sábado, março 20, 2010

Dois quadros

“E assim, quando mais tarde me procure

Quem sabe a morte, angústia de quem vive

Quem sabe a solidão, fim de quem ama


Eu possa me dizer do amor (que tive):

Que não seja imortal, posto que é chama

Mas que seja infinito enquanto dure.”


Vinicius de Moraes, in “Soneto de fidelidade”



Nota: Hesitei muito, por pudor, antes de contar o que vou contar. Porque me foi revelado num momento breve em que me abriram a porta do sacrossanto de uma vida que não me pertence. Acabei por lhe dar uma volta, tentando usar de discrição para levar até ao fim a homenagem que me custava deixar fugir.



Primeiro quadro: Rijksmuseum, Amesterdão


Na minha recente volta flamenga com o meu mais novo voltei ao Rijksmuseum e a uns minutos de contemplação diante de um pequeno quadro de Jan Vermeer: “Rua de Delft”. Na minha primeira visita a esse museu, já lá vão uns anitos, essa pintura agarrou-me pelo pescoço quando eu passeava distraído entre telas matulonas de outros nomes sonantes. “Põe-te aí”, ordenou-me e eu pus-me, momentaneamente surpreendido mas logo rendido.


Retrata uma imagem que seria comum na Delft renascentista e mercante: um casario de tijolo já com as marcas do tempo, rasgado por janelas altas e sedentas da luz metálica do céu da Flandres, uma mulher à porta trabalhando a sua renda, outra que se afadiga num pátio, crianças brincando no passeio e ao fundo nuvens anunciando a hora do recolhimento.


Aquelas crianças e mulheres, se realmente Vermeer as viu e não apenas imaginou, já se foram. Talvez a rua ainda exista em Delft, quase imudada, porque os holandeses têm aquele modo antiquado de preservar o património que falta aos nossos progressivos autarcas, impelidos para o betão e para a rotunda pelo farfalho do bigode.


O que certamente continua, em Delft como noutros sítios de sorte, é a paz dos momentos simples e a felicidade que ela inspira aos homens.


Muito dos quadros que a mesma sala exibe ostentam, com dimensões generosas e cores graves, gente que se cobriu de glória na guerra ou fez fortuna no comércio. Ou então deuses da antiguidade ou momentos bíblicos. Tudo eternidades de pequeno gabarito: uma placa de poucos centímetros ao lado da moldura que se lê em dois segundos e se esquece no outro.


O de Vermeer, pelo contrário, parece uma gelosia sobre um tempo que reconhecemos na essência como igual àquele que nos foi dado para por cá andar. Tivesse o museu tido a lembrança de me pôr ali uma cadeira e eu sentava-me, descansando um pouco, pensando na vida, olhando no quadro aquelas minhas vizinhas nas suas lides diárias.


Claro, depois há o virtuosismo. Aproximamos a cara da tela e percebemos que aquele rosto de mulher, que quase imaginamos concentrado e suave no seu trabalho é uma mera pincelada rosa ou que a urdidura da renda que víamos à distância resulta de uma amálgama de brancos, num impressionismo “avant la lettre”. Tudo são pigmentos, texturas, traços quase sem propósito. Recuamos e a rua de Delft reaparece, na sua serenidade sem princípio nem fim. São assim os criadores, que do caos tiram a ordem. Deus precisou de seis dias, a Vermeer bastam-lhe dois passos para trás para nos dar, em concisão e beleza, aquilo que de mais precioso temos para usufruir: a vida, a felicidade, estas coisas pequenas.




Segundo quadro: vilazita, algures no Ribatejo


Levei a minha mãe a visitar uma prima afastada, já muito idosa, a quem o marido morrera dias antes. Perdemo-nos no meio do casario e parámos junto ao café perguntando pela rua. As caras pareciam indecisas na resposta, mas quando dissemos o nome da pessoa os braços apontaram sem hesitação.


A casa ficava ao fundo de um beco, e atentando percebemos que a construção humilde cresceu com o tempo e as possibilidades, com a mesma lógica com que os ninhos são fabricados: uma amálgama de materiais dispersos que se vão entrelaçando com paciência, criando concavidade e conforto.


Na sala mínima, atravancada, a viúva errava de olhos marejados e fala embargada, andando de fotografia em fotografia, pondo-nos as molduras nas mãos em silêncio como que pedindo para partilhar a sua incredulidade. Compreendo que custe a crer: tinham sido quase sessenta e dois anos em comum e de repente aquela brutal aparente ausência, o silêncio inabitual, a vista dos objectos agora inúteis, as paredes a emanar memória.


Enquanto a minha mãe lhe falava, repetindo-lhe as poucas palavras que o léxico tem para estas ocasiões e que ela já ouvira com certeza vezes sem conta, reparei num quadrinho numa estante. Era um trabalho a ponto-cruz, que ela fizera, com duas fotografias do tipo passe coladas (ele e ela, talvez na meia-idade) e com letras garridas que afirmavam contra um fundo de pano branco: “O nosso amor é lindo”.


De volta a Lisboa, conduzindo em silêncio, ocorreu-me que no imo mais fundo aquele quadro nada devia ao meu Vermeer de estimação. Com uma pujança feita de candura e arrebatamento, ali estavam emoldurados sessenta e dois anos do melhor que nos melhores momentos a condição humana tem para dar: dedicação, fidelidade, amizade, devoção, entusiasmo. E amor, claro está.


E isto não é puxar à lágrima, fácil ou difícil. Sei que para a maior parte das pessoas que conheço, e numa primeira reacção também para mim mesmo, que não sou menos estúpido e condicionado que o resto, aquele quadro seria apelidado de piroso, em resultado daquela necessidade pequeno-urbana de afirmação a que anafadamente chamamos “gosto”. Dito “gosto” esse que, se virmos bem, tantas vezes não é mais do que uma forma de papaguear (e de pagar) aquilo que alguns departamentos de “marketing” por esse mundo fora querem que pensemos que pensamos.


Enrodilhados nesta teia de convenções em que nos movemos como autómatos comandados por um protocolo, quantos de nós, mulheres ou homens, não teríamos vergonha de afirmar os nossos sentimentos como o fez aquela velhinha, que abriu na sua sala uma janela a ponto-cruz para berrar a plenos pulmões, para que todos a ouvissem, o seu amor?



“O nosso amor é lindo”. Pois é. E não chore, prima: continua a ser. Contrariamente à tanga que o padre vos deu, não há morte que vos separe.

1 comentário:

PW$$$ disse...

Gostava de escrever assim.
Poesia em prosa é uma arte.
Haja quem a partilha e reparte,
Para alegria dos outros e de mim.


Abçs.