domingo, setembro 28, 2008

É uma casa portuguesa com certeza

No Expresso de hoje, titulava-se que 3200 (três mil e duzentas) casas foram atribuídas por cunha em Lisboa. O processo está em investigação e os detalhes ventilados pela imprensa desanimam o mais confiante dos optimistas quanto à perspectiva de isto algum dia tomar rumo de jeito.

Sempre houve cunhas em Lisboa. Só na lista telefónica encontrei próximo de seiscentos, incluindo uma Aida Purificação, um Albérico, uma Anália, uma Carmelita (suponho que das calçadas), um Gumercindo, uma Liseta, uma Osmia e um Otílio. Mas tão peculiares antropónimos não são metade do estranho que são os casos de cunha que o Expresso relata. E estes, o mais estranho – e preocupante – que têm é o facto de já não estranharmos.

Como nós não estranhamos, os cunhados e os afilhados também já não. Escolho um apenas como emblemático exemplo. Funcionário da tipografia da Câmara de Lisboa, foi-lhe atribuído nos anos oitenta um T1 em Telheiras, porque estava em processo de divórcio e tinha um filho a cargo. Piedosa atenção da edilidade, assumamos que justa. Pois hoje, o então indigente já subiu a pulso até director camarário (vamos generosamente supor que por mérito), casou outra vez, comprou nova habitação, mas mantém a casa atribuída pela CML e, não ciente do abuso que comete, ainda disparata do seguinte modo: “O meu filho é que mora lá. Não tenho dinheiro para lhe comprar uma casa nova”. E alonga-se mais: “É a minha casa de reserva. Se amanhã tiver que me separar outra vez, para onde é que eu vou?” E agora digo eu: “Olha, vai para o caralho!” Com perdão aos meus leitores pela má palavra, mas não consegui encontrar nos seis gordos volumes do dicionário Houaiss outro vocábulo que melhor se aplicasse aqui. E juro que procurei.

Então o teu filho, que agora pelas minhas contas andará a caminho dos trinta anos, não pode arranjar casa sozinho, como o resto das tropas? Agora o direito a tê-uns em Telheiras tornou-se hereditário? Coitado, o rapaz deve ter saído a ti! E tu, se não queres ir para o olho da rua, não te separes. Põe-te à tabela. Torna-te indispensável. Vai a uma consulta de andrologia ou compra umas caixas de Viagra®. Mas devolve lá a casinha ao erário público, que eu, que pago imposto municipal, não tenho nada a ver com os teus problemas sentimentais.

Não haverá na Praça do Município alguém de coração misericordioso que cometa a caridade de oferecer a este senhor uma tardia oportunidade de aprender a desenrascar-se sozinho, despedindo-o sumariamente?

Quando me casei, comprei um apartamento na periferia de Lisboa. A mensalidade custava 75% do meu salário. Como não tinha dinheiro para a mobilar, vivi dois anos numa casa dos meus pais (não atribuída por qualquer autarquia) até me poder mudar. Consequentemente, a câmara retirou-me dois anos de isenção de contribuição autárquica, um direito que eu tinha, sob o pretexto que não habitava lá. Pudera! Só se me deitasse no chão! Ainda me desloquei às Finanças, mas o funcionário, embora simpático para com a minha situação, explicou-me que nada havia a fazer. Aplicava-se a letra da lei, não o seu espírito.

Este meu caso nem sequer é dos mais danosos ou chocantes, quando comparado com outros que conheço e, suponho, muitos outros que desconheço, de prepotência sobre os contribuintes. Mas todos eles fazem com que os abusos que o Expresso hoje relata e, sobretudo, a ligeireza desculpabilizadora com que os beneficiados se justificam se revistam de uma gravidade extrema.

Ficar com um T1 em Telheiras que não se lhe pertence é, na prática, como roubar 150.000 €. Quando um bandido assalta uma agência do Espírito Santo e leva uma quantia destas, vê-se a braços com a justiça se apanhado. A quem se apropria indevidamente de um valor imobiliário de igual montante, ou a quem deixa apropriar, não lhe deveria acontecer exactamente o mesmo? A única diferença entre as duas situações reside na identidade dos lesados: no primeiro, o Dr. Ricardo Salgado e os restantes accionistas do BES; no segundo, eu e os demais habitantes de Lisboa.


A corrupção, o clientelismo, o nepotismo, são dos maiores cancros que um regime democrático pode ter. Porque minam o próprio âmago do que faz ou deveria fazer a força das democracias: a igualdade de deveres e oportunidades diante da Lei, a condução da coisa pública na procura desinteressada do bem comum, a superioridade moral que advém de a todos atender de igual modo, de acordo com as necessidades de cada um e as possibilidades existentes.

Se a democracia for forte e as pessoas sentirem que estes princípios de justiça e igualdade são aplicados, aceitarão pacificamente que sobre elas se faça o exercício do poder, uma vez que reconhecerão que é para o bem de todos. Se, pelo contrário, a democracia for fraca e as pessoas verificarem que o poder é exercido por uns em proveito de poucos, afastar-se-ão progressivamente do regime e, ao primeiro tropeção da situação (crise económica, aumento de insegurança, escândalo maior, etc.), virar-se-ão para soluções mais nefastas, como derivas autoritárias, homens providenciais, sanhas moralistas e outras que tais. A História assim o demonstra, no modo como terminou a nossa Primeira República e na tele-democracia de Berlusconi, da subida ao poder de Júlio César à subida ao poder de Adolf Hitler, do peronismo ao bonapartismo.

A democracia portuguesa é recente e ainda não está suficientemente escorada, sobretudo na mentalidade dos governantes e na dos governados. Na dos primeiros, para quem o poder ainda é um fim e não meramente um meio e que vêem com frequência os bens públicos como sendo deles, quando são de todos. Na dos segundos porque ainda toleram excessivamente os primeiros. E tolerar excessivamente aqui significa tolerar, nem que seja marginalmente, aquilo que é intolerável, como o clientelismo e a corrupção. Significa, por exemplo, voltar a votar, com o pretexto de que não há alternativa, num partido que aceita sem nada fazer situações como as descritas. Há sempre alternativa, nem que seja dar maciçamente o nosso voto àquele partido dos Açores que tem uma ave no emblema.

Conta a anedota que perguntaram uma vez a um lorde inglês o que era preciso para construir uma democracia, ao que ele respondeu: várias gerações. Temos portanto a desculpa de ainda ter algum tempo, mas convém ir começando.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Ooooooooohhhhhhhhh!
Nem no Sopa se dizem nomes feios deste calibre!!!!
Francamente, fiquei chocada com a ousadia...
Confesso que já só consegui ler o resto na diagonal, tal foi o baque...

Albérico? Anália? Gumecindo?
Fiquei boquiaberta com a audácia...

Esqueceste-te do Rui. ;)lolololol