domingo, março 14, 2010

A urbanização do caneiro

Num destes dias de chuvinha mais grossa, daquela que quase não motiva ingleses e flamengos a abrir o guarda-chuva mas que em Portugal instiga a Protecção Civil a declarar um alerta laranja ou cor que o valha, encontrei-me empecilhado no trânsito a ouvir na rádio o rosário de desastres húmidos que de norte a sul a “intempérie” provocara.

Lamentava-se o locutor, em tom de “que inesperada desgraça”, por em Amarante os proprietários de um empreendimento recente, a Urbanização do Caneiro, andarem de galochas a salvar os pertences que a subida das águas ameaçava.

Eis uma pequena notícia que diz muito sobre este nosso cantinho. Se a urbanização está num caneiro, de que estavam à espera? Qual é a surpresa? Por definição, um caneiro é um ponto baixo por onde a água vai tender a querer passar. Se não a deixarem, acumula-se. Um fenómeno utilíssimo na construção de barragens. Por isso, morar na Urbanização do Caneiro não há-de ser muito diferente de habitar no Casal da Beira do Precipício Deslizante ou na Quinta do Furacão. E não muito mais tranquilo que viver em Sadr City, em Bagdad, ou na favela do Alemão, no Rio. Cedo ou tarde, vai dar raia.

Poderá surpreender o muito distraído como raio alguém autorizou alguém a construir despreocupadamente em cima dum caneiro. Mas só mesmo os mais distraídos. Em Portugal, edificar em leito de cheia tornou-se uma tradição quase tão venerável como estender calçada portuguesa. Provavelmente porque nas câmaras anda tudo do avesso, dos incentivos implícitos no modelo de financiamento à pouca severidade com que são fiscalizadas. Sou daqueles que tem muitas reservas quanto ao modo como, a seguir à revolução, se juntou à palavra “autárquico” a palavra “poder”. Quase quarenta anos depois, ainda não se fez o balanço da obra autárquica. Mas no dia em que se fizer cheira-me que se vai concluir que vão ser precisos um ou dois séculos – ou um terramoto de grau nove – para pôr a coisa no são, no que a urbanismo se refere.

Por causa desta construção desenfreada das autarquias nos sítios mais incríveis, a água em Portugal deixou de ser um corpo grave. Cá, ao mínimo aguaceiro, as águas sobem em vez de descerem como o tio Newton tinha mandado. Graves, graves, só mesmo as consequências.


Passados dias deste aquático incidente, no mesmíssimo concelho de Amarante, um tipo viajava tranquilo da vida no IP4 quando levou com um viaduto inteiro em cima, que estava a ser betonado nesse exacto momento. Morreu.

No dia seguinte, o artigo do Público noticiando o desastre começava com esta pérola: “A inesperada queda da estrutura do viaduto sobre o IP4 não só apanhou toda a gente desprevenida como deixou toda a gente sem explicações.” A jornalista chama-se Luísa Pinto e falhou manifestamente a vocação. A produzir coisas destas deveria estar a escrever textos para os Gato Fedorento ou para os Contemporâneos. Felizmente, ainda não chegámos à fase em que quando se betona um viaduto toda a gente está prevenida e à espera que ele cá venha parar abaixo. Mas já andámos mais longe.

A quantidade de acontecimentos deste género ou de semelhante calibre que ocorreram em anos recentes tornou-se escandalosa. Não há muito tempo, numa obra da Brisa ruíram duas betonagens de viadutos no espaço de uma semana. A CREL, a principal via periférica da orgulhosa capital do Império, encontra-se interrompida há semanas por causa de um talude que decidiu acampar inteirinho nas seis faixas de rodagem. Já para não falar da ponte de Entre-os-Rios. Em tempos, os recordes da engenharia civil portuguesa mediam-se em metros de vão vencidos e pelas dificuldades tecnológicas superadas. Agora, contam-se em vidas perdidas e toneladas de destroços.

O que explica isto? Pelas declarações dos “soi-disant” responsáveis, começo a ter a impressão que a culpa tem origem divina. Por vezes do São Pedro que manda chuva num país que projecta obras com vocação solarenga. Outras vezes, da Virgem Maria, em quem o pessoal se fia e que descura escabrosamente a confiança nela depositada. De acordo com os resultados mais recentes, fico com a sensação que o missal mariano substituiu as tabelas técnicas no estirador dos projectistas.

Esta minha desconfiança é confirmada pelas declarações de um tal António Moreno que preside ao Instituto Nacional de Infra-Estruturas Rodoviárias, organismo estatal suposto zelar pela qualidade e segurança da nossa rede viária. Afirmou este sábio que “ninguém, em engenharia, pode garantir a cem por cento que não haverá acidentes”. Se calhar não, mas eu, que sou engenheiro, nunca apanhei no Técnico nenhum professor com tão filosófica abertura de espírito. Lembro-me, numa cadeira de Mecânica de Materiais, de ter calculado uma estrutura do tipo destas de Amarante, que não suportaria a carga que vinha no enunciado e que ruiria se fosse construída. O tacanho do assistente chumbou-me com sete e mandou-me voltar em Setembro para a segunda época, com as ideias mais claras. Eu ainda tentei explicar que ninguém, em engenharia, pode garantir a cem por cento que não haverá acidentes mas ele achou esse género de debates mais próprios da Faculdade de Filosofia, onde se discutem questões ontológicas mas onde graças a Deus não se assinam projectos.


No momento do “acidente”, não houve tornados nem terramotos. Aquela cangalhada veio abaixo a dois terços do processo de betonagem. Como um factor mínimo de segurança seria da ordem dos cinquenta por cento, dado estarem a passar seres vivos por baixo na altura da operação (nenhuma alminha se lembrou de interromper o trânsito), contas feitas nas costas de um envelope permitem concluir que a estrutura de suporte não aguentou nem metade da carga que devia.

Para perceber o que se passou, talvez ajude saber que, num país onde as câmaras pedem um projecto para construir uma marquise ou mudar uns azulejos no muro de uma vivenda, não há regulamentos técnicos que rejam o cálculo de estruturas temporárias em obras desta magnitude, nem procedimentos de segurança que obriguem à interrupção do tráfego que possa ser afectado, melhor dizendo trucidado, por estas operações. E aqui, se calhar, dada a dimensão do disparate, não ficaria mal à Ordem dos Engenheiros opinar sobre o assunto.

Concluo com tristeza que este país anda, ele todo, uma urbanização no caneiro, à mercê da anarquia dialéctica entre as regras que não existem e aquelas que não se cumprem, das responsabilidades que de tão divididas tendem para zero, dos interesses que se sobrepõem ao bem comum e ao bom senso e que só a intempérie e a subida das águas conseguem travar. E pena é que a nossa engenharia, que no passado foi algo de que nos podíamos orgulhar, se arrisque a ir ela própria pelo cano, arrastada pela torrente.

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