domingo, março 28, 2010

Sítio santo


"Um dia, esta horrível guerra acabará por fim, um dia poderemos ser seres humanos e não apenas judeus"


in "Diário de Anne Frank"



Durante as férias carnavaleiras com o meu filho mais novo, passeando pela Bélgica e pela Holanda em gozo de tempo de qualidade, como agora se diz, terminámos em Amesterdão. Lá chegados, o rapaz quis começar por visitar a Casa de Anne Frank, cujo diário acabara de ler na disciplina de português.


Fomos e integrámo-nos na fila que dobrava a esquina, do canal dos Príncipes para a sombra tutelar da torre da Westerkerk, igreja onde Rembrandt repousa finalmente ao abrigo dos credores. O fim de dia assoprava uma brisa gélida e polvilhava-nos com uma cacimba fina. Foi com alívio que assomámos à porta do que no início da guerra era o armazém da Opekta, a empresa de especiarias de Otto Frank.


Confesso que não ia à partida com grandes expectativas em relação a esta visita. Por regra, não me demoro em casas-museu: a intimidade das figuras históricas tem para mim um interesse breve, que se desfaz em meia-dúzia de passos pelos soalhos gastos pelo andar dos anos e das solas dos turistas. Desta vez foi diferente e inesperado.


Acontece que eu nunca tinha entrado num santuário. Verdade que já andei por muito sítio onde homens de hoje ou de ontem reclamaram uma ligação especial ao divino. Visitei igrejas e templos, mesquitas e sinagogas. Bebi a água do oráculo de Delfos, sem grande impacto nas minhas capacidades predictivas, diga-se em abono da franqueza. Cheguei a abrigar-me da trovoada sob um dólmen. Penetrei a câmara tumular do faraó Quefren. Percorri a planura asfaltada das edificações de Fátima, as grandezas marmóreas da Santa Sé. Na ilha de Jeju, na Coreia, toquei a pedra que dá felicidade aos noivos coreanos, por sinal um país com uma elevadíssima taxa de divórcio. Mas em todos estes locais, por respeito que me mereça a história e as convicções de quem os venera ou venerou, nunca tive a percepção de estar cara-a-cara com o Sagrado.


Mas quando passei pela estante falsa que separava a Opekta do esconderijo onde durante dois anos viveram clandestinas oito pessoas (a família Frank, a família Van Pels e Fritz Pfeffer) senti, de uma forma tocante, que naquele local ocorrera um absoluto profundo. Entrara finalmente, a mais de meio da minha vida e quase sem me dar conta, num santuário. Ali se tinham cruzado em luta feroz Deus e o Diabo ou o melhor e o pior dos homens, escolham vocês.


As pequenas dependências do esconderijo visitam-se despojadas de mobiliário. Foram pilhadas após a prisão dos ocupantes. Otto Frank, pai de Anne e o único sobrevivente à guerra, quis que o local se mantivesse como estava. Percebe-se: novas mobílias fariam um cenário e o que se passou naquela casa não foi nenhuma peça.


Há detalhes comoventes. Uma vitrina exibe um jogo de tabuleiro, prenda de aniversário do jovem Peter Van Pels pelos seus quinze anos, celebrados na clandestinidade. Outra mostra exercícios de latim feitos por Margot Frank, a irmã de Anne, que saíam do esconderijo e voltavam corrigidos. E aqueles objectos encontrarem-se lá significa que gente boa arriscou a vida ajudando aqueles clandestinos não apenas para que se escondessem ou comessem, mas também para que uma menina pudesse satisfazer o seu gosto pelo estudo ou que um rapaz passasse um aniversário feliz.


Tal género de coragem, abnegada e heróica, suscita admiração e um certo orgulho: a nobreza é afinal possível. As pessoas que ajudaram os Frank e os restantes clandestinos têm caras e nomes: Miep Gies-Santrouschitz, Jo Kleiman, Victor Kugler e Bep Voskuijl. Por vezes, gastamos a cabeça a lembrar malta que não vale a pena. Estes não devemos esquecer nunca.


Ao revés, os nomes dos que os denunciaram não são conhecidos. O Mal abrigou-se cobardemente no anonimato. Os ocupantes daquele esconderijo foram presos em Agosto de 1944 e deportados para campos de concentração. Todos, excepto Otto Frank que sobreviveu a Auschwitz, pereceram, tal como cem mil dos cento e quarenta mil judeus holandeses que havia em 1940. Poder-se-ia pensar que o Mal ganhara ao Bem, usando e abusando da morte, a torto e a direito. Mas não. Com um livro, com a história da sua candura no meio da situação mais trágica, com a sua voz de esperança, com o seu testemunho, Anne Frank deu ao Bem uma vitória tardia e póstuma, usando a única arma possível: a Memória.



Uma reflexão final: uma visita à Casa de Anne Frank aviva-nos a lembrança que o nazismo existiu e do que foi. O modo como recentemente temos olhado para os totalitarismos do século XX tem sido muito clemente para o nazismo. O nazismo, pela escala mas sobretudo pela essência, representa o grau zero da humanidade.


Quando se junta acefalamente na mesma frase, como tantas vezes se ouve na televisão, nazismo e estalinismo, Hitler e Estaline, está-se a branquear o nazismo, como aliás Primo Levi, um anti-comunista sobrevivente de Auschwitz, muito bem fez notar nos seus escritos.


Na minha óptica, Estaline foi um ditador sem escrúpulos que perseguiu sem mercê os seus inimigos, supostos ou reais, e que por erros seus, militares ou económicos, indirectamente arrastou para a morte muitos milhões. “En passant”, e numa perspectiva histórica, tenho que reconhecer que acabou por ser o mas bem sucedido dos czares russos (apesar de georgiano), o único que conseguiu aquilo que Pedro e Catarina queriam e nem cheiraram: tornar a Rússia uma potência mundial.


Mas Estaline não mandou gazear crianças. Não promoveu deliberadamente o extermínio completo de povos. Por isso, porra! Não comparem! Só lhes fica mal…

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