sábado, setembro 04, 2010

Férias III : O nazismo casou com uma italiana jeitosa

Já vai uma década, participei nuns dias de marcha no sul de França que terminaram num opíparo jantar num “mas” isolado na planura da Camarga, pedaço de Ibéria enxertado em terra gaulesa, onde acompanhei grandes pratadas picando presunto e chouriço de touro.


Para entretenimento dos comensais, um par de ciganos tocava guitarra. Tocavam muito bem, mesmo muito bem. Soados os primeiros acordes, paravam as mandíbulas e viravam-se as cadeiras. Um deles tinha um CD publicado, que por idiotice na altura não comprei.


Num dos “breaks”, tendo esse do CD me ouvido falar português, abordou-me em espanhol e conversámos um pouco. No meio da conversa lembrei-me de lhe perguntar se conhecia Paco de Lucia. Ele, com um sorriso, pousou o pé na cadeira, assentou a guitarra na perna e durante sessenta segundos ouvi o “Rio ancho”. De forma perfeita: tal como quando oiço Lucia na gravação, pareceu-me ver o Guadalquivir a nascer cristalino na serrania, a vencer turbulento as encostas pedregosas e a explanar-se, largo, sereno, mouro, lento no calor abrasador da planície andaluza.


De repente, tendo-me presenteado com esse minuto excelente, travou as cordas com os dedos e disse com ar sério:


- Não gosto de tocar Paco de Lucia. Posso-me enganar e seria uma falta de respeito para com o mestre.


Acarinho desde então esta lembrança tocante. Naquele breve instante, o cigano ensinou-me muito sobre a humildade – que é uma virtude para consigo próprio, sobre o respeito – que é uma virtude para com os outros – e, quando por instantes quebrou a sua regra para me fazer a vontade, sobre a irmandade – que é uma virtude para consigo próprio e para com os outros.



Passados muitos anos desta cena, o meu pai encontrava-se moribundo num hospital de Lisboa. Havia uma auxiliar de enfermagem, um mulherão moreno, de cabelo longo retinto, de uma força impressionante, que muitas vezes vi assistir o meu pai. Pegava no seu corpo minado (e depois vencido) como se uma madona segurando o Menino. Ele quase desaparecia por trás daquele corpanzil de bata verde. Quando ela entrava no quarto, nunca faltava uma palavra simpática, um “senhor”, um nome, um dedo de conversa, mesmo quando ele já não respondia, mesmo quando ele já não percebia, mesmo quando para outros menos cautos poderia parecer que aquelas palavras já não valiam a pena. Ora isto chama-se humanidade e vem caindo em desuso.


Era cigana. Por vezes as visitas ao sabê-lo duvidavam, presas aos seus estereótipos, insistiam se era mesmo e ela, firme no sorriso, ajeitando a orla do lençol, reafirmava:


- Com muito orgulho! De pai e mãe.


Certa vez, quando ela pacientemente, pela vigésima vez do dia, acudiu a uma tarefa que a quase todos repugnaria e eu lhe agradeci, respondeu:


- Não tem que agradecer. Gosto muito do que faço.


Na altura surpreendeu-me mas hoje vejo claro. Como poderia um Anjo não gostar do que faz?


Não temos, nem eu nem a língua portuguesa, palavras para expressar a gratidão e a admiração que eu sinto por ela (e por outras pessoas que sempre aparecem lado-a-lado nestas memórias). Mas uma coisa que na altura jurei foi nunca mais ser estúpido e voltar a cair na ladainha que nos ensinam desde crianças, que o horror chamado “vox populi”destila e que os jornais reverberam, de que os ciganos isto e a ciganada aquilo.


Durante Agosto, li sobre os ciganos romenos que foram corridos de França, às famílias inteiras. Não digo expulsos ou deportados porque eles estavam num espaço, a Comunidade Europeia, onde têm direito a estar. Portanto a palavra que mais se me aproxima é “corridos”. Corridos à má fila. Com argumentos que são um vómito para cima dos tratados europeus e perante um silêncio cobarde da Comissão que só pode espantar por já não espantar. Desgostante.


Nestes tempos de correcções políticas, os ciganos são objecto de um racismo intolerante e tolerado.


Não só porque são catalogados à cabeça de malandros, senão mesmo de criminosos. Não só porque prevenimos os nossos filhos para terem cuidado. Não só porque viramos a cara. Estes são só os tiques mais evidentes.


Há racismo quando um telejornal relata que “dois indivíduos de etnia cigana assaltaram” mas já não diz que “dois indivíduos de indivíduo de etnia branca assaltaram”.


Há racismo quando a chacina de judeus às mãos nazis na Segunda Guerra se chama Holocausto e a dos ciganos é um detalhe da História.


E também há racismo quando achamos que as crianças ciganas podem abandonar a escola aos doze anos e serem prometidas em casamento aos catorze, “porque eles são assim”. Se são assim, mudam, e temos que os obrigar a mudar, como se faria com qualquer família não-cigana. Não exigir deveres também é uma forma de racismo.


Vários ciganos enveredam pelo crime? Que se prendam. Muitos ciganos trabalham na economia paralela? Controle-se e tribute-se. Há muitas crianças ciganas que se vêem privadas pela família de direitos básicos? Intervenha-se como com qualquer outra criança. Mas deixe-se a cada indivíduo cigano, à partida, o seu direito ao bom-nome, à presunção de inocência e a todas as outras considerações que nos indignaria se nos fossem retiradas.


Julgar um indivíduo pelo comportamento de outros de um todo a que ele pertence é racismo, ponto final. Entre os portugueses há muitos defeitos, mas eu quero ser avaliado pelos meus defeitos, não pelos de outros portugueses. Entre os brancos há muitos vícios, mas eu exijo ser julgado pelos meus vícios, não pelos de outros brancos. Cada cigano tem o direito de ser visto pelo que ele é, não pelo que outros são, sejam esses um, dez ou noventa por cento do total. Não interessa a percentagem. Totalmente irrelevante.


Diz o ministro francês que coordena estas alarvidades que um em cada cinco roubos na região parisiense é cometido por romenos. E dois ou três dos restantes devem ser por franceses. Corra-se então também com os franceses, que mal não faria à França.


As expulsões de famílias inteiras capitaneadas por Sarkozy, por motivos populistas e eleitoralistas, envergonham a França e a silenciosa Europa. Com a ironia adicional de ser o presidente francês filho de emigrantes húngaros, que tiveram a felicidade de não ser expulsos “in illo tempore”.


Por estas e por outras, passo a passo, de Berlusconi em Sarkozy, de “Front National” em “Vlams Block”, de indignidade em indignidade, a civilização europeia, construída com o labor e o sangue dos nossos anciães, vai deslizando para o fundo. Neste momento, quase irremediavelmente conspurcada, já anda a boiar na água da retrete. Que venha mão justa e piedosa e solte o autoclismo.

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