domingo, março 07, 2010

O país da porta pequena

Farsa em três actos e um passanço final



1º Acto


Esta quinta dei uma aula no Técnico às oito da manhã. Entrei na portaria para buscar o comando do projector que uso para explanar a minha magna sapiência. O aparelhómetro flutua nas alturas, a cinco metros de pé direito, solidamente preso ao tecto por uma carapaça metálica que o envolve completamente, talvez para que o futuro da engenharia portuguesa não tenha a tentação de o gamar. Com tão robusto cinto de castidade à volta, não existe onda emitida pelo comando que o penetre. Normalmente passo os primeiros dez minutos de aula percorrendo a sala de pata no ar e comando na mão, carregando furiosamente no “on”, rezando para encontrar o ângulo aleatório e exclusivo que porá a maquineta a ronronar.


Os alunos, compungidos, tentam dar uma ajuda: “Professor! Parece-me que nesta sala é ao pé da última cadeira da fila de trás”. Cada sala de aulas, de entre dezenas, possui o seu sítio mágico onde a persistência do Homem vence as leis da Física que asseguram que uma barreira metálica perturba um feixe electromagnético. Perde-se tempo e dinheiro: minutos vezes pessoas vezes número de aulas vezes o custo unitário desta gentalha toda, olhando ansiosa para o tecto como quem espera um milagre, apesar de estudar numa das catedrais do racionalismo científico em Portugal. Com esse dinheiro comprar-se-iam muitos projectores, se por acaso algum fosse roubado.


Às vezes perco a paciência e atiro de voo o comando para a mole de estudantes, prometendo um valor extra na nota final àquele que conseguir. Perfeitamente legítimo e até pedagógico: a sociedade costuma tratar como heróis os que estão no sítio certo à hora certa para realizar tarefas quase impossíveis.


Enquanto eu preenchia o formulário para levar o comando (não vá um docente lembrar-se de se locupletar com tão útil objecto), apareceu um colega a queixar-se:


- Vou dar aula no anfiteatro 5 e a porta está fechada.

- Mas a porta pequena de trás está aberta, senhor professor! A minha incumbência é só a porta pequena!


Havia greve nesse dia e o outro porteiro faltara. Percebi então que cada um deles tinha sua responsabilidade e não sei se sua chave: havia o porteiro da porta grande e o porteiro da porta pequena, ambos perfeitamente cientes dos limites da sua “job description”.


Quando finalmente recebi o comando, o porteiro (da porta pequena) revelou-me com ar satisfeito: “Hoje já tem pilha, professor”. Realizei que me deveria considerar feliz por me passarem para a mão um comando que funcionava. Pelo menos iria poder tentar ligar o projector. Chegado diante da sala, o magote de alunos avisou em coro que a porta não abria. Subi as escadas laterais e verifiquei que a portinha do topo do anfiteatro estava apenas encostada. Chamei a malta e entrámos pela porta pequena, em fila sorrateira. Eles sentaram-se e eu comecei a dardejar de comando na mão, perante a indiferença electrónica do projector.



2º Acto


No início de Fevereiro tive o meu primeiro embate com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o afamado SEF. Um dos meus filhos, o de dezassete, viajava para o México em paródia de finalistas com o resto da sua turma. Na mesma semana, viajei eu com o mais pequeno até à Bélgica e à Holanda, apenas os dois porque a minha mulher não podia tirar férias nesses dias.


Começou então a saga das autorizações de saída a assinar pelos pais. Para o mais velho, punha-se a questão do “acompanhante” e do “destino”.


A minuta de autorização constante do “site” do SEF incluía:


“na companhia de* ____, com o BI __, etc.” e um “para __________(país(es)/cidade(s) de destino) pelo período de* _____(dias/meses)”.


Em baixo da minuta, explicava-se que o asterisco significava que se devia preencher “em caso de necessidade”, fosse lá o que isso fosse. Ora o meu filho viajava em regime de turba desorganizada, sem acompanhante responsável. Na agência de viagens disseram-lhe que – em princípio, claro está – a autorização não precisava de referir nem acompanhante nem destino. Aparentemente não havia necessidade.


Só que quando cheguei à notária para reconhecer as assinaturas, esta achou que sem acompanhante havia risco de o rapaz ficar em terra. Citou um caso recente que lhe ocorrera, em que uma moça de dezasseis anos fora barrada no aeroporto, apesar de autorização em devida forma. Sugeriu adicionar uma frase nova à minuta, da sua lavra, que expressamente referisse que o deixávamos viajar sozinho. Fui à procura das muitas leis. Originalmente, havia obrigatoriedade de acompanhante, mas um decreto-lei posterior tornara-o facultativo. Perante os receios da notária, perante as certezas da lei, e não fosse algum funcionário do SEF embirrar que a sacrossanta minuta não tinha sido respeitada na íntegra, acabei por pagar duas autorizações, uma de cada paladar.


