sábado, março 05, 2011

Notas de uma semana nevada


Do domingo anterior ao sábado que passou, uma semana de família e de esqui nas alturas da Sierra Nevada. Algumas notas desses dias.


On the road

Sempre são setecentos e tal quilómetros e eu não perdi o meu velho hábito de dormir pouco na noite anterior a grandes viagens. Entre a adrenalina da partida, o fecho das malas, a sua reabertura, o seu refecho e o que falta à vigésima quinta hora e que não se encontra nem por nada, passam as três e tal da manhã e eu não prego olho. Às sete o despertador buzina impenitente o seu vagido electrónico, arrancando-me ao primeiro sono. Espeto com a cara debaixo da torneira, bebo a cafézada da ordem mas é com as pálpebras a meia-haste que me sento no carro, para mais uma jornada de terror nas estradas.

Evito o habitual atalho pitoresco de Ficalho, Rosal de la Frontera, Jabugo e Aracena, com paragem nesta última para excelentes tapas no Manzano. Vou antes directo ao Algarve para depois rumar a Espanha, aproveitando que o Zapatero ainda não recebeu ordens de Berlim para portajar as autoestradas. De modo a não adormecer ao volante, recorro ao meu vezeiro e infalível truque: música da pesada, que chegue para me manter desperto durante todo o caminho. Desta feita e dado o comprido trajecto:

- o “Live at Leeds” dos The Who, edição alargada com a ópera “Tommy” em bónus;
- um “best of” do Frank Zappa;
- uma compilação de “reggae” de Trinidade e Tobago que comprei no aeroporto de Port-of-Spain; para quem não sabe, no que toca a potência, Trinidade 1 – Jamaica 0;
- o “2001 Odisseia no chaço” dos Ena Pá 2000;
- o “Viva!” dos Roxy Music, o melhor álbum ao vivo de sempre – desculpa lá, ó NF.

Já rolamos há mais de uma hora na infindável A92, entre Sevilha e Granada, quando me aventuro a fazer deslizar o cêdê dos Ena Pá pela fenda do leitor. De imediato há protestos e há tumulto. Uma das coisas que me une à minha cara-metade, para além dos laços do matrimónio, é o não conseguirmos ficar indiferentes a Manuel João Vieira. Só que com sinais opostos: ela acha-o o último dos barrascos, eu acho-o um Gil Vicente dos nossos tempos.

Vieira canta: “Tenho pança de Super Bock/E o fígado é o do Capitão Haddock”. Tento argumentar que temos que ir prá aí a Cesário Verde ou a Camilo Pessanha para encontrar palavras tão rombas arrumadas com tamanho aprumo. Mas não a comovo. Ejecto por isso os Ena Pá, de modo a não estragar o início de férias e é aquecidos pela voz de galã roqueiro do Brian Ferry e pelo som dos Roxy que assistimos com um deleite sempre renovado ao crescendo em altura das montanhas da serra nevada.



A room with a view

Nas outras vindas à Sierra Nevada, ficáramos num Meliá, o Sol y Nieve. Desta feita, com atitude de crise, baixámos umas coroas valentes no orçamento e uma estrela no hotel e experimentámos o vizinho Zyriab. Em boa hora o fizemos: o Ziryab tem quartos mais aconchegantes, um aquecimento mais eficaz, uma melhor cozinha e os armários dos esquis encostadinhos à bolha que nos ascende até Borreguiles, sítio de onde partimos a esquiar, poupando-nos assim a duas travessias diárias da aldeia de Pradollano de esquis às costas e botas nos pés. E tem também um nome que faz sentido nestas paragens que viram partir os últimos mouros, há pouco mais de quinhentos anos. Adiante veremos.

