domingo, março 27, 2011

Elas

Dia 23 próximo passado, o Técnico, onde burlei cinquenta regentes assegurando assim meu canudo e onde, faz em Dezembro vinte anos, dou uma perninha professoral, promoveu uma bonita iniciativa.


Homenageou as “mulheres do Técnico” através de três senhoras que, cada uma à sua maneira, desafiaram os “cânones da sua época”, expressão fina para “estupidez dos seus contemporâneos”, iniciando carreiras ou atingindo metas até então socialmente reservadas aos homens.


São elas a Engª. Maria Amélia Chaves, a primeira engenheira portuguesa, a Profª. Isabel Maria Gago, a primeira professora numa escola de engenharia nacional e a Profª. Sílvia Marília Costa, a primeira catedrática em engenharia de Portugal. Todas puderam felizmente estar presentes.


A Engª. Maria Amélia Chaves tem hoje cem anos. Contou ela numa entrevista recente o seguinte sobre a sua ida para o IST:


"Quando eu entrei, era suposto ir para Química, e mesmo isso já não era muito do agrado dos homens. Quando viram que eu ia para Civil é que “rebentou a bomba”. Os professores eram meus amigos mas só me diziam “Ó menina, mas o que é que vai fazer? O que é que vai fazer quando sair daqui?”".


Pois que fez a menina quando saiu? Trabalhou em fiscalização de obras na Câmara Municipal de Lisboa, tendo depois feito projecto. Foi a primeira pessoa em Portugal a desenvolver cálculo anti-sísmico aplicado à construção civil. Desenhou o seu último trabalho com oitenta e dois anos. Pelo meio foi mãe de cinco filhos e avó e bisavó.


A Profª. Isabel Maria Gago tem noventa e seis anos e foi uma das duas primeiras licenciadas em engenharia química de Portugal. Não sei se ainda, mas pelo menos até há pouco subia e descia a pé diariamente os três andares do prédio onde mora junto à faculdade, para ir passear.


A longevidade destas senhoras, que faço votos que perdure, demonstra que a independência de espírito deve fazer bem à saúde.


Ao ouvir ou ler hoje os seus depoimentos, vemos que estas mulheres assumiram o seu papel de pioneiras e percorreram o seu caminho com a candura e a naturalidade de quem simplesmente quis. Nasceram num mundo imbecil, de marialvismo e hipocrisia, em que a lei e, pior, a norma estigmatizavam a mulher como ser inferior. Pois estiveram-se nas tintas, não ligaram e simplesmente viveram a vida que desejavam viver. O que é a forma mais potente de mudar o mundo à nossa volta.


Enquanto esta celebração decorria, burocratas em Bruxelas, sempre a navegar a onda lodacenta do politicamente correcto, azafamavam-se a engendrar uma directiva que obriga as empresas a reservar quotas para mulheres nos seus conselhos de administração.


Na mesma peça jornalística em que soube deste devaneio comunitário, três mulheres portuguesas administradoras ou presidentes de grandes empresas comentaram a novidade com um “Quotas? Nem pensar!” . A Profª Sílvia Marília Costa, num seu depoimento na “Internet”, refere por acaso o mesmo. Esta posição de rejeição talvez surpreendesse os mal-preenchidos crânios eurocratas. Não entenderão tão focadas mentes que para as mulheres que pelo seu trabalho, seu mérito e suas circunstâncias atingiram ou procuram atingir altos patamares, as quotas representam um insulto.


Sei-o de fonte segura. Descobri-o ao longo da minha vida profissional. Fui chefiado por homens, mas também por senhoras. Com todos aprendi, coisas diferentes, de igual modo. Recordo colegas extraordinárias, mulheres de grande visão e talento, com quem foi um prazer trabalhar. Tenho a sorte de ter hoje, na equipa que coordeno, mulheres que são exemplos de dedicação, lealdade, eficiência e inteligência. Nenhuma destas precisa de quotas para chegar a lado nenhum. Acredito que quase todas, senão mesmo todas, repudiariam quotas e percentagens e facilidades. O mérito chega e sobeja, pelo que encaram a igualdade sem receio. E se alguma diferença há, é a favor delas: tenho a impressão que em média são mais cooperantes, mais concentradas nos objectivos, mais jogadoras de equipa e mais subtis que os homens, cuja irremediável imaturidade os leva muitas vezes a preocupar-se mais em mostrar-se a si do que em mostrar resultados.


Admito que nalgumas situações muito particulares a discriminação positiva seja necessária para resolver iniquidades sociais. Não é o caso. As mulheres não precisam de favores nem de quotas que viriam apenas lançar dúvidas injustas sobre a sua competência e que seriam fatalmente usadas para bocas foleiras de urinol. Precisam, elas como nós, que a sociedade se organize e crie condições para que maternidade e actividade profissional se harmonizem. Uma sociedade que não protege as suas mães e as suas crianças, além de fazer triste figura, não vai longe, até por razões meramente matemáticas.


Como aparte, lembrar que não devemos cair no pólo oposto que trata paternalistamente as mulheres que optam por abandonar o trabalho para se dedicarem exclusivamente aos filhos. Conheço mulheres que, tendo uma sólida carreira e sendo grandes oficiais de seu ofício, optaram por ser mães a tempo inteiro. Dispunham dos apoios necessários e das condições financeiras para compatibilizar o trabalho e a família. Sabiam que, provavelmente, não conseguiriam voltar mais tarde ao mercado de trabalho. Mas livremente escolheram. Não consigo deixar de sentir uma funda admiração pelo exemplo de altruísmo e devoção que personificam. As “pietá” não são todas de mármore.


O machismo ainda atormenta, tal como a fome, a miséria ou a guerra, uma parte substancial da humanidade. Aliás todos estes flagelos parecem andar correlacionados. Em muitos países as mulheres são oficialmente cidadãos de segunda, que por lei não podem guiar um carro, usar umas calças ou desobedecer ao marido. Noutros, se bem que teoricamente protegidas pelo texto legal, são abandonadas à sorte de viver vítimas de “soi disant” homens – pais, irmãos, maridos, vizinhos – que as tratam como gado reprodutor ou como uma sexualidade de serviço. Estes fulanos são pedaços de merda cobardes que se borrariam pelas pernas abaixo se tivessem que estar entre quatro paredes com uma mulher de igual para igual. Mas infelizmente frouxos destes ainda dominam muitas sociedades por esse mundo fora.


No nosso canto do planeta somos algo melhores, mas não estamos livres de formas mais subtis de machismo. Nós, homens, ainda ajudamos mais do que partilhamos as tarefas domésticas – eu, pecador, me confesso. A sociedade continua a tolerar excessivamente o homem que agride uma mulher ou que se pira e não paga a pensão aos filhos. Ainda nos horripilamos pouco com coisas com que devíamos: por exemplo, quantos daqueles que acham legítima uma intervenção militar para proteger os líbios ou os kosovares ou outros quaisquer pensariam o mesmo duma intervenção armada num país africano ou asiático para acabar com práticas de excisão generalizada? Desconfio que poucos. Teríamos a mesma complacência se num dado país dessem para capar sistematicamente todos os rapazes? Não creio. No entanto, a mutilação genital feminina é uma forma de tortura e um abuso de uma barbárie absoluta que afecta cerca de dois milhões de crianças por ano. E praticada, estima a Amnistia Internacional, em cerca de 135 milhões de mulheres actualmente vivas. Haverá maior crime contra a humanidade do que isto?


Evoluímos bastante em Portugal no que toca à igualdade de género desde os tempos em que a presença da Engª. Maria Amélia Chaves numa obra provocava escândalo. Esta senhora provavelmente ainda precisou, por lei, da autorização do marido para viajar para o estrangeiro. Setenta anos volvidos, mais de metade dos nossos estudantes universitários são do sexo feminino. Em 2040, essas raparigas terão uma influência generalizada na sociedade portuguesa. Espero que consigam fazer melhor que os homens que as precederam.

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