Com o mais pequeno, que saía só comigo, as dúvidas agravaram-se. O “site” do SEF afiançava que filhos de pais casados podiam ir com um dos cônjuges sem autorização do outro. Mas uma colega minha, casadinha da Silva e viajando com o marido e com a autorização e com tudo, vira a sua filha ser interrogada pelos zelosos oficiais, que lhe perguntaram, sem que ela entendesse porquê, se conhecia aqueles senhores. Como a página do SEF garantia uma coisa e o pessoal do SEF fazia outra, decidi tirar teimas ligando – erro fatal – para o “call-center” do SEF.


Atendeu-me uma inconfundível voz oriental:


- SEFi, bom díá, fálá Yôko.

- Bom dia, queria confirmar que, sendo eu casado e indo viajar com um filho menor, não preciso de autorização escrita da minha mulher.

- Cómó sinhô, não entendu.

- Se para viajar para o estrangeiro com um filho menor preciso de apresentar autorização escrita da minha…

- Não compriendu sinhô! O sinhô é putuguês?


Apeteceu-me dizer “eu sim, mas parece que sou o único”. Mas contive-me e repeti pausadamente a pergunta, com uma paciência de chinês. A Yoko finalmente compreendeu:


- Ah! Não pódi!

- Como?

- Não pódi!

- Mas na “Internet” o SEF diz que se for casado posso.

- Um mumentu!


Senti aquele vácuo sonoro de quando se é posto “off-line”. Passados dois minutos, ouvi um estalido e reapareceu a Yoko:


- Pódi!

- Perdão?

- Pódi!

- Tem a certeza?

- Pódi!

- Muito obrigado e boa tarde.

- Pódi!


Desliguei, ainda assim aliviado por não me ter calhado um operador de pronúncia ucraniana ou kibunda. Mas não fiquei muito tranquilo com a volatilidade de opiniões da Yoko. Telefonei para o atendimento ao cliente da TAP. Exposto o problema, a pessoa que atendeu aconselhou-me a levar uma autorização. Retorqui que o “site” do SEF informava que não era necessário, ao que o interlocutor, quase paternal, comentou:


- Convém levar. Eles às vezes pedem.


Lá marchei eu para o cartório notarial, para mais um reconhecimento. Ao todo foram três vezes vinte euros e muitas horas, por três papéis dos quais só um a lei o exigia.


Obviamente, na hora da verdade, o SEF não pediu papéis a ninguém e pudemos embarcar na paz do Senhor. Ao fim e ao cabo, a Yoko tinha razão: pódi!



3º Acto


Esta foi há mais tempo – e mais triste.


Na sala de espera da radioterapia do hospital de Santa Maria, mínima, soturna, atravancada pelas macas elevadas onde jazia gente que a morte cobiçava, havia uma televisão. Sempre ligada, debitava em volume alto, inapagável e indiferente ao sofrimento das pessoas que ali esperavam, que pediam recolhimento e não a voz estridente do Vítor Mendes a apregoar cafeteiras e atoalhados turcos.


Só que essa têvê não tinha imagem, apenas um ziguezaguear de cores. A antena exterior quebrara e não havia orçamento para a reparar.


O som abominável daquele aparelho avariado lembra-me, ainda hoje, a orquestra que tocava em Auschwitz enquanto o fogo crepitava nos fornos.


Um dos homens deitados nessas macas era o meu pai, que tanto amava Portugal. E que não merecia, ele como os outros, levar como última imagem desta terra sem desculpa uma sala de espera aos caídos com uma televisão que, tal como o próprio país, fazia de conta que funcionava.



Passanço final


Tudo isto seria cómico se não fosse trágico, costuma dizer-se.


São apenas três exemplos de um país que se compraz a fingir.


A fingir que há organização porque cada porteiro abre sua porta. A isto chama-se sub-emprego e é típico de países do terceiro mundo.


A fingir que há leis quando afinal a necessidade de autorizações de saída é ditada pela boa vontade ou pelo mau humor do funcionário do SEF que nos olhe desde a guarita.


A fingir que há atenção pelos utentes (palavra tão portuguesa que significa vítima do sistema) quando o que se passa é desprezo do mais profundo.


Depois admiram-se que apareçam défices malucos. Um país onde existem porteiros da porta pequena há-de sair por essa mesma porta.


A bandeira do Brasil tem no centro uma fita que diz “ordem e progresso”. Cá, podiam aproveitar o centenário da instauração da república para colocar na bandeira, à volta da esfera armilar, uma tarja onde se lesse “granel e pagode”.

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