Na minha primeira manhã em Washington, um som surdo na porta
do quarto de hotel ergueu-me da cama para ir ver quem era o malandro. Era o
jornal. Esparramado no chão, um exemplar do USA Today, a modos que o Correio da
Manhã local, informava-me na página de capa que pela terceira vez um mulher ia
disputar o campeonato de “stock cars” na oval de Indianapolis. A despropósito,
viria depois a vê-la na televisão a partir o carro todo contra o muro
periférico e a sair inteirinha.
Folheei. No interior, uma manchete afirmava que o número de
famílias em estado de pobreza extrema tinha duplicado nos Estados Unidos, entre
1996 e 2011. Pobreza extrema refere-se aqui a famílias que vivem com menos de
dois dólares por dia. Euro e meio. Duas bicas. Um jornal incompleto. Quinze
minutos de cinema. São 1,46 milhões de famílias nesta situação ou seja à volta
de cinco milhões de pessoas.
Por cabeça, menos de um dólar. Ora no país teoricamente mais
pobre do mundo, a República Democrática do Congo, o congolês médio teve que se
aguentar em 2010 com 347 dólares, mesmo assim quase um por dia. Melhor do que
estes americanos pobres ou pobres americanos, não sei bem. Na Eritreia, na
secura do Corno de África e apesar de uma guerrilha permanente, já fazem figura
de remediados com o dobro diário. E no Lesoto, a aproximar os cinco dólares por
dia, são comparativamente uns nababos.
É verdade que cinco milhões de pessoas representam apenas um
por cento da população americana, mas é muita gente e muito indigente. É como
se num cantinho da América, nos Apalaches ou nos Grandes Lagos, houvesse um
Togo ou um Ruanda, só que mais miserável. E a maior pobreza talvez seja a
naturalidade com que estas desgraças se aceitam: na mesma notícia um Robert
Rector, abanando o título de “senior research fellow” da Heritage Foundation,
um grupo de reflexão(?) conservador, tentava compor a vergonha e a ideologia invocando
as ajudas públicas aos pobres, que os devolveriam a um conforto quiçá excessivo.
Este “fellow” permitiu-se todavia ir mais longe e tirar a conclusão muito
científica de que à vista desarmada estas famílias não parecem passar as
privações que os números sugerem. Uso aqui a palavra “números” enquanto plural
majestático, porque entre zero e um dólar por dia é tudo número sem esse.
Tenho que admitir que o “fellow” Rector tem uma certa
descontração natural, ao tentar contrapôr o seu olhar clínico social às
ferramentas estatísticas de casas modestas como as universidades de Michigan e
de Harvard, conhecidos antros de mentecaptos e responsáveis pelo estudo que determinava o crescimento desta pobreza extrema. E eu, como sou cândido, senão
mesmo idiota, ainda alimento a vaga esperança de que se o “fellow” Rector
conhecesse Magdalyn March, trinta anos de idade, residente nas ruas e abrigos
de Birmingham no Alabama, mãe sózinha de dois filhos, trabalhando num “fast
food” como empregada de mesa, os olhinhos pequenos de uma miopia que não tem
dinheiro para pagar óculos e os dentes podres por falta de um luxo asiático
chamado dentista, talvez fechasse a cloaca. É Magdalyn que diz, no final do
pequeno artigo do USA Today, a verdade última, a verdade que nem o olho
ideológico de Rector, nem as análises numéricas dos professores universitários
captam: “Tens que arranjar um esquema qualquer. Sem isso não consegues viver.
Não consegues mesmo.”
Não sei onde fica a Heritage Foundation, mas não deve ficar
em Washington, capital do império, senão o “fellow” Rector veria como eu vi,
regressando ao hotel à noite, a cada porta dos edifícios de escritórios, um
homem dormindo no chão sobre um cartão, enrolado numa manta que o separava de
uma neblina a dois graus centígrados. Veria como eu vi fieiras de catres pelas
beiras dos passeios onde uma silhueta jazente exalava um bafo que o frio
tornava névoa e suspirava um pedido de dez cêntimos. E veria que isto não se
passava num arrabalde sombrio e deserdado, mas na Avenida F do Penn Quarter,
que culmina na Casa Branca.
Mas, enfim, o “fellow” Rector não passa de um pobre cretino,
como seria de esperar de um tipo cuja sonoridade do apelido faz lembrar troços
finais do intestino grosso.
![]() |
O "fellow" Rector, indignando-se |
Um país não é rico por ter ricos ou riquezas, é rico por não
ter pobres. Um país é pobre em duas situações, que normalmente coexistem: ter
pobres que palmilham as ruas e pobres de espírito como o “fellow” Rector com
tempo de antena para os seus dislates. Neste sentido os Estados Unidos,
independentemente da tonelagem dos seus porta-aviões e da pujança dos seus
índices de bolsa, são um país pobre. São-no exactamente pela mesma razão que
faz com que uma camisa com uma pequena nódoa não esteja limpa, um corpo com um pequeno tumor
não seja saudável e uma verruga no meio da penca torne feia a mais bela carinha.
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