sexta-feira, abril 06, 2012

Os sãos e os loucos

Na quarta última, um homem quase octogenário saiu de sua casa, tomou o metropolitano até à principal praça da sua cidade, encostou-se a uma árvore e diante da multidão que fervilhava à hora de ponta sacou de uma pistola e despejou um balázio na própria cabeça. No bolso do morto, uma nota explicava que não queria deixar dívidas à filha.

Chamava-se Dimitris Christulas, era um farmacêutico reformado e a cena passou-se na praça Sintagma, em Atenas.

A nota que deixou dizia ainda que ele, não estando já em idade para pegar em armas, não encontrava outra solução senão dar-se um final digno, antes de ter que começar a procurar comida no lixo. No jornal onde eu li esta notícia, o circunspecto El Pais, um parágrafo associava este evento ao aumento das doenças mentais e dos suicídios na Grécia desde o início da crise. Lamentavelmente, mas também expectavelmente, o jornalista não mostra capacidade para perceber o gesto daquele homem. Ele não era certamente louco. Pelo contrário, se algo ressalta nele é uma lucidez extrema, uma percepção clara de que há limites que não se passam sem perder a condição humana e que se o risco existe de esses limites serem quebrados então algo há que fazer. Por isso o seu gesto está a arregimentar gregos e o poder, assustado, procura minimizar os danos.


O jornalista não mente no entanto quando nos diz que a insanidade está a crescer. De facto há os sãos e há os loucos. E hoje até são muito mais os que são loucos do que os que são sãos. Loucos os jornalistas que preferem discorrer sobre estatísticas do que realçar a dignidade no meio da indignidade. Loucos os que vêem a democracia a estiolar às mãos do medo, às mãos dos expedientes, às mãos da soberba e nada fazem e, pior, nada pensam. Loucos os que julgam que se pode carregar indefinidamente para baixo e que a massa informe que desprezam tudo suporta e tudo suportará. A História mostra que nem sempre é assim e um dia o último empurrão gera a reação que a todos varre, loucos e sãos. Injustamente os sãos, com bastante justiça os loucos.

E esse momento de reação está mais próximo quando um, depois dois, depois muitos percebem que mais vale perder o medo do que perder a dignidade. E na Grécia sempre houve bons exemplos disto mesmo, desde o tempo em que Dienekes, um dos trezentos de Leónidas nas Termópilas, respondeu o célebre “Óptimo. Combateremos à sombra” quando lhe disseram que os arqueiros persas eram tantos que as suas flechas ocultariam o sol. Quando este espírito se apodera de muitos, temos 1383 ou 1776 ou 1789 ou 1848 ou 1968 ou 1989 ou a chamada “primavera árabe”, com o que de bom e mau trouxeram, para surpresa dos que pensavam que tudo podiam.

Se isso acontecer na Europa, por um lado terei pena, porque estava aqui uma coisa com potencial que foi mandada fora pela cupidez de meia dúzia e a cegueira de dúzia e meia. Por outro lado, quanto mais olho para esta União Europeia, mais vejo uma cave a precisar de uma limpeza de alto a baixo.

O senhor Christulas, antes de descer à praça Sintagma para o seu gesto definitivo, passou no seu senhorio e saldou a renda da casa. Pôde ir assim tranquilo, como naquela citação de Camilo de que o meu pai gostava, "como homem que devera e que pagara".


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