The instrument (the telescreen, it was called) could be dimmed, but there was no way of shutting it off completely.
George Orwell, in “Nineteen eighty-four”
Para dar lustro a artigos e discursos, imprensa e políticos costumam referir-se ao cafarnaum em que vivemos como “sociedade da informação”. De facto, porque não? Ele é “Internet”, cem canais de cabo a acotovelar-se do ecrã para fora, “esse-eme-esses” a apitar ao minuto, caixas de correio electrónicas atulhadas com cinco mil mensagens para abrir quando um dia houver tempo, redes sociais que nos convidam para ser amigos delas, a TSF a lixar-nos o juízo logo pela manhã na fila de trânsito, a edição livreira a oferecer-se colorida nos hipermercados ao lado da banca dos espargos, os chatos dos “chats”, o tele-trabalho que nos persegue quando saímos do trabalho, música privada nos micro-auscultadores em passeios alucinados pela rua, jornais à borla nos semáforos e tudo o mais que vá passando pela cornadura do demo, que há séculos que não se divertia tanto.
O pessoal, com tanto brinquedo na mão, atrapalhou-se e fez confusão. Baralhou a “sociedade da informação” com a informação da sociedade e deduziu que andava informado. Erro grave. Anda muito menos informado que dantes, no tempo não tão longínquo das cabines telefónicas e da moeda para comprar o diário.
Define-se “sociedade de informação” como uma sociedade em que a produção, troca e manipulação de informação tem um peso económico, político e cultural relevante. E estamos claramente nessa. Uma parte muito importante do produto dos países mais abonados provém hoje de actividades económicas ligadas à informação. Os governantes e as oposições gerem a sua agenda em função de critérios informativos, que consequente e imediatamente se tornam critérios políticos. E em termos culturais, não haja dúvida sobre a relevância: ficar sem bateria no telemóvel gera hoje um pânico semelhante ao que teriam sentido nos tempos das Descobertas os náufragos agarrados a um madeiro quando percebiam que estavam a dez dias de nado da costa do Malabar.

No campo dos comportamentos, mudou-se muito e às vezes muito comicamente. Por exemplo, ainda temos no nosso vocabulário a expressão “andar a falar sozinho” para referir um tipo que não bate bem da bola. Mas hoje já não nos surpreendemos se o desconhecido que desce tranquilamente a avenida ao nosso lado de repente começar a debitar inanidades como se lhe tivesse partido um pistão no cerebelo. Provavelmente terá um auricular sem fios pendurado na orelha e o telelé no bolso e lá seguirá, ligeiramente errático, arriscando o atropelo nas passadeiras, falando por farrapos.
Outro efeito comportamental engraçado advém do sentimento de isolamento que estas traquitanas induzem. A malta pensa que está sozinha. Quando ouço um telefone a tocar numa mesa vizinha no restaurante, já sei que vou ouvir o que não me faz falta: de meras instruções para não esquecer de fazer a cama a picantes revelações sobre o modo como a cama foi desfeita. Tudo em voz muito alta, porque o ser humano se esquece que inventaram o microfone justamente para não ser preciso berrar.
Perante o cenário, apetece gozar com aquele anúncio da Zon Multimédia: “Lá em casa somos dois nhurros, três alienados e um jerico. Se podia viver sem esta bodega toda? Podia, mas não era a mesma a coisa.” De facto não era, porque informação e conhecimento não são a mesma coisa. Estar informado passa por perceber o que é central nas causas e nas consequências dos factos, por outras palavras por conhecer, por saber.
Ora o grande problema são dois. Por um lado, a transformação de informação em conhecimento não opera por milagre. Levar com a SIC Notícias no plasma da sala de espera do consultório, enquanto se aguarda pela broca do dentista, não nos informa só por si. Há que levantar o cu da cadeira, criticar a informação recebida, procurar outra se essa não servir, pensá-la. Por outro, a quantidade da informação hoje disponível parece inversamente proporcional à qualidade, que é muitas vezes miserável. Esta fraca valia da informação oferecida obriga a uma ainda maior iniciativa na procura da verdade.
A disponibilização maciça de informação, na “net” por exemplo, fomentou uma descida da nossa capacidade de selecção e, consequentemente, uma mais fácil divulgação do disparate. Antes, se eu quisesse saber qualquer coisa sobre plantio de couve-galega, procurava quem soubesse algo ou ia à cata de um livro sobre o tema e verificaria se o autor tinha algumas credenciais relevantes (ter canudo de agrónomo, por exemplo). Hoje farei uma pesquisa no “Google” e vou poder escolher entre 2,520 interessantes entradas contendo “plantio”+”couve”+”galega”. Naturalmente vou-me ficar pelas dez primeiras, que algum obscuro algoritmo binário decidiu por mim serem as mais relevantes. E poderei não ter a certeza se o que vem nesses “sites” é verdade ou mentira.
“Googlar” pode ser um exercício divertido, com resultados surpreendentes: a única visita que o “Mataspeak” recebeu de Angola foi de um senhor que queria saber – e “googlara” – “onde se vendem comprimidos de alfafa em Lisboa”. Acabou no meu texto “a porra da dieta” que contem, isoladamente, todas essas palavras. Ficou a conhecer as minhas angústias sobre os níveis de HDL mas continuou a zero sobre qual a botica alfacinha onde comprar tão salutares pílulas.

Para além de não corresponder sempre ao que nos interessa, a maioria da informação da “Internet” não presta, pura e simplesmente. Há tempos li num blogue que acompanho uma notícia sobre casamentos organizados pelo Hamas entre guerrilheiros barbudos e meninas de sete, oito anos. Na fotografia lá estavam eles de fatinho e elas de vestido branco, numa variante pedófila das noivas de Santo António. Pesquisei na rede e noventa e muitos por cento dos resultados do “Google” corroboravam esta horrível versão. No entanto, uma pequena minoria de “sites” apresentava uma panorâmica diferente. Tratava-se de um casamento colectivo entre membros do Hamas e viúvas de guerrilheiros mortos na última invasão da Faixa de Gaza por Israel, todas para cima de vinte e cinco anos. As verdadeiras noivas estariam vestidas de negro, assistindo à cerimónia em lugar diferente dos homens e as miudinhas eram familiares dos noivos. Os poucos “sites” que assinalavam esta menos odiosa versão pertenciam a jornais ocidentais. Muitos destes citavam um repórter do canal britânico “Sky”, que assistira e filmara a cerimónia. Os restantes, que propalavam convictamente a má natureza dos árabes que violam criancinhas eram na sua maioria blogues ou comentários, em grande parte anónimos. Na “net”, o erro tem a vida fácil, ao coberto da impossibilidade de tudo verificar. Concluo que na “Internet” funciona a máxima de Goebbels: uma mentira mil vezes repetida torna-se uma verdade.
Isto também ocorre porque as pessoas conferiram à “Internet” uma autoridade que ela não tem. Num dos meus primeiros “posts” mandei uns bitates sobre uma pintura de Brueghel, o Velho. Para minha surpresa, esse texto está no “site” de uma escola secundária, posto lá por uma professora de História, para proveito dos seus alunos. Muito me honra, mas sou tão especialista em pintura flamenga como em alinhar calçada portuguesa. Não teria sido melhor ir à biblioteca buscar um livro de história da arte escrito por alguém que percebesse?
Umberto Eco, no seu livro “A passo de caranguejo”, explica esta apetência por aceitar cegamente tudo o que sai de um “gadget” electrónico com o seguinte e curioso raciocínio. Segundo ele, a tecnologia ocupou nas sociedades modernas o espaço que a magia (ou a superstição) ocupava na Idade Média, ambas opondo-se, cada uma em seu momento, à ciência. A tecnologia (e antes a magia) proporcionariam visões fáceis e apetecíveis sobre a realidade. A ciência, o conhecimento, em todo o tempo implica esforço e é por isso mais chata.