O hotel foi construído adossado à escarpa. Entra-se pelo piso zero, ao nível da praça principal, onde se trata da papelada e desce-se aos quartos, todos orientados para a montanha, todos com uma vista que lembra um quadro. Ou melhor vários, porque um quadro que vai mudando consoante a hora, o vigor do sol, os caprichos do tempo. De manhã, a encosta que sobe para a Loma de Dílar e que ocupa grande parte da nossa janela no 334 amanhece de um cinzento metálico, mas por pouco tempo: o sol, vencendo finalmente os picos de Alcazaba e de Mulhacén, rapidamente a dardeja e a inunda de um branco luminoso, apenas interrompido pela fuligem de algumas rochas mais temerárias, que ofusca com o seu vigor um céu de um azul fundo e sem mácula. As nuvens, quando vêm, não chegam tão alto: arrumam-se como um rebanho de ovelhas celestes no fundo do vale que serpenteia à nossa frente, pastam tranquilas a vegetação rala que cresce ao longo dos arroios e tapam a sucessão sem fim de cumeadas. À tarde, à medida que o sol roda para oeste, o branco vai azulando, até que desaparece de escuro quando o crepúsculo pinta de vermelho e amarelo a linha do horizonte. Caída a noite, a montanha torna-se um fantasma, uma presença, difusa mas certa: é a hora das raposas, que a pintalgam com as pegadas delicadas que nos intrigarão no dia seguinte, aproximando-se dos homens adormecidos. Cheguei a ver uma a altas horas no parque de estacionamento, possivelmente ao cheiro dos caixotes, deslizando ligeira entre os carros.

Tudo isto por três estrelas. Fico sem entender quais os estelares critérios de atribuição.


Zyriab

Que eu nunca tivesse ouvido falar de Zyriab diz muito sobre o pouco que sei, mas também sobre a ignorância que temos, em Portugal, em relação a um período da nossa história quase tão longo como o que começa com Afonso Henriques.

Zyriab significa melro em árabe e foi alcunha de Abu l-Hasan Ali Ibn Nafi’, músico nascido em Bagdad no século IX. Melro pela tez escura e pela veloz melodiosa. A lenda diz que Zyriab trabalhou no palácio do califa Harum El-Rashid, onde deu nas vistas pelo talento e atraiu o ciúme do seu mentor, Al-Mawsili, que se tinha por favorito do califa. Como ainda nos nossos dias acontece, Al-Mawsili sentiu-se ameaçado e montou uma estrangeirinha a Zyriab, que teve que se exilar, primeiro para o norte de África, depois para a Córdoba omeíada, onde o califa Abd al-Rahman II o acolheu e fez dele o músico da corte.

Zyriab foi, como muitos sábios muçulmanos dessa época, um enciclopedista ainda antes do conceito ter sido enunciado. Para além de músico, cantor e compositor, trabalhou em astronomia e geografia e introduziu na península vários hábitos refinados trazidos da capital do império. Consta que a ele devemos a partição da refeição em sopa, prato e sobremesa, a utilização de copos de cristal, o consumo de espargos, o uso de pasta de dentes, a depilação feminina, o corte da franja e outras maldades do género.

Compôs mais de mil canções, integrando elementos das diversas regiões por onde passou e criou um estilo que ainda hoje sobrevive como o mais tradicional no Magrebe, com um nome que não deixa dúvidas sobre a sua origem, o “andalou”. Ouvi pela primeira vez “andalou” ao vivo num almoço em Argel. Comentei com um comensal argelino sobre a tristeza da sonoridade, tão diferente do saltitante “raï” que se houve nas ruas. Explicou-me ele: “está para nós como o fado está para vocês”.

Modificou ainda o alaúde, o seu instrumento preferido. Na altura tinha quatro cordas, representando os quatro humores da medicina antiga (sangue, linfa, bílis e atrabílis). Zyriab introduziu uma quinta, no meio das outras, que disse representar a alma. Apreciei a poesia contida neste gesto: a música será coisa de gente de carne e osso, mas não deixa nunca de ter o seu toque divino. Nisto terá pensado certamente Paco de Lucia quando escreveu a homenagem a Zyriab que vos deixo já a seguir.



A perfeição das crianças

Inscrevi-me como usualmente nas aulas de esqui. A triagem fez-se numa encosta moderada e tentei um “slalom” o mais escorreito possível mas não enganei o olhar treinado dos monitores. Fui colocado num nível “cê menos”, equivalente a nabo com alguma experiência.

O meu professor chamava-se Valter e era italiano das Dolomitas, mas falava um espanhol perfeito. E bom inglês também, o que fez com que na nossa aula, que era de adultos, fosse colocada a pequena Lucy, inglesa de oito anos, que se tornou a mascote da turma, composta por dois portugueses e quatro espanhóis.

As aulas de esqui têm algo de recruta. Terminado um exercício, o Valter, com ar de sargento desapontado com o pelotão, alinhava-nos a todos na pendente e lia-nos o rol das desgraças: “Ninguém inclinou o corpo como devia. Numa pista inclinada a sério iam todos por ali abaixo. Carlos, o joelho de jusante tem que ser flectido; Margarida, o corpo inclina-se para o vale; Vicente, o torso não se roda para trás; etc.”.

