sexta-feira, setembro 03, 2010

Férias II : A economia do tereré

Em Agosto, Porto Covo rodopia à volta do largo pombalino. A qualquer hora, a praça pulula. À noite, regurgita. Uma rua pedestre, cuspida na direcção do mar, ladeada de lojas e restaurantes, funciona como uma excrescência do largo. As pessoas abandonam a mole compacta que se afunila entre as quatro paredes do largo e descem a rua, empurrando à sua frente carrinhos de bebé ou barrigas de cerveja, arrastando atrás cães modorrentos ou petizes eléctricos, e depois voltam a subir a rua atraídas para a massa humana por forças mórbidas ou gravíticas, possivelmente ambas.

O largo à noite prova que o “horror vacui” aristotélico funciona e recomenda-se.

Na sua pequena geometria quadrada, oferece dois restaurantes, dois bares, uma pastelaria, uma geladaria, duas lojas de inutilidades baratas e uma loja de inutilidades caras, não contando a igrejinha.

No recanto sudoeste, a pastelaria conhecida por “o 31”, a mais célebre da terra, posiciona-se em segmento alto. Com uma decoração naquele rústico de decorador, produtos de alguma qualidade, empregadas de batinha e uma limpeza cromada que faria as delícias da ASAE, diferenciou-se já nos anos oitenta. Atraiu assim os tiozecos e as tiazocas de cidade, que aborriam a genuinidade das tabernas escuras, onde a bica ladeava com bagaços e petiscos petiscados com palitos de aspecto duvidoso, onde o bru-á-á suburbano em férias dava lugar a histórias da terra em pronúncia inconfundível, ditas de boné diante de um pires de tremoços.

Nas traseiras de uma dessas tabernas, num pátio que servia de armazém e ao qual se acedia por um corredor por trás do balcão, vencendo o cheiro nitroso que exalava das portas entreabertas das casas-de-banho, joguei muitas vezes matraquilhos. Eram uns matrecos à antiga portuguesa, com robustos jogadores de ferro forjado na clássica táctica 2-5-3, equipados à Sporting e à Benfica que o Porto ainda era um Belenenses do norte. Cada equipa tinha um preto no ataque. Os varões negrejavam de óleo e deixavam vergões escuros na roupa, para posterior protesto das mães. Nas cabeceiras, os cinzeiros ostentavam borras de vários cigarros e aí guardávamos as moedas, sem nojo. Metidos cinco paus, puxado o gatilho, a gaveta enchia-se de dose generosa de bolas, de esfericidade variável, da nova redondinha e ainda brilhante ao cubo negro já sem memória da sua circularidade. Este obrigava a jogadas especiais e tendia a parar em sítios de onde se tinha que o deslocar à mão, manobra perigosa da qual resultavam por vezes lesões graves dos dedos. Os bonecos calçavam maçudas patorras de aço, de formato irregular, que proporcionavam fenomenais berlaitadas. O golo directo da defesa era aplaudido, a bola que entrava e voltava a sair da baliza discutida. De vez em quando, no calor da peleja, o esférico voava para fora do estádio em direcção ao infinito, obrigando a demoradas procuras de cu para o ar, até o descobrir entre duas abóboras ou em cima de uma saca de batatas, aos gritos de “tá aqui”.

Que saudades! Hoje esse tasco converteu-se num comedouro asséptico e os matraquilhos desapareceram para sempre. E voltamos assim ao 31, aos tias e às tias que trouxeram outros que não o sendo por alguma panca do demo gostariam de ser e por isso seguem e imitam. Nas noites de Agosto, o 31 parece o comboio de Lahore para Bombaim, onde não cabe um alfinete e os corpos aparentam ir ser cuspidos das portas e das janelas. Para beber um café ou obter uma bola de “stracciatella” num copo de papel, há que tirar senha. Senha! Senha como na loja do cidadão, para pedir o passaporte ou activar a Via Verde! E as pessoas tiram e esperam ovina e asininamente minutos muito largos pelo buzinar do seu vinte-e-oooooito ou quarenta-e-trêêêês, que lhes há-de dar acesso a um “croissant” ou a uma imperial! Depois, disputam as mesas. E obtidas as mesas, disputam as cadeiras.

