard Nixon. Um bocado maçudo, mas com dois ou três cafés vai.

Se quiserem uma versão sintetizada, vejam este extracto do Jon Stewart, que fala por si (o extracto, não o Jon):

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Chiça... vim só dizer que li, que estes para mim são chinês... escreves no entanto cada vez melhor, já te consigo perceber mesmo quando o tema não me interessa grande coisa. lol
PS: a história do branco no preto é que continua a gastar-me os olhos...