segunda-feira, março 21, 2011

The Prime Minister’s speech (as delivered by the Chancellor of the Exchequer)

Não esta que passou, mas a sexta anterior, foi dia de dois discursos.

À noite, o do rei Jorge VI de Inglaterra. Gostei do filme: foi-se ao que a História tem para dar e ensinar, quis-se fazer bem e saiu bem feito. Às vezes, a perfeição técnica pode tornar-se uma obra de arte – veja-se um Ferrari. Colin Firth, Geoffrey Rush e Helena Bonham Carter actuam esplendidamente ao contar-nos como um homem ajudou outro a vencer-se a si próprio e a cumprir o seu destino.

O enredo de “O discurso do rei” romanceará certamente um pouco as situações, os diálogos, os sentimentos dos personagens, mas o discurso do rei, esse, é igualzinho ao verdadeiro que se pode ouvir aqui na “Internet”.

Calculo que não terá sido um momento fácil. O discurso anuncia uma guerra a um povo que ainda tinha na memória o horror das trincheiras de França e o destroçar de uma geração de jovens. Jorge VI justifica-a pelos valores que estão em jogo, os que a Alemanha queria impor e os que a Inglaterra queria defender. E não usa figuras de estilo quando se trata de dizer o que se passa e o que se vai seguir: “estamos em guerra”, “a tarefa será dura”, “podem vir aí dias negros”, “a guerra hoje já não se resume só ao campo de batalha”. Mas logo de seguida, naquela que é a chave do discurso, se percebe porque não ilude com rodriguinhos as provações que estavam para vir: “we can only do the right as we see the right”, só podemos fazer o que está certo se virmos o que está a certo. Apenas assim, partilhando a verdade, ele podia pedir aos que o ouviam que estivessem “prontos para qualquer tarefa ou sacrifício que possa ser exigido”.

O discurso é curto, simples, directo e, sobretudo, não é paternalista. Não trata os seus destinatários como imbecis porque quem o profere tem a percepção que só pode unir as pessoas numa causa tão difícil se falar verdade e sem rodeios.

Para além do filme, sabemos hoje que Jorge VI e a sua mulher Isabel granjearam o afecto do seu povo, após alguma hostilidade inicial, partilhando os riscos e (alguns) sacrifícios dos londrinos durante a Batalha de Inglaterra. Escaparam por pouco à morte aquando de um bombardeamento do palácio de Buckingham em 1940. O papel de Isabel na manutenção do moral dos ingleses foi tão de monta que Hitler comentou que ela era a mulher mais perigosa da Europa. Surpreendeu-me há cerca de dez anos atrás, num período em que ia muito a Londres, o respeito e o carinho que ingleses da minha geração ou mais novos ainda sentiam por ela, a “Rainha-mãe”, apesar de na altura a consideração dos súbditos pela monarquia andar muito cá por baixo. A um ponto tal que alguns até achavam exagero. Por exemplo Mark Steele, que em “Vive la révolution”, usa a rainha-mãe como protótipo de um apego dos britânicos à realeza que os pode levar – cito – ao “abandono completo do pensamento racional”:

“Quando a Rainha-mãe morreu fomos todos informados por infindáveis fontes dos seus gloriosos talentos, com um documentário a insistir que ela era uma ‘grande dançarina’ e ‘tremendamente perspicaz’. Fiquei à espera que o locutor continuasse com ‘também inventou o CD ROM e uma vez ganhou 38 a 7 às Índias Ocidentais’. Os noticiários estavam cheios de personagens como Norman St John-Stevas declarando que ‘Sabes, nunca teríamos ganho a guerra sem ela. Todas as noites pegava num Spitfire e enfrentava a Lutwaffe sobre o canal da Mancha. A RAF queria impedi-la mas ela insistia. Sabes, uma noite foi abatida sobre a França ocupada e ainda conseguiu regressar na manhã seguinte a tempo do render da guarda.’”


Acaba por ser um parágrafo simpático para com a memória da senhora: um bom momento de humor britânico ainda constitui a melhor homenagem que um inglês pode receber.


Durante essa mesma sexta, na televisão e na “Internet”, fui apanhando os ecos do outro discurso: o nosso ministro das finanças anunciava a redução das pensões, a redução de comparticipações no IRS, a redução de custos com a saúde e a educação, a subida de alguns impostos. PEC 4, portanto. Alguns dias depois de o governo ter dito que nada disto era necessário.

