segunda-feira, janeiro 02, 2012

Contos da barbárie – parte terceira de umas quantas

Há um quarto de século atrás eu estava a terminar a universidade e no verão passeei de mochila às costas por uma Europa de postos fronteiriços e moedas variadas. Sem plano traçado, achei-me a dado momento em Heraclion, capital de Creta, num hotelzito decrépito do centro onde por menos de mil dracmas a água saía quente da torneira se o sol estivesse a dar com força em cima dos painéis colectores situados no terraço.

Heraclion é uma cidade pequena, muito mediterrânica, onde sabe bem sentar à tardinha numa esplanada de cadeiras baixas numa viela sombreada e beber um “ouzo” frio ou então passear entre os vestígios venezianos do velho porto, olhando a azáfama de um noite de Agosto, para cá e para lá em busca do restaurante mais apelativo, do “retsina” mais fresco, cedendo ao empregado mais insistente, que nos puxa pelo braço no meio da rua, gozando a brisa última que o mar sopra como consolo de um dia de fogo a quarenta e tal graus.


A um bilhete de autocarro de distância fica Cnossos, a principal atracção turística. Lá fui eu a quarenta à hora num chaço velho, as janelas abertas como único ar condicionado, no meio de uma sociedade das nações de cabelo louro ou de olhos em bico, cercado de chapéus de palha, óculos de sol e máquinas “reflex” em punho, em busca da civilização minóica.

Diz o Mito que o Palácio de Cnossos foi projectado por Dédalo, célebre precursor da aeronáutica, criador das asas com que o seu filho Ícaro, célebre precursor do acidente de aviação, se partiu todo no mar Egeu junto à ilha de Icaria, por ter querido voar alto de mais (faltou a Dédalo inventar o altímetro ou o plano de vôo). Continua o sempre falador Mito que o palácio foi construído para o rei Minos, filho de Zeus e de Europa, uma betinha fenícia jeitosa e de bom “pedigree” que Zeus raptou disfarçado de touro para seguidamento levar a cabo as suas más intenções. Esta atração fatal por gado “vacuum” continuou na geração seguinte, quando Minos foi encornado – como verão, é o termo – por um touro branco com quem a sua mulher Pasiphae manteve um “affaire” dentro de uma alcova de madeira em forma de vaca, desenhada pelo sempre prestável Dédalo. Tanta confusão bovina estava destinada a dar raia e a união contra-natura gerou naturalmente um monstro, o Minotauro, meio homem-meio touro, que se alimentava de pessoas. Recorrendo novamente ao estirador de Dédalo, Minos mandou construir junto ao palácio um estrutura confusa como a legislação portuguesa, o Labirinto, para guardar o filho bicho. Quem entrasse já não conseguia encontrar a saída e acabava devorado pelo Minotauro. Este regabofe só terminou quando o ateniense Teseu, filho do rei Egeu, entrou no labirinto para limpar o sebo ao monstro e conseguiu voltar graças ao truque reles do fio de Ariana, filha de Minos e portanto meia-irmã do Minotauro, que ajudou Teseu em troca de uns favores sexuais.


Só para acabar a história, no caminho de volta Teseu deu uma tampa em Ariana, deixando-a pendurada na ilha de Naxos, porque afinal andava com outra, Fedra, nem mais nem menos que a irmã de Ariana. Talvez  meio distraído com estas baldrocas, Teseu esqueceu-se de trocar a vela preta do navio para outra branca, sinal combinado com o pai para indicar o sucesso da missão (não havia na altura “roaming” entre Creta e Atenas). Egeu, vendo chegar ao longe a vela negra, julgou que Teseu tinha sido comido pelo Minotauro e lançou-se do penhasco ao mar, que passou a ter o seu nome. Como os incompetentes acabam às vezes por ser compensados, na sequência da argolada Teseu recebeu o trono de Atenas.

Perante esta novela da TVI em versão minóica, somos levados a pensar que a tal menina Europa era capaz de ter maus genes, que desde então se disseminaram por aí, e quase apetece desculpar as orelhas do Sarkozy e as bochechas da Merkel. 

Percorrendo Cnossos quatro mil e quinhentos anos depois, quando momentaneamente me via sózinho diante daqueles frescos coloridos, de um restauro voluntarista, admirando aquelas imagens alegres e vivas de mulheres de cabelo solto e jovens pulando festivamente nas costas de touros, não era a tragédia de Minos que me vinha à cabeça, mas o pensamento que naquele sítio, durante mais de mil anos, viveram ali uns tipos que começaram isto tudo: trabalharam metais e barro, plantaram e colheram, desenvolveram uma arquitectura, misturando arte e tecnologia (usavam medidas anti-sísmicas elementares), fizeram-se ao mar, venderam o que tinham e compraram o que não tinham, começaram uma escrita, distribuiram entre si riqueza, divertiram-se em festas. E de repente, algo se passou que feneceram. Teorias dizem que sofreram as consequências de uma erupção catastrófica em Santorini; outras um incêndio descontrolado numa ilha muito florestada; outras ainda – e que me parecem mais prováveis – uma invasão por guerreiros do continente grego. Um dia chegaram os bárbaros e aquela civilização brilhante foi soterrada.

 

No final deste Dezembro que terminou, na mesma Heraclion onde reinou como primeira raínha de Creta a Europa que deu nome ao continente, um aluno de liceu de treze anos desmaiou de fome em plena sala de aulas. A opinião pública grega chocou-se ao saber que em sua casa, a casa de uma funcionária municipal com quatro filhos, não se comia nada há dois dias. E que esta subnutrição, eufemismo tecnocrata para fome, se estava a propagar na antiga classe média grega. Também aqui, à Creta de hoje,  chegaram um dia os bárbaros. Não pessoalmente, mas por interpostos sicários. E esses bárbaros longíquos e afirmativos acham que aquele rapaz que cai de fraqueza é um preguiçoso, que tem o que merece e que a sua fome é um facto económico que como tal não pode ser resolvido. Não será de estranhar que assim pensem: é essa inteligência sofrível e essa ética duvidosa que lhes define a barbárie.

Os avós desse rapaz e de outros mais resistentes que tenham conseguido enganar a dor de estômago, lembrar-se-ão ainda dos trezentos mil gregos que morreram de fome no inverno de 1941-42, quando chegaram um dia outros bárbaros – ou seriam os mesmos? – procurando impôr à Europa um império de mil anos. Os bárbaros de hoje aparentarão menos agressividade que esses de há setenta anos e os efeitos ainda não são tão extremos, mas a convicção, essa, essa parece já perigosamente a mesma. A História é marreca e dá muita curva para trás. Como escrevia Camus, o bacilo da peste não morre.

Triste é que a esta união política em que crianças passam fome por falta de solidariedade e excesso de sectarismo insistam os bárbaros em chamar Europa, por ironia a mãe do espírito que renegam. Se querem assim tanto dar um nome grego à coisa, usem um mais adequado: por exemplo, Hades.

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