sábado, abril 07, 2012

As crianças que não faz mal que morram

“Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume.”

Eça de Queirós, in “Bilhetes de Paris”


Num dos seus bilhetes de Paris, Eça discorre com a sua prosa inigualável sobre o modo como nos emocionamos mais com o pequeno sofrimento da vizinha do que com a grande catástrofe ocorrida nos antípodas, com mortos aos milhares. Muito positivista, chega a enunciar uma lei da física a propósito, afirmando que a distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som, enfraquecendo-o até que se some.

Será mais uma lei humana do que uma lei da física, porque continua hoje tão válida como em vida do escritor. Vê-se no modo como se alinham as notícias: um deslizamento de terras que desaloje uma família algarvia merece por cá honras de primeira página, enquanto um descarrilamento de uma composição apinhada em Bombaim, morrendo passageiros às dezenas, dá para uma curta nas folhas interiores. Lembrei-me desta lei e deste texto, que eu estudara nas aulas de Português pelos meus treze anos, a propósito de desgraças recentes.

Março de 2012 foi um mês mais nefasto do que o habitual para esta pobre humanidade. No princípio do mês, um soldado americano entrou de noite em três casas de Kandahar no Afeganistão e matou dezassete pessoas, entre as quais nove crianças. A 14, vinte e oito pessoas, entre elas vinte e duas crianças belgas, morriam num acidente de autocarro num túnel da Suiça, quando regressavam de férias escolares na neve. E a 19 um homem matou um professor e três crianças numa escola judia de Toulouse.


A morte de uma pessoa traz sempre dor a quem é próximo e pelo menos perplexidade diante da fragilidade da nossa essência a quem está mais distante. Isto até quando falamos de pessoas que viveram uma existência plena e longa, cujo fim resulta sem mais de uma lei da vida que todos racionalmente compreendemos e aceitamos, mesmo que a contragosto. Mas a morte de crianças marca-nos mais, muito mais. É ilógica e é injusta. Mexe por mimetismo com o melhor e mais profundo vínculo que como espécie desenvolvemos, que é a relação com um filho. De uma certa maneira, qualquer criança que morra é uma parte de nós que morre também. E se na morte de um velho podemos encontrar consolo na memória da vida vivida, na de uma criança não conseguimos deixar de sentir a derrota por um futuro que não se cumpriu, por uma promessa que poderia ser a melhor hora da humanidade e para mal dos nossos pecados já não o será. Por estas razões, Março foi mês para nos comovermos com isto tudo.

Nestes acontecimentos, funcionou um pouco nos noticiários a lei do Eça. Vinda de longe, do Afeganistão, de um sítio esquecido pela fortuna, a matança dos nove pequenos afegãos fez notícia mas não abriu noticiários, enquanto a das três crianças francesas e o brutal acidente que levou os vinte e dois belgas, já mais próximos, já na Europa, mereceu primeiras páginas e abertura de telejornais, análises e explicações, imagens do luto das terras e das lágrimas dos amigos que perderam amigos.

A lei do Eça, se pensarmos bem, é mais uma lei da imperfeição do que da perfeição humana. Não faz sentido que sintamos mais a perda do pequeno Jean do que a do pequeno Ali, só porque uma ocorre a dois mil quilómetros e outra a vinte mil. Ambas são definitivas, ambas são infinitas e para gente de bem não há crianças de primeira e crianças de segunda. Sei que haverá certamente quem não pense assim mas este “post” não se dirige a essa escumalha. Talvez a lei do Eça seja uma defesa: perante a nossa incapacidade em suportar tanto sofrimento, arranjámos um mecanismo de filtragem, que nos protege de uma qualquer demência. Aceito portanto que sejamos assim, mas com alguma pena.

Nestes dias de Março, comecei no entanto a ler e ouvir coisas que já iam para além da lei do Eça e que essas já não consigo engolir sem um reflexo de vómito. Nos dois casos que tinham uma envolvente política, os políticos e sobretudo a imprensa deram em fazer uma destrinça no tratamento dos dois assassinos que na prática resultava na tal tese insuportável das crianças de primeira e das crianças de segunda, ou terceira, ou última.

Dizia-se que as crianças de França eram “vítimas de um terrorista”, enquanto as do Afeganistão tinham sido “mortas pelo soldado norte-americano”. O abuso e a manipulação da palavra “terrorista”, usada reles e selectivamente ao sabor das imbecilidades e das conveniências, tem sido uma chaga na política e na comunicação social ocidentais desde o onze de Setembro. Para a criança a quem apontam a arma à entrada da sua escola de Toulouse ou no seu quartinho de Kandahar, o terror é exactamente o mesmo. Para os pais sobreviventes condenados na mais dura das penas à memória dos filhos partidos e à imaginação do medo que eles terão sentido nesses segundos fatídicos e ao sentimento de culpa por não os terem conseguido defender, o terror é exactamente o mesmo. Para as comunidades vergastadas no seu âmago pelo ódio mais rasteiro, o terror é exactamente o mesmo.

 Enquanto ao “terrorista” se inquiriam ligações funestas, irmãos salafitas, derivas religiosas, viagens de treino aos santuários fundamentalistas, ao “soldado”  procuravam-se explicações racionais e razoáveis desculpas: o stresse da guerra, um acesso de loucura num bom pai de família, só faltando terminar o assunto com um “desculpem lá qualquer coisinha”. Mas para as lágrimas que correm ou ao futuro que se gorou, essas considerações fazem alguma diferença? Não poderíamos afirmar serem ambos os assassinos terroristas, sem perda de verdade? Será que os terroristas assassinam e os soldados desembestados só matam? Será que umas crianças são vítimas de terroristas e outras meros danos colaterais numa guerra que não pediram?


Não consigo tolerar este “doublespeak” que se apoderou do discurso ocidental, iniciado pelos políticos, amplificado pelos jornalistas e aceite pelos votantes. Posso até entender os primeiros, mas nunca os outros, o que nos inclui a nós. Se aceitarmos este género de conversa, se nos deixarmos manipular desta maneira pacóvia, já estaremos a ir muito para além da lei do Eça: estaremos a dizer com a maior das serenidades que há crianças que não devem morrer e outras que não importa que morram. Que um francesito rosado é precioso e que um afegãozito moreno é descartável. Isto é r-a-c-i-s-m-o, com todas as letras. Que os fins justificam os meios e que há causas que desculpam um tiro numa cara de seis anos e outras não. Isto é to-ta-li-ta-ris-mo, com todas as sílabas.

Pensem nisso e revoltem-se um bocadinho, da próxima vez que ouvirem alarvadidades dessas na vossa rádio ou têvê.