domingo, dezembro 25, 2011

O pipi dele, outras leituras e um a-propósito natalício

Tinha prometido a mim próprio não comprar mais livros enquanto não desse um bom avanço no monte que lá está em casa por abrir. Dantes pensava ler tudo o que sobrasse quando me reformasse, mas como nestes tempos “troikaneiros” a idade da reforma se vai afastando de nós de cada vez que chegamos próximo, como a tartaruga do Zenão de Eleia, esse plano gorou-se. Para não ter que voltar do além para acabar as leituras em dívida, com susto dos que cá ficarem, decidi acabar com as aquisições.

Mas no fim-de-semanada passado, a braços com as compras da quadra, entrei numa livraria e fraquejei: vieram-me acidentalmente agarrados aos coutos cinco pequenos volumes que tratei de despachar imediatamente, numa lógica de “last in,first out”, apressando-me a esconder da minha má consciência o corpo do delito.

Comecei pelo “Sermões” da autoria de “O meu pipi”. Quando há cerca de oito anos o mesmo incógnito autor editara o seu “Diário”, vários amigos e colegas me gabaram então a excelência do pipi, recomendando a leitura. À época não calhou. Despachei agora as cem páginas dos sermões e ri alarvemente durante uma hora, ficando de alma lavada que nem de molho em lixívia. Estes sermões são um desafio e uma homenagem à inteligência: por detrás do chorrilho incontinente de asneiras, deduzimos o homem culto e subtil, de uma ironia fina, que manobra a língua com extrema perícia (refiro-me obviamente à língua pátria).

Do que me lembro de leituras diversas, para se escrever sobre sexo sem dar ar de parvo só há duas vias: ou o implícito ou o barrasco. Entre estes dois extremos, entre a frase singela que sugere o acto e passa ao assunto seguinte e o arrazoado de palavreado forte e ordinário há um vazio inacessível, como o espaço entre duas orbitais do átomo.  O meu pipi, seja ele quem fôr, percebeu que tinha que dar esse salto quântico para fugir àquela imagética melosa e falsamente sensível, em que o acto sexual se consuma com o auxílio de arpões divinos, rosas em botão, êxtases sublimes e outras hipérboles manhosas do género. Com o meu pipi, não há cá disso. Seguindo uma tradição portuguesa que vem de longe e culmina no Elmano Sadino, arma-se do exagero brejeiro e de uma improvável fineza de escrita e é só rir. E por esse efeito até se ajusta a estes momentos adventícios, supostos ser de alegria.

Logo de seguida fui a um “Short movies” de Gonçalo M. Tavares, jovem escritor que a crítica muito tem aclamado e ademais genro de pessoa amiga, e que eu não conhecia ainda. São contos curtíssimos, indo de algumas linhas até página e meia, descrevendo algo que se vê, como se de um filmezito se tratasse, com o plano focando no detalhe ou alargando-se para a panorâmica. Quase todos os episódios são estranhos, alguns chegam a perturbar. Com uma escrita depurada, “Short stories” funciona como acepipe e convida a ler outras obras do autor. Não será na verdade livro muito natalício ou só o será de uma forma oblíqua, porque quando inquieta recorda-nos que existe um lado inquietante do Natal em que o papel brilhante de embrulho esconde vidas alquebradas pela desgraça.

Lembrei-me disso ontem quando parei num semáforo no topo da Marquês da Fronteira, a caminho de umas compras tardias. À porta do Estabelecimento Prisional de Lisboa, uma fila de umas dezenas de pessoas, maioritariamente mulheres e crianças, esperava ao frio de Dezembro pela hora da visita. Os adultos aguardavam quedos, atabafados de casacos, as mãos pendentes segurando sacos garridos e prendas berrantes nos seus papéis de embrulho. As crianças cirandavam à volta. A porta, essa, mantinha-se fechada, emperrada pelos regulamentos que hão-de determinar uma hora de entrada, hora que é sempre à mesma hora mesmo em dia de paz e amor, mesmo em dia em que está frio lá fora e lá fora crianças correm excitadas com a melhor prenda que vão ter: encontrar-se finalmente com um pai que se encontra preso. O semáforo abriu e eu arranquei, continuando sem saber se aquilo não era Natal ou se o Natal era afinal aquilo.

A terceira leitura chamou-se “O ódio à democracia”, ensaio do filósofo francês Jacques Rancière. Leitura provocadora para estes tempos em que a democracia começa a andar mais nas bocas e nas desculpas do que nas cabeças e nos propósitos. Rancière desafia os nossos próprios preconceitos sobre a democracia, fazendo-nos notar que qualquer distribuição de poder que não seja por tiragem à sorte (como existiu na Grécia antiga) reflecte uma deriva oligárquica (para uma classe bem-nascida ou mais rica ou mais culta, mas que inevitavelmente se julga com um direito natural ao poder e é portanto não-democrática na essência). Daqui evolui para um conceito de democracia não como um sistema político em si, mas como a característica de um sistema político que tem suficientes mecanismos de contra-poder para ir contrariando essa deriva. Isto se percebi bem, porque Rancière, como qualquer intelectual francês, tenta escrever da forma mais complicada possível, provavelmente para se sentir ele próprio como pertencente a uma elite qualquer.

No final, Rancière zurze no actual estado de coisas na Europa, concluindo que a oligarquia desavergonhada que governa hoje o Ocidente está a perder quaisquer travões democráticos que ainda mantivesse. E como aqui reside a causa primeira de muitas consoadas tristes por essa Europa fora, este até poderá ser um volume de leitura apropriada nesta quadra natalícia.

A quarta leitura, onde ainda estou, é uma biografia de uma das minhas bandas-fetiche, os “The Clash”, pela voz de cada um dos seus membros. Grupo de miúdos menos afortunados das ruas de Londres, sem qualquer formação musical, arrojados no companheirismo (Paul Simonon foi convidado para ocupar o baixo eléctrico sem saber tocar, só porque era um tipo porreiro: os outros ensinaram-no, inclusive no meio dos primeiros concertos), tornou-se um grande grupo de “rock”, de “hits” e de causas, uma banda militante, com coisas para dizer e indignações para cantar (mesmo que eu não concorde com muitas, ou com a maior parte), o que hoje nos parece um exotismo do passado, impregnados que estamos da gelatina do pensamento único. 

E foi neste livro, na voz do seu guitarrista Mick Jones, o que passou a infância mais difícil, com pais violentos que o deixariam aos oito anos a cargo de uma avó, que encontrei o pensamento de Natal deste Natal. É quando ele recorda essa avó, a quem chama carinhosamente “my nan”:

- She nurtured me, rescued me from all the fighting and stuff when I was really young, and protected me as much as she could and she never questioned it.

De facto, a generosidade não está apenas em dar, reside sobretudo em não esperar nada em troca.

E vendo com atenção, os Clash jogam bem com o espírito da época natalícia, festa que celebra o nascimento de um militante. Razão para considerar que o vídeo abaixo passa bem por um cântico de Natal.


Sem comentários: