domingo, março 27, 2011

Exposição fotográfica (XXXII)

"Amigo" é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,

"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!


Alexandre O'Neill, "Amigo", in "No reino da Dinamarca"


Na manhã de 9 de Agosto de 2010 tive uma bruta de uma insónia. Deitara-me tarde. Fora ao Festival do Sudoeste ver os Air e os Massive Attack, tema de post antigo. O facto de lá ter deixado o meu filho mais velho com um sorriso no rosto, um automóvel nas mãos e uma carta de condução com quinze dias no bolso não me deixava pregar olho. Faz parte. Fui-me revirando na cama à procura de uma posição soporífera. Em vão. Abri a luz. Garatujei as palavras cruzadas e o "sudoku" no jornal. Li umas páginas de um livro. Fechei a luz. Escutei os ruídos que como formigas apressadas cruzam a tessitura da noite: o vento que sopra nas jelosias, o respirar de menina dela, os cães em conversa uivada. Só não ouvia o barulho que o meu subconsciente conscientemente esperava: um carro a dobrar a esquina, o motor a morrer na rua, a porta de entrada a bater e o cagaçal que eles conseguem fazer às tantas da manhã e que tanto irrita como alivia. No escuro, o brilho de pirilampo dos ponteiros do relógio de pulso, pousado sobre a mesa de cabeceira, circulava lentamente, muito lentamente...


Seriam seis da manhã quando a aurora começou a insinuar-se pelas ripas dos estores. Levantei-me e saí do quarto de sapatos na mão, com o pescoço encolhido, as costas curvadas, o andar desengonçado, como um marido que chega tarde da rambóia, só que em sentido inverso. Um bocado estúpido, porque as costas curvadas fazem o mesmo barulho que umas costas direitas.

Desci a rua em direcção à Praia Grande de Porto Covo.


Estava ainda deserta. De gente, pelo menos. Pela noite houvera trabalho: o concessionário enrolara os toldos, a câmara substituíra os sacos do lixo, que pintalgavam a enseada em tons de azul cobalto e o mar tratara de lavar o areal, deixando-o liso e lustroso aos primeiros e ténues raios de sol matinais.


Era a hora das gaivotas, que podem depenicar sossegadas o quer que seja que haja ali para depenicar. Mais duas ou três horas e a praia vibraria de gente, de cores garridas, do toc-toc das raquetes à beira-mar, dos gritos pelas crianças demasiado afoitas, do serpentear malabirista dos surfistas sobre a espuma de sabão dos tubos a enrolar, do apito esganiçado e arbitral do nadador-salvador. Tudo cenas que as gaivotas consideram má onda. Por isso se reservam para estes horários discretos, em que a humidade ainda pica e a maresia ainda cheira.


Chegavam também os primeiros pescadores, à procura de um lugar jeitoso na escarpa. Na rua principal havia uma tasca, o "Primo Xico", onde um quadro pendurado na parede informava que ali se reuniam caçadores, pescadores e outros mentirosos. Mas para que uma mentira seja razoavelmente credível, há que levantar cedo de manhã.


Subi de novo até à beira da falésia e percorri o trilho para sul, por cima da Praia do Banho. Ao fundo, um barco de pescadores coloria a planura de água como um peixe-palhaço num aquário gigante. Lá em baixo, um homem andava na areia com uma atitude de quem tem todo o tempo do mundo para um passeio matinal. Embora fosse apenas um ponto distante, parecia-me um ponto algo familiar.


Era o meu amigo P. Gritei "ó P! P!", a plenos pulmões, como se o estivesse a avisar de um perigo. O som ecoou pelas paredes milenares da falésia, perturbando o sossego da manhã e a ordem natural das coisas. Vi o P rodar a cabeça em todas as direcções até se fixar num ponto distante e esbracejante que era eu. Aproximou-se para perceber quem chamava, enquanto eu descia um carreiro até lá abaixo.


Estranho. Conheço o P desde criança. Temos muita quilometragem juntos. Encontramo-nos quase todas as semanas. No mês de Agosto, então, é todos os dias. Acabáramos de estar juntos no concerto. Ia-mo-nos ver certamente à tarde na praia. No entanto, senti uma necessidade, vinda de não sei onde cá dentro, de gritar por ele e correr pelo carreiro abaixo, não fosse perder esta oportunidade única de estarmos ambos. Como se sem ele não se cumprisse aquela manhã gloriosa que a insónia me proporcionara.


Caminhámos ao longo do mar, em conversa mole, dissertando sobre assuntos que já se escaparam da minha memória. Também ele não dormira. Subimos ao alto da falésia e fizemos o resto do trilho, que serpenteia entre tojos e armérias, sempre em bate-papo, apesar do sono que nos começava a pesar nas pálpebras. Só nos separámos, com um bacalhau, ao atingir as primeiras vivendas do Bairro Alemão.


Chegado a casa, mais consolado, dormi umas duas ou três horas. Tomava já o pequeno-almoço quando ouvi o roncar de um motor que virou a esquina e se imobilizou lá fora. Passos. O rapaz apareceu, de chapéu-de-palha caipira com uma fita verde a fazer publicidade aos jogos da Santa Casa da Misericórdia. Comeu e foi-se deitar, concluindo este episódio.


O P fez anos ontem. Não o consegui apanhar ao telefone para lhe dar os parabéns. Bom moço, mas um chato do caraças no que toca a ter o telemóvel com som. Talvez por isso me tenha vindo à lembrança a memória daquela madrugada, em que por sorte não o deixei escapar.

Sem comentários: