quinta-feira, dezembro 01, 2011

Contos da Barbárie – parte primeira (de umas quantas)


Notícia recente anunciava a prisão no sul da Líbia de um dos filhos de Khadafi, Saif al-Islam. O comentador televisivo, papagueando algum despacho da Reuters, dizia que Saif se declarava inocente das acusações que pesam sobre ele, mas que – lembrava o locutor com ar suspicioso - esteve junto ao pai durante toda a recente guerra civil líbia.

Soa a fruta da época que um telejornal ocidental, daquele Ocidente que inocentemente consideramos compostinho e democrático, ache facto suspeito e reprovável um filho estar junto ao pai em tempos de guerra. É a teoria da má semente, que lemos com reprovação nos livros de História mas que volta a galope assim que a estupidez se instala: os filhos partilham dos vícios e das culpas dos pais. Já Pombal condenara à morte as crianças da família Távora, que só se salvaram pela intervenção da rainha Mariana e da princesa Maria Francisca, herdeira do trono. Outros tempos, tempos bárbaros, dirão alguns, infelizmente convencidos do que dizem.

Saif al-Islam não beneficia hoje da protecção simpática das multinacionais que lhe patrocinaram uma exposição de arte, certamente convencidas do seu grande talento pintor, ou da empresa de consultoria cujos serviços bem pagos contribuiram para que ele acabasse a sua tese de doutoramento. Não beneficia sobretudo da asa do pai, que em tempos recentes era recebido com pompa por presidentes e primeiros-ministros, prontos a esquecer o massacre dos seus próprios cidadãos nos céus de Lockherbie em troca de umas concessões rentáveis de exploração petrolífera. Tornou-se agora um vencido e já pode ser alvo da indignação bem-pensante.

Não sou tapado ao ponto de não pensar que muito provavelmente Saif al-Islam não teria as mão limpas. Detinha altas responsabilidades num regime corrupto e brutal. Justamente por isso, seria justo, para ele e para as suas possíveis vítimas, que fosse justamente julgado por um tribunal justo. Infelizmente tal não irá acontecer. Na Líbia, as novas autoridades já anunciaram que a lei será baseada na “sharia”. Com tal ponto de partida e com as carnagens de vingança tribal que se viram duram a guerra civil, não tenho grandes esperanças de um sistema judicial local minimamente potável. E quanto ao Tribunal  Penal Internacional, por mais formalismos e vestes talares que tenha, ainda não me convenceu. A primeira característica da Justiça deve ser a sua universalidade. Ora o TPI só julga vencidos, por conta dos vencedores.


Todo este carnaval de pretensa democraticidade e justiça à volta da revolução líbia e do patrocínio que o Ocidente lhe proporcionou é particularmente peçonhento. Dizer que aquela guerra tribal, que com forte probabilidade irá descambar num regime islâmico, é uma revolução democrática só mostra um de dois: cinismo ou estupidez. Infelizmente, na maioria dos casos, será a segunda opção. E eu sinceramente preferia que ao menos tudo fosse assumido como simples “realpolitik”: pareceria mais honesto e até mais simpático. Quando o chefe gaulês Breno proferiu a sentença imortal “ai dos vencidos”, não estava com teorias vãs de bondade e superioridade moral. Breno tinha derrotado os romanos e exigira um pagamento de mil libras de ouro para retirar o cerco à cidade. Durante a pesagem, quando os romanos protestaram que os pesos trazidos pelos gauleses estavam falsificados, de modo a aumentar o montante de ouro a entregar, Breno mandou a sua espada para cima dos pesos que estavam na balança, aumentando ainda mais a batota e soltando o tal “vae victis”, que é como quem diz “não estejam com tretas, ganhei, sou o mais forte, dito as regras e se protestam ainda é pior”. E o que eu vi passar-se na Líbia foi “vae victis” no seu maior esplendor, só que com a altivez de Breno trocada pela mesquinhez mediatizada de Cameron e do pequeno Nicolas.

 Quando os ventos da História soprarem para longe a poeira do deserto, talvez as imagens mais duradouras deste triste episódio sejam o linchamento em directo de Khadafi por uma matilha de cobardes raivosos, o bimbo do deserto a exibir as pistolas do ditador como se roubá-las a um cadáver fosse um feito apreciável, as filas de básicos em romaria para tirar fotografias ao cadáver com telemóveis e, pior ainda, o silêncio comprometido dos líderes, comentadores e “media” ocidentais em relação a esta panóplia de vergonhas.

Vá lá que - fraca consolação - desta vez não tivemos a líder suprema da Europa, a “ossie” luterana Merkel, a vir publicamente anunciar a sua satisfação com a morte de um homem, como fez quando os americanos despacharam o Bin Laden. Que um chanceler alemão viesse dizer que lamentava ter que se ter chegado a esse ponto, mas que compreendia a acção americana, isso é algo que poderá ser discutível mas que se poderá entender como “realpolitik”. Que a Angela venha a correr para diante dos microfones manifestar alegria por uma execução sumária, só para piscar o olho ao lado de lá do Atlântico, e ninguém comente, diz muito sobre o nível a que estamos a todos a chegar. Explica também muito do que nos está a acontecer nesta Europa em crise.


E para aqueles que neste momento estão a vacilar, a pensar “os gajos eram uns facínoras e tiveram o que mereciam”, não me venham com essa que não tem puto a ver! A democracia não exerce a vingança, pratica a justiça, e nesta vida temos que fazer escolhas: ou somos civilizados ou aceitamos com tranquilidade que homens em bando matem outro indefeso, por muito facínora que tenha sido. Lamentavelmente, não há posição intermédia. A opção é vossa.

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