A seguir vinha o castigo, normalmente um exercício que nos parecia de grande complexidade: “Descemos em fila até ao fim da pista, todos atrás de mim. Em cada início de curva, passamos progressivamente o peso da perna de jusante para a de montante, no momento em que o peso está equilibrado devemos estar de pé no ponto médio da curva e rodamos e transferimos o peso para a perna que está agora do lado do vale, terminamos a curva flectindo o joelho um pouco para dentro para sentir bem a aderência do canto do esqui, a anca um pouco para montante e os ombros um pouco para jusante mas sem rodar o tronco para trás, fazemos a diagonal com o olhar na ponta do esqui de jusante e com o esqui de montante sem estar solto. Perceberam?”

Mentíamos, afirmando que sim e o Valter virava-se para a Lucy, que assistira a toda a conversa muito direita, com um sorriso de bonequita e sem perceber obviamente uma única palavra e dizia-lhe: “Lucy, you just look at me when we go down and do exactly what I do”.

Descíamos. A Lucy fazia bem e nós fazíamos mal.


A montanha ciosa

Nevou muito este ano na Sierra Nevada. A neve acumulou-se nas pistas, engolindo vedações e baixando sinais das alturas para o nível chão.

Dias antes da nossa chegada ocorrera uma avalanche num vale contíguo à estância que colhera quatro montanhistas. Uma parede de três por três metros que varrera um quilómetro. Três deles conseguiram safar-se. O outro ainda não apareceu. O Valter concluía, pesaroso: “só o encontrarão na primavera, quando as neves fundirem”.

A montanha, tal como o mar, reclama o seu quinhão para se dar aos homens. Muitas vezes o mar leva os menos preparados, os mais incautos. A montanha, essa, escolhe entre os mais aptos e afoitos, como se não suportasse que chegassem tão alto quanto ela.


As cores

Uma semana na neve recauchuta-me a alma.

Nas subidas nas cadeiras, terminado o esforço, as pernas baloiçando no vazio, o vento silvando nos ouvidos, bebo uma paz ímpar na visão dos cumes namorando o azul forte do céu e dos mantos brancos ondulando montanha abaixo, pontilhados apenas pelas pequenas formigas de esquis ou tábuas nos pés.

Mas quando olho mais de perto, parando para descansar à beira de uma pista, encanto-me talvez mais ainda com as cores pintando arte sobre a tela branca de neve e gelo. Pode ser o traço único e nervoso, azul ou vermelho, de um esquiador descendo veloz por uma pendente estreita ou a dança caleidoscópica de dezenas de pedaços de arco-íris ziguezagueando de largo em largo, percorrendo o leito do Rio em direcção a Pradollano.

A montanha é uma feira. A montanha é uma festa.


O incentivo das mulheres

Durante cinco dias esquiei próximo de quatro horas de manhã e entre uma e três a seguir ao almoço. Nesta parte da tarde, fi-lo com os meus filhos, muito melhores praticantes do que eu, em troços difíceis e fisicamente mais puxados.

Chegava ao hotel esfalfado e abatia-me sobre a cama, os bofes do lado errado, os joelhos em petição de miséria, mas com o sentimento do dever cumprido.

Aí ouvia aquelas palavras de incentivo de que só uma mulher é capaz: “Julgas que ainda tens vinte anos!”. Nesse momento, ficava com setenta. E muitos…


A parede que não separa

O único defeito que encontrámos no Zyriab residia numa insonorização manifestamente deficiente.

Sempre que chegava ou partia uma família, por vezes a desoras, rolando malas, ouvia-se um tropel que quando passava a nossa porta soava como o vigésimo de cavalaria chegando uma vez mais atrasado ao combate.

Rapidamente descobrimos também que no quarto por cima do nosso se alojara uma família espanhola, em que o pequeno Javier maltratava a sua irmã mais nova, provocando a ira apopléctica do pai, o que por sua vez suscitava apelos à calma da mãe. Certa vez ouvimos o progenitor gritando mais desesperada e lancinantemente que o normal – “No, Javier, no!” – e temi ver passar a irmãzinha em voo picado diante da nossa janela. Noutra ouvimos algo cair pesadamente no chão, com um estrondo de terramoto, e logo pus a hipótese do coração sofrido do senhor não ter aguentado mais uma graçola do filho. Mas não, continuámos a ouvi-los nos restantes dias.

