sábado, março 27, 2010

O “homo republicanus parvensis”

A cegarrega que os republicanos norte-americanos andam a fazer à volta da reforma do sistema de saúde prometida e cumprida por Barack Obama traz à colação uma das mais fascinantes questões da antropologia actual: será que sobrevivem ainda hoje à face do planeta, hominídeos aparentados com o “homo sapiens” – mas não iguais? É que não consigo arranjar outra explicação para o comportamento dos “Tea partys”, das turbas que ameaçam os congressistas, das Saras Palhinhas e dos senadores do partido do elefante, que não a daquela malta sofrer de um cérebro morfologicamente (e funcionalmente) diferente do resto da humanidade.

Reparem na ironia: andam doutorados em arqueologia no deserto do Gobi e nos recônditos da Sibéria à procura de vestígios de hominídeos diferentes, empoeirados, torrando à soleira ou tiritando de briasco, espanejando pedrinhas enfiados em buracos, dormindo desconfortavelmente em tendas de campanha, a comer rações de combate; ficam todos contentes quando descobrem uma lasca de maxilar; e afinal, calhando, podiam encontrar espécimes inteiros e tribos completas, vivos ainda por cima, nas ruas de Houston ou de Atlanta.


Comecemos por perceber do que é que estamos a falar.

Hoje em dia, cerca de 15% da população americana não tem acesso a sistemas de saúde. Este “não ter acesso” não é bem o mesmo que não ter acesso a uma festa na Quinta da Matinha. Em certas circunstâncias significa morrer por falta de tratamento adequado. Vendo isto com os olhos que temos do lado de cá do Atlântico (e da civilização), constataríamos que 45 milhões de seres humanos, de qualquer idade, podem muito bem bater a bota que nem uns cães sem que isso lá tire o sono a muita gente.

Adicionalmente, se repararmos na distribuição étnica destes desprotegidos, verificamos percentualmente que existem três vezes mais hispânicos, duas vezes mais negros e uma vez e meia mais asiáticos que brancos. Ou seja, “se hablares así” nas ruas de Miami, não tens interesse em ficar muito doente. Há também aqui uma certa questão de equidade.

Ora o que propôs Obama, que tanto escandalizou a América campónia? Quadruplicar os impostos? Obrigar médicos a trabalhar à borla com uma pistola apontada? Criar um serviço nacional de saúde? Não. Baseando-se no actual quadro de seguros, propõe-se aumentar cerca de 10% o orçamento federal da saúde para abranger todos os que dele não fazem parte. Comparado com os mega-sistemas sociais norueguês ou suíço, uma verdadeira mariquice. E, no entanto, milhões e milhões de americanos reagiram como se sabe, criando uma das maiores barreiras de propaganda e agitação política que o Partido Republicano erigiu desde o magno caso da estagiária, do charuto e da mancha no vestido. Como explicar isto?

Por um lado, tenho a impressão que há um certo desconforto em que um preto tenha sucesso numa tarefa complicada onde Truman, Nixon e Clinton, antes dele, falharam.

Mas atentando num dos cartazes que contestatários agitavam frente ao Capitólio, percebe-se a razão talvez mais profunda. Rezava assim: “Americans don’t redistribute wealth. They earn it”.

Não coloquei na frase anterior o verbo “rezar” de forma inocente. A quase totalidade destes contestatários acham-se muito cristãos, não faltam à missa ao domingo e consideram o ateísmo algo de gravíssimo. Mas quando toca a caridade, tá quieto! Não me parece por isso que tenham folheado extensivamente o Novo Testamento. E pergunto-me se, nas suas congregações dominicais, também fazem manifestações destas em redor da caixa das esmolas, abominando e pontapeando tão demoníaco objecto.

Voltando aos tais 45 milhões e resumindo, para o grosso do Partido Republicano, que representa uma quase metade da América, os gajos que se lixem e qualquer tentativa de solidariedade social na sua direcção vem da costela esquerdista e totalitária do actual presidente. Mais: a ideia é mesmo deixá-los de fora.


