quinta-feira, novembro 27, 2008

Os axiomas

Este “post” retira alguma inspiração da monumental calinada da Dra. Ferreira Leite sobre uma hipotética suspensão semestral da democracia, em prol de “arrumar a casa”, mas mais ainda de certas frases ouvidas a amigos, um pouco suspirantes por autoridade.


A boa democracia é como a boa matemática. Desenvolve-se sempre em coerência com alguns princípios básicos, que não conseguimos provar, mas que tomamos como verdadeiros. Na matemática, chamam-se axiomas. Com meia-dúzia deles, deduzem-se inúmeros teoremas, páginas e páginas de resultados, grossos volumes de conhecimento. Mas se, em qualquer momento, o matemático verificar que uma das suas deduções é incoerente com qualquer um dos axiomas, sabe de ciência certa que se equivocou: beliscar a autoridade dos axiomas implica a ruína de todo o saber que deles emana. Este é, aliás, um poderoso e muito usado método de prova. Se uma hipótese for coerente com todos os axiomas, poderá eventualmente estar certa. Se contrariar nem que seja, apenas, um deles, está errada de certeza.

Na matemática, os axiomas são quase sempre evidentes, tão evidentes que nos parece estranho como poderiam sequer ser postos em causa. Por exemplo, se quisermos definir o conjunto dos números reais, o conjunto infinito de números que para nós é o mais intuitivo, e com eles elaborar muitos resultados de grande utilidade para construir aviões ou produzir electricidade, temos primeiro que estabelecer como axioma que um é diferente de zero – na linguagem matemática, que os elementos neutros da adição e da multiplicação são distintos. Sem avançar à cabeça esta proposição tão singela, que um não é igual a zero, não construiríamos os números reais e as contas de somar e multiplicar tais como as conhecemos. Construiríamos outra coisa qualquer, se calhar mais exótica, mas porventura menos útil.

A Democracia, com dê grande, vive igualmente dos seus axiomas: que todos nascemos iguais em dignidade e direitos; que temos direito à vida e à segurança; que temos direito à liberdade, de pensamento, de opinião, de religião, de associação; que a tortura e os castigos cruéis, inumanos e degradantes são pura e simplesmente inaceitáveis; que todos somos iguais diante da lei; que todos temos o direito a uma defesa, se acusados, e somos presumidos inocentes até prova em contrário estabelecida para além de dúvida razoável; que todos temos direito de participação na definição do modo de funcionamento da nossa sociedade; que os poderes legislativo, executivo e judicial que resultam dessa definição devem ser independentes e mutuamente controlados; e mais alguns …

Tal como os seus pares matemáticos, estes axiomas também nos parecem, à maioria de nós, de simples bom senso. Por alguma razão terá sido que, ao referir-se a vários deles, as cinquenta e seis pessoas que, em quatro de Julho de 1776, assinaram a declaração de independência dos treze estados unidos da América inscreveram nela a seguinte frase: “We hold these truths to be self evident”. “Auto-evidente” parece-me uma feliz adjectivação.

Sobre estes axiomas, as sociedades democráticas estruturam-se e criam hábitos, desenham organizações e desenvolvem processos, tudo regido por vastos conjuntos de legislação, muitas vezes confusa ou hermética. Tal como na matemática, se o resultado de uma lei ou de uma acção qualquer de um qualquer poder contrariar um dos axiomas, nunca será este último que estará errado: o que tem que ser descartado é essa lei ou acção. Se um decreto interferir com a liberdade de opinião, ou permitir uma forma de tortura, ou violar a presunção de inocência, é esse decreto que atenta contra a Democracia. Não são, evidentemente, a liberdade de opinião, o horror à tortura ou a presunção de inocência que põem em causa a Democracia.

Por isso, quando o verboso raciocínio de um político, ou o nosso próprio, nos levar a uma posição incompatível com um dos axiomas, não incorramos no pecado de orgulho de proclamar que estamos certos e os axiomas errados. Aceitemos candidamente o nosso engano, como o matemático tem que fazer quando o teorema em que tanto investiu se virou contra as verdades básicas que construíram o universo em que ele trabalha.


Por vezes, a complexidade, a imperfeição, a incerteza da vida levam-nos a pensar que os valores mais profundos da Democracia talvez pudessem ser aqui e ali contornados, adaptados, suspensos ou amolecidos. O facto de a nossa existência ser, por essência, arriscada pode fazer com que, em tempos mais cinzentos, nos pareça mais segura a tentação totalitária. Mas não esqueçamos, então, as palavras de Benjamin Franklin, um dos cinquenta e seis acima referidos: aquele que aceita pôr a sua segurança acima da sua liberdade, não merece nem uma, nem outra. E, como a História demonstra, acaba por perder as duas.

2 comentários:

Cristina Rodo disse...

Hum...

Guess disse...

O problema e que democratia e ma mathematica. Escolhem-se os axiomas, nao por serem os mais logicos mas por serem os mais agradaveis e politicamente correctos. Dai e claro que ajam imperfeccoes, incoerrencias, irregularidades nos calculos. Nossoes ultrapassadas como moral impoeem barreiras que impedem a existencia do resultado correcto. Claro, e errado declarar uma porcao da populacao inegal a outra, que seja num sentido ou no outro; mas nao nos deveria impedir de aceitar esse resultado se for a conclusao de uma equacao logica.