No quarto ao lado, separado do dossel da nossa cama por uma fieira simples de tijolo, dormia um compressor a gasóleo. Ouvíamos um ruído grave, contínuo, modulado, de uma intensidade mecânica. Ainda pusemos a hipótese de ser um ser humano a ressonar, mas o som era demasiado forte. Um compressor, definitivamente, provavelmente um Atlas-Copco.

A meio da semana, a turbomáquina foi substituída por uns gemidos “sui generis” que nos motivaram, da primeira vez que os ouvimos, uns comentários marotos. Este não deve ter ido esquiar, dizíamos, perante o sonoro afinco. Só que o vagido prosseguiu noite fora, levando-nos a suspeitar de sexo tântrico, e repetiu-se nas noites seguintes, o que nos fez pensar que teríamos o Zézé Camarinha no 333. Mas tântrico ou não, tanto era demais e de modo a não ficar desmoralizados optámos por concluir que não seria pagode, mas que de facto o nosso vizinho produzia mesmo aqueles sons enquanto dormia, sonhando com sabe-se lá o quê.

O meu pai, hoteleiro de uma vida, possuía um livrinho que ainda lá deve estar numa das estantes, de título “A hotel is a very funny place” ou coisa parecida. É-o de facto.


A visita do velho Mata

Pois já que falámos nele, digo que não pôde faltar, mas fez-se esperar até ao último dia.

Levo sempre muita leitura para a semana na neve, não vá passá-la num sofá de perna engessada. A questão acabou por não se pôr, mas sempre fui avançando num “The idea of justice”, de Amartya Sen, professor de filosofia e de economia em Cambridge e Harvard, prémio Nobel da economia em 1998. Como diz a nova geração, um ganda “nerd”.

É um livro que não se lê: desbrava-se, à catanada. E depois há que examinar cada corte, cada folhagem decepada para perceber para onde fica o caminho naquele matagal de reflexão.

Na sexta-feira, consegui entrar no segundo capítulo, onde Sen fala da teoria da justiça de John Rawls, o mais importante autor sobre o tema da segunda metade do século XX, descrevendo-a para depois melhor discordar dela.

Sintetizando, Rawls diz que se pessoas em certas condições de imparcialidade (a cuja descrição vos vou poupar) discutirem quais os princípios que deverão reger o funcionamento e as instituições de uma sociedade idealmente justa, vão eleger de forma unânime dois deles.

O primeiro desses dois princípios afirma que cada pessoa tem igual direito a um esquema adequado e igual de liberdades básicas que seja compatível com todos usufruírem do mesmo esquema.

Quando li estas linhas, a minha mente viajou até um dia de 1975, em que eu acabara de lhe afirmar que podia fazer não-sei-o-quê porque agora havia liberdade. Estávamos no Verão Quente e tal certeza numa liberdade incontinente era fruta da época.

Ele respondeu, de um modo que eu entendi como um misto de firmeza e iluminação:

- Estás enganado. A tua liberdade acaba onde começa a liberdade dos outros.

Embora fosse uma frase feita que ele estava a aproveitar, o tom com que a disse e a consciência que de imediato tive que não estava diante de uma teoria, mas de um modo de estar que ele praticava todos os dias, fizeram-me adoptar como minha esta máxima que não é outra coisa que o primeiro princípio de Rawls, só que exibido como ponto de partida e não como de chegada. Só que gerado pela virtude e não pela dedução lógica.

Desde aí, procuro honrar aquelas palavras. Às vezes falho. Quando tal acontece, tento arrepender-me.

Bem, obrigado pela visita.

Já agora, o segundo princípio de Rawls estabelece que as desigualdades sociais e económicas só podem existir sob duas condições: a primeira é que tais desigualdades resultem de posições e lugares acessíveis a todos com igualdade de oportunidades; a segunda que essas desigualdades acabem por contribuir para uma melhor situação das pessoas em posição mais desfavorecida.

Cheira-me que o velho Mata também não desdenharia deste segundo. Só que, infelizmente, não descreve o mundo em que estamos. Nem o caminho em que seguimos. O liberal Rawls teria vergonha destes liberais de ocasião.


Declaração final

Trinta horas com os pés em cima de duas tábuas em materiais compósitos. Duas ou três vezes estive vai-não-vai, balancei, tangueei e tudo o mais mas acabei por me aguentar de pé.

“La garde meurt mais ne tombe pas”.

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