Isto a nós cá na Europa pode causar uma certa estranheza, porque já ultrapassámos esta fase mental há século e meio. Com o arranque da revolução industrial em Inglaterra, a questão da pobreza tornou-se um problema relevante, prático para os políticos e teórico para os filósofos. A visão mercantilista considerava importante que os pobres se mantivessem pobres, porque só assim poderiam realizar um trabalho honesto sem pedir demais. Um dos mais influentes pensadores britânicos no final do século XVIII, Bernard Mandeville, comentava que “para fazer uma Sociedade Feliz, é requisito que grandes números sejam Ignorantes e também Pobres”. Valha-lhe a franqueza.

No entanto, as hordas de indigentes que vagueavam pelo reino e também o exemplo na altura recente da Revolução Francesa levaram as elites a inquietar-se sobre a questão dos “unprofitable poor”. Algumas das respostas a esta inquietação deixam-nos hoje um sorriso amarelo: quando Richard Arkwright, industrial de fiação, começou a usar crianças na sua fábrica, “por terem dedinhos mais activos e se adaptarem melhor à disciplina da vida fabril”, tal medida foi aplaudida como filantrópica, porque permitiria aliviar a condição dos pais, os tais “pobres não-lucrativos”. E verdade se diga que, ao longo do século XIX, quando o Reino Unido foi passando sucessivas leis regulando ou eliminando o trabalho infantil, estas tiveram a oposição não só de membros da Câmara dos Lordes imbuídos de um liberalismo que ainda anda por aí, que achavam que tais medidas feriam os direitos das crianças porque estas podiam querer mesmo trabalhar, mas também de muitos pais a quem a maçaroca dava jeito.

O problema da pobreza mereceu as atenções de todos os primeiros grandes pensadores económicos, de Adam Smith a David Ricardo, de Parson Malthus a Karl Marx e a John Stuart Mill. E no final, fosse por razões tácticas das classes dominantes (o mesmo Mandeville reconheceu que seria “prudente aliviar, embora uma loucura curar” as necessidades dos pobres), fosse pela acção e exemplo de utópicos como Robert Owen ou de activistas como Richard Oastler ou Lord Shaftesbury, fosse pela dinâmica dos movimentos de trabalhadores e a sua absorção pelo tecido social, fosse simplesmente porque as sociedades ganharam vergonha das condições horrorosas de trabalho e de vida das massas pobres, fosse provavelmente por tudo ao mesmo tempo, a verdade é que a condição das camadas mais desmunidas foi progressivamente melhorando e dignificando-se em toda a Europa industrializada. Simultaneamente, tornou-se um dado adquirido e um valor comummente aceite que as sociedades devem redistribuir razoavelmente a riqueza gerada e ser solidárias com os mais necessitados. Tais noções encontram-se aliás na génese da União Europeia.

Não quero com isto dizer que por cá tenhamos resolvido a questão da pobreza. Longe disso, ainda há muito – tanto – pela frente. Só que não achamos natural nem porreiraço que exista, como muitas dezenas de milhões de norte-americanos fazem, e não ameaçamos de morte os deputados que aprovam leis para acabar com ela.

Na América, metade da população ainda não percebeu estas noções básicas. E não se trata apenas de um problema de massas ignorantes. Trata-se sobretudo de cúpulas ignorantes ou cínicas ou ambas, que apelam ao mais básico e reles que há nas pessoas e que perdida a razão da razão recorrem às razões do medo. Sobre isto, sugiro-lhes que leiam o texto seguinte de Paul Krugman no Herald Tribune da última terça. Uma leitura simpática, já que Krugman é um economista que possui duas coisas que nem todos os economistas têm: um prémio Nobel e sentido de humor. Particularmente notável quando cita as acusações dos Republicanos aos Democratas de tácticas totalitárias e diz que acha que eles se estão a referir a um processo conhecido como “votação”.

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Voltando ao ponto de partida, continuo perplexo com o que vai na cabeça dessa gente. Será que têm a mesma mioleira que nós? Ou serão mesmo uma variante misteriosamente sobreviva do “homo sapiens sapiens”, com um sistema límbico mais atrofiado, menos sinapses entre aqueles neurónios ou outro encalhanço qualquer? Eu sei lá! Só sei que ter esse pessoal todo a votar num país que é a maior potência mundial não é muito tranquilizador para o resto da humanidade, como se viu pelo mandato glorioso do rapaz George W.

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