sábado, abril 28, 2012

EUA (IV) – Um país com medo

Na ponta sul de Manhattan, ali onde os holandeses começaram a construir em 1625 a sua Nova Amesterdão, as ruas abaixo de Wall Street ainda têm aquela geometria anárquica das velhas cidades europeias. Wall Street, onde hoje se fazem fortunas em “high-frequency trading” ou se afundam países ao toque de um teclado, deve o seu nome a ficar junto a uma paliçada que o governador Peter Stuyvesant mandou construir com medo dos índios. E assim começou uma história de medos.

Deambulamos por essas quase-vielas de prédios cor de tijolo, com ares de Mar do Norte, numa manhã de segunda-feira, feriado nacional, dia do Presidente. A folga esvaziara as ruas e parecia distante a azáfama de metrópole que nunca pára nas avenidas mais a norte, como se tivéssemos viajado um oceano e não apenas uma dúzia de paragens de metropolitano. Acabamos na Praça Peter Minuit, onde vamos apanhar o “ferry” para Staten Island, um cacilheiro local que vai e vem àquele subúrbio e que passa mesmo em frente à Estátua da Liberdade e a Ellis Island. Por isso – e por ser a única coisa à borla em Nova Iorque – transporta sobretudo turistas como nós, que vão até ao outro lado e voltam no seguinte e admiram a estátua de caminho.


Na estação fluvial, apinhada por uma multidão multilingue que espera o abrir das cancelas, os medos continuam lá: um cartaz alerta para que estejamos vigilantes e denunciemos coisas suspeitas às autoridades. Ora eu suspeito que deve haver autoridades que não batem bem da bola mas abstenho-me de denunciar, preferindo embarcar sem escândalo juntamente com o resto da marabunta. No interior do barco, no acesso às balustradas, outro cartaz já não alerta, suplica! “Ajudem-nos a combater o terrorismo! Se virem alguma coisa, digam alguma coisa. Liguem para o número XPTO”.

Subo ao “deck” e apoio-me na guarda para tirar umas fotografias do lado de Brooklyn. Sopra um vento grisante que me enregela os dedos. As gaivotas fazem razias, gritando. Para minha surpresa somos escoltados por um barco da guarda costeira, um “zodiac” com ar galáctico onde à proa um tipo coberto de um revestimento à prova de bala, com ar de Darth Vader, está em posição numa metralhadora fixa. Passo para a amurada do outro lado e lá está outro igualzinho, em apetrecho de combate. Seguem-nos lentamente, num passo soturno. Os passageiros apontam e comentam, momentaneamente distraídos da beleza do rio Hudson. Chegado o “ferry” à outra margem, voltam para trás e desaparecem. Ainda cheguei a pensar que seria um procedimento normal em qualquer travessia deste barco, mas no regresso já não vêm. Fico sem saber se acompanham pontualmente, de forma aleatória, ou se alguém viu alguma coisa e telefonou para o número XPTO da linha anti-terroristas maus.


Estes e muitos outros episódios e detalhes durante esta semana na América revelam uma sociedade amedrontada, obcecada pela pancada que levou a onze de Setembro, suspiciosa de um inimigo sem rosto e que se reconforta inabilmente com esta deriva autoritária que alimenta uma indústria de milhões. Um exemplo extremado disto mesmo ocorre nos aeroportos, na apresentação dos passaportes, em que os estrangeiros são tratados como gado perigoso, “scanados” e catalogados  por paquidermes alimentados a “big macs” que fazem perguntas supostamente esclarecedoras como “quando é que vai embora”. Isto debaixo de cartazes de boas-vindas. De cada vez que estou a passar a fronteira num país de terceiro mundo, com os formulários, as filas e os carimbos inúteis, faço por imaginar que poderia estar a entrar nos Estados Unidos e acalmo-me.

Sei pouco de matérias de segurança, mas sempre tive a impressão que este aparato securitário só impressiona quem vem por bem e não impede quem vem por mal. E pergunto-me muitas vezes se o objectivo principal não será exactamente o primeiro: intimidar o cidadão comum, instilar o medo, para mais facilmente exercer o poder. Gostaria que não, que tudo isto não passasse de estupidez pura, como a daquele folheto verde que se tem que preencher à entrada dos Estados Unidos que pergunta se cometemos crimes condenáveis pelo tribunal de Nuremberga. Tantas vezes me apeteceu responder:

- Claro! Fui eu! Para cem anos de idade estou bem conservado, não estou?

Mas nunca tive coragem para o fazer e ser recambiado no avião seguinte.

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