Eu, que passe a imodéstia não sou totalmente parvo, tomo café na geladaria da fachada leste, a trinta metros. Sou servido mal chego e sento-me na mesa que quiser. Não é nenhum segredo bem guardado. A porta vê-se da fila, melhor dizendo do magote, que no 31 aguarda de senha dobrada na mão. Meramente não é tão fino, por isso a gente não vai. Serei porventura menos requintado, mas bebo a bica com mais conforto. Não me apetece sofrer para ser elegante.

Na fachada oeste, tendo percebido que o homem é um animal irracional, o mesmo proprietário do 31 da senha abriu uma marisqueira, um 31 da amêijoa e da casquinha de santola. Não há marcações e os candidatos a comensais esperam e desesperam, rondando a esplanada como malandrins cobiçando um alvo ou acotovelando-se no interior com ar suspicioso, temendo que alguém dê o golpe, pressionando com o olhar os desgraçados que, sentados, apenas quereriam terminar a sua sobremesa em paz. Quando finalmente uma mesa vaga, um rapaz de camisa fardada abre um caderno garatujado e aponta para os felizes contemplados, que se precipitam sobre o cadeirame como afogados sobre um barrote. Confesso, com vergonha, que também já fiz essa triste figurinha. Tenho apenas como desculpa o facto de estar a acompanhar amigos que merecem todo o sacrifício e que pareciam desesperados por trezentas gramas de camarão, vá-se lá saber porquê...

No canto nordeste, um bar orientou-se para uma clientela “Massamá em Ibiza”. Ele são “shots” com nomes pornográficos que se pretendem graciosos, decibéis desproporcionados, cantores ao vivo de má índole e pior voz e até “karaokes”. Os clientes, abundantes de brincos de vidrinho e crista brilhantinada, emborracham-se e depois deliram. Os vizinhos sofrem, acordados. O dono factura. A Câmara vem limpar pela manhã. Como diria o Eça, justa repartição dos trabalhos.

Em certos dias, quem chegar ao largo notará uma maior concentração de pessoas em frente à igreja, olhando na direcção da porta. Não será devoção: no lajeado que faz as vezes de adro, um suposto artista exibe a sua arte, um chapéu invertido no chão esperando a generosidade dos mecenas a banhos. Por regra números fraquinhos, com malabarismos à Chapitô e tranças à “rastafari” ou “sketches” sem graça esganiçados em falsete. Apesar da pobreza franciscana das “performances”, ninguém arreda pé, os pescoços esticados em tensões de girafa. Deve fazer parte de um ritual: é de borla, vê-se. Viu-se, aplaude-se. Há quatrocentos anos, analfabetos pagavam com sacrifício para encher o Globe e ver Shakespeare. Aqui, malta com pelo menos nove anos de uma suposta escolaridade gasta minutos preciosos da sua vida a assistir a trampa, sem aparentar remorso. Algo se deve ter passado entretanto.

À volta do fontanário que, cercado de um relvado ralo, marca o centro do largo, a autarquia dispôs pequenas bancas de madeira, ocupadas por “artesãos”. “Hippies” tardios vendem pechisbeque, algum de autoria própria, outro fabricado na China. Desenham-se caricaturas a carvão. As inevitáveis peruanas propõem flautas de Pã andinas e fitas de punho. Pintam-se tatuagens de “henna”, às vezes com espectaculares impactos alergológicos se a tinta estiver marada. Dispõem-se “tee-shirts” com dizeres que se supõem jocosos, mas que afinal são ordinários. Fazem-se tererés no cabelo de crianças e adolescentes.

E eu, ao ver toda aquela gente acotovelando-se entre os cuspidores de fogo da igreja e os vendedores da pacotilha, endomingada após o duche das sete, palmilhando acima e abaixo e ao redor, estourando a magreza do subsídio de férias nos restaurantes onde fizeram fila para comer uma massada de peixe infame para o que pagaram ou dormitando de pé, de senha em punho, à espera de uma bica no 31, ou deitando para o chão os copos de plástico que cedo de manhã as mulheres da câmara virão limpar pagas com um dinheiro que já não temos, eu, quando vejo tudo isto, lembro-me de alguém. Sabem quem? Portugal. Olha, olha: Eça outra vez…

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