Na ponta sul de Manhattan, ali onde os holandeses começaram
a construir em 1625 a sua Nova Amesterdão, as ruas abaixo de Wall Street ainda
têm aquela geometria anárquica das velhas cidades europeias. Wall Street, onde
hoje se fazem fortunas em “high-frequency trading” ou se afundam países ao
toque de um teclado, deve o seu nome a ficar junto a uma paliçada que o
governador Peter Stuyvesant mandou construir com medo dos índios. E assim
começou uma história de medos.
Deambulamos por essas quase-vielas de prédios cor de tijolo, com ares de Mar do Norte, numa manhã de
segunda-feira, feriado nacional, dia do Presidente. A folga esvaziara as ruas e
parecia distante a azáfama de metrópole que nunca pára nas avenidas mais a
norte, como se tivéssemos viajado um oceano e não apenas uma dúzia de paragens
de metropolitano. Acabamos na Praça Peter Minuit, onde vamos apanhar o “ferry”
para Staten Island, um cacilheiro local que vai e vem àquele subúrbio e que passa
mesmo em frente à Estátua da Liberdade e a Ellis Island. Por isso – e por ser a
única coisa à borla em Nova Iorque – transporta sobretudo turistas como nós,
que vão até ao outro lado e voltam no seguinte e admiram a estátua de caminho.
Na estação fluvial, apinhada por uma multidão multilingue
que espera o abrir das cancelas, os medos continuam lá: um cartaz alerta para
que estejamos vigilantes e denunciemos coisas suspeitas às autoridades. Ora eu
suspeito que deve haver autoridades que não batem bem da bola mas abstenho-me
de denunciar, preferindo embarcar sem escândalo juntamente com o resto da
marabunta. No interior do barco, no acesso às balustradas, outro cartaz já não
alerta, suplica! “Ajudem-nos a combater o terrorismo! Se virem alguma coisa,
digam alguma coisa. Liguem para o número XPTO”.
Subo ao “deck” e apoio-me na guarda para tirar umas
fotografias do lado de Brooklyn. Sopra um vento grisante que me enregela os
dedos. As gaivotas fazem razias, gritando. Para minha surpresa somos escoltados
por um barco da guarda costeira, um “zodiac” com ar galáctico onde à proa um
tipo coberto de um revestimento à prova de bala, com ar de Darth Vader, está em
posição numa metralhadora fixa. Passo para a amurada do outro lado e lá está
outro igualzinho, em apetrecho de combate. Seguem-nos lentamente, num passo
soturno. Os passageiros apontam e comentam, momentaneamente distraídos da
beleza do rio Hudson. Chegado o “ferry” à outra margem, voltam para trás e
desaparecem. Ainda cheguei a pensar que seria um procedimento normal em
qualquer travessia deste barco, mas no regresso já não vêm. Fico sem saber se
acompanham pontualmente, de forma aleatória, ou se alguém viu alguma coisa e
telefonou para o número XPTO da linha anti-terroristas maus.
Estes e muitos outros episódios e detalhes durante esta
semana na América revelam uma sociedade amedrontada, obcecada pela pancada que
levou a onze de Setembro, suspiciosa de um inimigo sem rosto e que se
reconforta inabilmente com esta deriva autoritária que alimenta uma indústria
de milhões. Um exemplo extremado disto mesmo ocorre nos aeroportos, na
apresentação dos passaportes, em que os estrangeiros são tratados como gado
perigoso, “scanados” e catalogados por
paquidermes alimentados a “big macs” que fazem perguntas supostamente
esclarecedoras como “quando é que vai embora”. Isto debaixo de cartazes de
boas-vindas. De cada vez que estou a passar a fronteira num país de terceiro
mundo, com os formulários, as filas e os carimbos inúteis, faço por imaginar
que poderia estar a entrar nos Estados Unidos e acalmo-me.
Sei pouco de matérias de segurança, mas sempre tive a
impressão que este aparato securitário só impressiona quem vem por bem e não
impede quem vem por mal. E pergunto-me muitas vezes se o objectivo principal
não será exactamente o primeiro: intimidar o cidadão comum, instilar o medo, para
mais facilmente exercer o poder. Gostaria que não, que tudo isto não passasse
de estupidez pura, como a daquele folheto verde que se tem que preencher à
entrada dos Estados Unidos que pergunta se cometemos crimes condenáveis pelo
tribunal de Nuremberga. Tantas vezes me apeteceu responder:
- Claro! Fui eu! Para cem anos de idade estou bem conservado,
não estou?
Mas nunca tive coragem para o fazer e ser recambiado no
avião seguinte.
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