domingo, novembro 16, 2008

McObama

Until the colour of a man's skin
Is of no more significance than the colour of his eyes
Me say war.

Bob Marley, in “War”

Ontem, numa tabacaria do aeroporto de Barajas, os escaparates tinham uma só cara, a de Barack Obama, reproduzida até ao enjoo em grandes planos de papel acetinado. A imprensa mundial rendia-se, mais à evidência do que ao homem: século e meio depois da guerra de secessão ter acabado com a escravatura teórica, meio século após a luta de Luther King contra o “apartheid” sulista, Obama vai sentar o seu “black ass” na cadeira de “presidente do mundo”, como bem titulava o “Der Spiegel”.

Para o bem e para o mal, a elevada taxa de melanina na epiderme de Obama acabou por ser factor dos mais relevantes nas análises pré e pós-eleitorais. A nova cor do presidente valeu por si só como mensagem de mudança num país e num mundo bastante necessitados de mudança. Mas não foi muito notado, por exemplo, que os americanos tivessem eleito um doutorado em Direito por Harvard, facto para mim com algum simbolismo ao fim de oito anos em que andaram pelas ruas da amargura, de Guantanamo ao edifício do Congresso, o primado da Lei e os direitos fundamentais que os pais fundadores tanto recomendaram.
Mas, já que falamos de cor de pele, seria bom que a eleição de um presidente negro no país mais poderoso do mundo servisse para normalizar o uso das palavras “preto” e “negro”, passando-se a poder usar preto (ou branco) como se faz com louro, moreno, alto ou magro: apenas como a descrição de uma característica física, sem mais.

Detesto aquelas expressões em teoria politicamente correctas, como “pessoa de cor” ou “idoso”, mas que, no seu âmago, são essencialmente depreciativas, muito mais do que dizer, com naturalidade, preto ou velho. Que são aquilo que as pessoas são. E sendo-o, ou o seu contrário, podem ser bons ou maus seres humanos, porque o físico nada tem a ver com o moral. A expressão “de cor” aplicada a um negro nem faz sentido: fisicamente, preto é ausência de cor e branco a saturação de cor. Só que este tipo de eufemismos invade a nossa sociedade e é inculcado às nossas crianças. Lembro-me de uma vez que assistia na televisão a um jogo de futebol, ao lado do meu filho mais novo, que teria uns quatro ou cinco anos. A dado momento, a câmara focou-se na cara espantada de um jogador de um negro retinto, o suor brilhando sob os holofotes, que acabara de ver o cartão vermelho. O meu miúdo mirou para o ecrã e soltou um “não gosto deste tipo”. Pareceu-me sentir ali um racismo latente e repreendi-o: “não se diz isso só por o homem ser preto”. Do fundo do sofá, ele lançou-me um olhar redondo e esdrúxulo, e largou, num tom seco de censura: “não se diz preto, diz-se senhor de cor”. E juro que não fui eu que lhe ensinei isto.

Dito isto, fiquei satisfeito que o sistema político americano tivesse conseguido gerar, desta vez, dois candidatos interessantes. É bom que as democracias fomentem o aparecimento dos melhores. Não exactamente igual ao que temos tido em Portugal, onde o que tem aparecido mina a confiança do pessoal no sistema. Sobre este tema do papel de elites meritocráticas num sistema democrático, leia-se o interessante “O futuro da liberdade”, de Fareed Zakaria, editor de política da revista Newsweek.

O nível de ambos viu-se nos discursos da noite eleitoral. Obama teve um discurso envolvente, carismático, empenhado, grandiloquente, entendendo perfeitamente o valor dos símbolos e a historicidade do momento. Sente-se que é um grande político e que poderá fazer, se se rodear da gente certa, uma boa presidência, de que o mundo anda bem necessitado. Mas gostei mais do discurso de McCain, de uma hombridade, de um cavalheirismo e de um patriotismo positivo como raramente ouvi. A democracia também se faz da aceitação da derrota – esta é mesmo uma das características que a diferencia de outros regimes – e serve-se um país ganhando ou perdendo. McCain mostrou ser um senhor, que não merecia as manadas de básicos que constituem parte significativa do eleitorado republicano e de que Sarah Palin constitui acabado exemplo.

Uma última palavra, de apreço para os americanos e para a lição de abertura que deram à Europa. Parece, ainda hoje, impossível que um alemão de origem turca seja eleito chanceler na Alemanha, ou que um português filho de angolanos se torne cá presidente, ou que um tipo chamado Ahmed chegue ao Eliseu. Mas os Estados Unidos, uma sociedade que eu considero ainda muito imperfeita e longe de ser a “maior democracia do mundo”, como alguns dizem, têm uma casa dos representantes e um senado com filhos de cubanos, de portugueses, de coreanos, brancos, negros, amarelos, etc. E um presidente de uma cor que ainda há dois anos se diria ser impossível.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Dasssss! Deste gostei!!!
Este deu gozo ler.
Andavas um bocadinho chatinho ultimamente ò gaijo...