Mas isto não pára aqui. Em paralelo, talvez porque a formação dos jornalistas e a sua preocupação com a verdade se tenha deteriorado, talvez porque as circunstâncias do mercado mediático a isso obriguem, a qualidade da informação prestada pelos meios ditos “sérios” (jornais de referência, telejornais) também vem fraquejando. Hoje, os jornalistas parecem orientar-se mais para um negócio de gestão de expectativas dos leitores e espectadores do que para uma honesta tentativa de aproximação à verdade. A notícia passou a ser desenhada em função do eco que vai encontrar nos destinatários. Por isso, cada vez é mais “sound byte” e “slogan” e menos conteúdo e raciocínio. Antes isto chamava-se sensacionalismo, mas temo que o termo mais correcto já seja fascismo mediático.
Poderia apresentar como exemplo o modo como o mito da gripe A se constrói diariamente na televisão: as pessoas querem medo, dê-se-lhes medo. Mas vou usar outro, ocorrido em 2008, quando se verificaram tumultos no Tibete reprimidos pelas autoridades chinesas. Na televisão e na maioria dos jornais a versão era “chineses maus reprimem tibetanos bons”. Citava-se a opinião do Dalai-Lama como notícia verdadeira e a versão contrária do governo chinês como notícia falsa confirmadora da notícia verdadeira. Isto é típico. No mercado ocidental da informação, a cotação do PC Chinês é baixa, na minha opinião de forma mais que merecida. Já o Dalai-Lama cota muito alto: representa um povo ocupado por tipos antipáticos que busca a auto-determinação, tem aquele ar avozinho, emana exotismo oriental. Está nitidamente na moda. Nunca ninguém lhe pergunta se instauraria no Tibete um regime teocrático como o que lá estava antes dos chineses ou se se submeteria a eleições correndo o risco de passar o poder para um não-iluminado. Também não interessa: o Dalai-Lama é um refúgio confortável para as boas consciências ocidentais. Ora a versão oficiosa parecia-me pouco convincente. Fui por isso à procura do que se teria passado. Consegui encontrar, em “sites” de jornais neozelandeses e australianos as versões de jornalistas que tinham testemunhado os acontecimentos “in loco”. Aparentemente, os tibetanos tinham orientado a sua fúria contra tudo o que apanhassem pela frente que fosse diferente: população chinesa local, minoria muçulmana, agredindo e inclusivamente matando. Por outras palavras: racismo puro e duro. Afinal, os tibetanos, quando em turba, comportam-se como os outros. Muito pouco conveniente face ao que as pessoas estariam à espera e por isso simplesmente silenciado pelos “media” que julgamos muito livres.

Neste mundo mais de ruído que de verdadeira informação, que fazer então? Desconectar-se da rede, lançar o telemóvel pela janela, ir morar para uma cova nas serranias? Não. As tecnologias de informação são o nosso presente e o nosso futuro. São ferramentas utilíssimas de trabalho que podem promover riqueza, gerar conforto, fomentar arte e salvar vidas. Temos simplesmente que perceber que não lhes devemos mais consideração que a um serrote ou uma chave-inglesa. E que a luxuriante era de informação abundante e disponível ao toque de um dedo não nos alivia da tarefa de pensar e procurar a verdade. Pelo contrário. Neste admirável mundo novo, podemos ser mais capazes mas também mais facilmente seremos manipulados se nos pusermos a jeito. Por isso temos para com nós próprios uma obrigação de ser mais críticos, de procurar mais, de pensar mais, de ler mais, de estudar mais. Em suma, de agir mais. De ser mais exigentes. Senão, andaremos de cavalo para burro mais depressa que julgaríamos possível.
Tive um professor no Técnico que nunca usava a palavra “computador”. Dizia-nos: “agora, é só usar a máquina estúpida”. Lição verdadeira e magistral: por muito sofisticada e glamorosa que pareça, a máquina tem que ser estúpida e nós temos que ser inteligentes.
E, de vez em quando, desligar tudo e passear de mão dada à beira-mar.