Esta receita não é obviamente dele, ministro, foi ditada pela União Europeia e em particular pela Alemanha, que hoje nos tutela e convoca como nos séculos XVIII e XIX a Inglaterra o fazia. E o discurso do ministro das finanças não é obviamente dele, é do primeiro-ministro. Que, tristemente, na hora de dar más notícias mandou alguém. Não o vi olhar as pessoas nos olhos e dizer: vêm aí dias negros, a situação do país é esta, o que vai acontecer é isto e senão a alternativa era aquilo.

Há pessoas que têm essa característica: só conseguem transmitir boas novas, reais ou imaginárias. À noite lá apareceu no telejornal, em Bruxelas, comentando este pacote com a distância com que se poderia falar de uma ocorrência em Nairobi ou de um acidente no México. A execução orçamental vai bem, para não dizer muito bem – afirmava. Muito bem será expressão grande demais para o momento, julgo eu.


Se o nosso primeiro-ministro ou outros que o precederam estivessem em 1939 sentados no trono do império britânico, mandariam um ministro fazer o seguinte discurso:

“Por razões que se prendem exclusivamente com o contexto político europeu, com o qual não temos nada a ver, iremos manifestar de forma veemente à Alemanha o nosso desagrado com a invasão da Polónia, nos termos dos tratados que temos firmados com os nossos aliados. Tal poderá acarretar alguns sacrifícios, que esperamos breves, por parte dos ingleses, mas o governo irá trabalhar todos os dias para minorar os inconvenientes que esta situação possa acarretar para a maioria dos cidadãos.”

Seguia-se uma conferência de imprensa:

- Senhor ministro, quer isso dizer que estamos em guerra com a Alemanha?
- Sabe, penso que não devemos dramatizar com palavras que só podem contribuir para uma instabilidade que o país não precisa neste momento. O governo vai acompanhar a par e passo a situação e tomará as medidas adequadas em função do desenrolar dos acontecimentos.
- Iremos enviar tropas para o continente?
- As nossas forças armadas estão capacitadas para exercer a sua missão em vários cenários possíveis, em função do que as contingências determinem.
- A Alemanha vai bombardear-nos?
- A nossa previsão aponta para que, mesmo que se confirmasse a eventualidade – que não esperamos – de algum avião sobrevoar o nosso território, as bombas alemãs não atinjam o solo, ficando estáticas a 348 metros de altura, no cenário inferior.
- Mas senhor ministro, a generalidade dos analistas militares têm afirmado que as bombas quando largadas atingem o solo.
- Não quero neste momento especular sobre um cenário que ainda não se verificou nem creio que se venha a verificar.
- Mas senhor ministro, o chefe do gabinete-sombra, Dr. Peter Steps Rabbit afirmou recentemente que uma bomba no chão explode e mata a gente!
- No plano teórico, é possível que uma bomba possa, sob efeito de uma onda de pressão interna inerente a uma reacção química, perder a sua unidade material e perturbar dessa maneira a continuidade de unidades biológicas de carbono que se encontrem na vizinhança. Mas eu não queria embarcar nessa atitude da oposição de politização de uma questão que é do interesse nacional e que requer, antes do mais, estabilidade.

And so on…

Não discuto aqui, neste momento, da necessidade das medidas, nem das causas, nem das culpas. Fico-me para já um passo atrás. A pensar que só podemos fazer o que está certo se virmos o que está a certo, como disse Jorge VI. Que as pessoas só compreenderão se lhes falarem a verdade nos olhos, sem subterfúgios, sem politicamente correctos, sem panos quentes, com a hombridade que os momentos requerem.


Recordo, em tempo da minha vida, duas crises financeiras desta magnitude, com FMI à mistura. E recordo o primeiro-ministro da época, ele próprio e mais ninguém, a dirigir-se aos portugueses a explicar que a coisa estava preta e o que tinha que ser feito. Podia ter muitos defeitos, mas esta lisura ninguém lha tira. Pena que o exemplo não tenha pegado, parece-me que desde então.

1 comentário:

Cristina Rodo disse...

Muito bom! ;)
(ando a ler para trás)