domingo, janeiro 30, 2011

Atrasados mentais

« Et comme l’enfance est sans défense

C’est toujours l’enfance qui succombe »


Jacques Prévert, in « L’enfance »


Há neste mundo uma criança que corre o sério risco de ser condenada a prisão perpétua por um crime que cometeu com onze anos. Isto não se passa no Irão, nem nas províncias nortenhas da Nigéria, nem numa remota fronteira da China, nem em nenhum daqueles outros sítios que a nossa suficiência europeia consideraria como provável para albergar uma barbárie desta magnitude.


Chama-se Jordan Brown, tem agora treze anos, matou a namorada do pai com um tiro de caçadeira, já foi julgada em primeira instância e é norte-americana. E nem sequer de um daqueles estados do “bible belt” povoados de gente dada à bizarria. Vive na Pennsylvania, sítio supostamente civilizado, um dos estados que fundou a união pela mão, entre outros, de Benjamin Franklin.


Pois na Pennsylvania, como em muitos outros estados, um menor de qualquer idade é julgado como um adulto até decisão em contrário de um juiz. A população prisional norte-americana conta actualmente com 2400 condenados a prisão perpétua por homicídios cometidos quando crianças. Com Jordan Brown, em todo caso, onze anos constitui novo recorde. E já enfrentou um primeiro juiz que achou que ele não deveria ser tratado como um menor.


Muitas coisas separam os homens que por esse mundo fora são capazes do mais reles e cruel que a nossa espécie pode. Uns são camponeses miseráveis arrebanhados por senhores da guerra, outros desorientados em demanda do sectarismo que lhes dê um espúrio sentimento de sentido, outros ainda, pelos vistos, formados em leis. O que une então a catana do miliciano “hutu”, a bomba artesanal à cintura do terrorista checheno ou o martelo deste juiz norte-americano? O mesmo ódio inútil. A mesma oportunidade para mostrar quão fundos são os abismos a que podemos chegar. Pergunto-me se este juiz será por acaso pai, se haverá na sua casa de banho um espelho no qual ele se olhe todas as manhãs sem remorso, se terá alguma vez procurado entender o que diz o Novo Testamento da Bíblia que usa na sala de audiências e que provavelmente manuseia ao domingo na sua congregação, engravatado e luzidio.


O rapaz, Jordan Brown, cometeu certamente um acto abominável. Fê-lo com a sua própria caçadeira, um modelo concebido especialmente para crianças. Pois. Ponham armas nas mãos das crianças e programas da Fox nas suas cabeças e as coisas são capazes de acontecer. O que Jordan Brown fez foi, repito, horrível, mas uma criança de onze anos não tem a mesma percepção de culpa e de consequência que um adulto. Não sei se a fronteira se encontra nos dezasseis ou nos dezassete ou nos dezoito anos. Nos onze não passa de certeza. Se a sociedade condenar esta criança a prisão perpétua puxa o gatilho uma segunda vez e perde a segunda ocasião de que dispôs.


Nietzsche escreveu que a insanidade é rara no indivíduo, mas a norma nas sociedades ou nos países. Ao olhar para este caso, só lhe posso dar razão. Uma sociedade que prende para a vida uma criança de onze anos só pode ser constituída por atrasados mentais profundos, naquele que considero ser o mais genuíno sentido destas palavras e que se aplica não aos que por deficiência têm limitações mas aos que, podendo evitá-lo, escolhem a via da mais confrangedora estupidez, seja pela prática ou pelo silêncio. A mesma estupidez que levou à sala de tribunal esta criança algemada, pasme-se, nos pulsos e tornozelos. Valentões de merda!


Os fenícios sacrificavam crianças a Baal, por medo deste. Os norte-americanos imolam-nas na ara das suas erróneas concepções de justiça, provavelmente por medo de si próprios. Os Estados Unidos e a Somália são os únicos países que recusaram ratificar a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças (que proíbe penas perpétuas para menores de dezoito anos). Os Estados Unidos e a Somália! Excelente companhia que se devem fazer um ao outro...


Infelizmente, pouco conseguiremos fazer, até porque os Estados Unidos são, pequeno detalhe, uma super-potência. Mas podemos pelo menos contar e fazer com que a vergonha se vá, lentamente, propagando. Quando estiverem com um norte-americano, afectem primeiro ter o conhecimento geográfico médio lá deles – “Estados Unidos, isso fica… Deixa ver…” – para depois arrematarem: “Já sei! É aquele país onde as crianças podem ser condenadas à pena perpétua”. “Shame on them”, com liberalidade!



P.S. Soube deste assunto por uma notícia escrita numa página dezoito de um Público, assinada por uma Susana Almeida Ribeiro. Já seria por si só sintomático de uma certa mentalidade que um assunto desta gravidade surja, discreto, numa décima-oitava página. Dirão: critérios editoriais. Pois a mim parecem-me mais critérios civilizacionais. Mas o que mais me chocou foi o tom acrítico com que o artigo foi escrito. Esta senhora jornalista, se tivesse que reportar os fornos crematórios de Auschwitz, fá-lo-ia certamente como se de um empreendimento industrial se tratasse. Ninguém lhe parece ter explicado que o excesso de objectividade pode-se tornar facilmente numa tomada de posição.


Mas o pior é quando diz: “Os EUA têm, porém, vindo a suavizar as suas políticas. Em 2005 o Supremo Tribunal aboliu a pena de morte para menores de dezoito anos. Em Maio passado, o mesmo tribunal decidiu que os menores não podiam ser condenados a penas perpétuas por outros crimes que não sejam o homicídio”. Suavizar? Será que, se os sudaneses reduzirem a força com que mandam as pedras nas lapidações, ela também vai dizer que os tribunais islâmicos estão a “suavizar” as suas práticas? Santa paciência. Onde leva a capacidade de abaixamento mental!

3 comentários:

Alex disse...

Deu-me a volta ao estômago.
Estranho mundo este que escolhemos para viver.

Alex disse...

Andas muito calado...
Está tudo bem?

durindana disse...

Ora isso já foi em Janeiro.
Passou um mês.
Silêncio!
Se é descarga de profissionalismo, tudo bem, estás numa boa idade.
Se é por causa dos leões andarem com a molenga deves pensar que o infinito é tão extenso que entre a memória dos cinco violinos e os futuros violoncelos vai apenas um piscar de olhos.
Olha p'ra mim que já me conformei com a ideia que os pastéis de Belém vão ser substituidos pelas cavacas das Caldas.
Ânimo, Carlos.
A.M.