sexta-feira, outubro 30, 2009

Um dia numa vida

I read the news today, oh boy


The Beatles, in “A day in a life”


Pela manhã, entrando no prédio onde trabalho e uma colega vestida de negro saindo. A um velório: uma amiga a quem morrera o filho, vinte e oito anos, assaltado numa caixa de Multibanco, projectado ao chão, três dias de coma e um fim inglório logo a começar o meu dia.


Subo ao meu piso e sobre uma mesa encontro um DN. Na capa, ilustrando o atentado da véspera em Peshawar que matara uma centena de pessoas, uma fotografia de uma das crianças vitimadas. Um homem carregava o pequeno corpo alquebrado, um homem velho de ar atarantado, não sei se pai, se parente, se apenas um gajo perdido no meio da confusão a quem tocara naquele dia sobreviver para carregar um miúdo morto nos braços. Pensei mostrar aqui essa imagem mas não a encontrei na “net”. Provavelmente ainda bem.


Na caixa ao lado, noticia-se a morte da primeira criança portuguesa vítima da gripe da moda, trágica e involuntária vedeta por uns dias: se saudável ou já doente, se assistida a destempo ou não, se e se e se… Se ao menos interessasse… Penso: não se estilhaçou já o sentido disto tudo, não se rasgou já o universo ao meio? Vezes e vezes sem conta por esse planeta fora e ainda são só nove e tal da manhã.


Olho pela janela. Na Rotunda, vistos de cima, os carros circulam concêntricos num simulacro de ordem. O frenesim do trânsito chega coado pelo vidro e pelos oito andares de altura. À minha volta gente afadiga-se, circulando de papéis na mão ou teclando metodicamente, olhando para um ecrã. Algures na memória de um computador longínquo, acumularam-se “bits” importantes que me estavam ao que parece destinados. Respondo a essas mensagens. A propósito de uma, falo ao telefone em “portunhol”. De outra, calculo uns números. Outra ainda, preparo uma reunião. Penso: curioso como a caixa de correio electrónica me chefia mais do que as minhas chefias.


Durante estas tarefas continuo assombrado pelos fantasmas sem cara dos três rapazes. Em momentos assim sinto-me grato por ser ateu. Sempre é mais fácil aceitar que o mundo se construiu ao acaso, estúpido e caótico, como uma cidade de castelos de cartas que se desmoronam com um sopro mas em que vivem pessoas que talvez ilogicamente desenvolveram uma aspiração pela felicidade. Penso: o que deve ser mesmo insuportável, dolorosamente insuportável, é encaixar os acontecimentos da manhã nos conceitos de omnipotência, bondade superlativa e sei lá mais o quê de um criador qualquer. Só por masoquismo.


Saio para a minha reunião, subindo a pé a Fontes Pereira de Melo. Penso: hoje estou vivo e bem e quem eu amo também e devo estar grato por um dia assim. Por cada dia assim. Por não ter nascido em Peshawar e por não me deslocar ao mercado para morrer esfacelado ou carregar um morto nos braços, correndo como um louco, salpicado de sangue e carne. Por ter um almoço à minha espera antes da reunião, que pagarei com um cartão de plástico e não com anos de vida. Por viajar para o estrangeiro na TAP e não nos caminhões de caixa fechada dos engajadores. Por ser razoável esperar que os meus filhos, já entradotes, me verão um dia partir com o sentimento de que foi porreiro.


Tenho a minha reunião, numa mesa comprida demais. Parecemos formigas num pau de gelado. Corre razoavelmente. Saio para dar uma aula. Corre bem: vejo caras interessadas, ao princípio inquisitivas, depois serenas. De vez em quando um riso abafado, o riso dos vinte anos. Sinto-me útil pela primeira vez no dia. Talvez mesmo na semana. Regresso ao trabalho a pé. Cruzo-me com muita gente. Penso: estatisticamente, todas jantarão hoje, nenhuma morrerá de malária, a maioria tomará um banho de mar no verão ou entrará num café num dia frio do próximo Inverno para gozar uma bica quentinha; também estatisticamente, umas quantas andarão a ansiolíticos, procurando a infelicidade ao virar de cada esquina de Lisboa. Para tal, mais fácil em Peshawar. As pessoas são estranhas, cantava o estranho Jim Morrisson.


Volto para casa. Cruzo-me com o vizinho de cima. Um tipo óptimo, que não dispensa um sorriso e um bacalhau, apesar de não sabermos bem o nome um do outro. Que aproveita os seis pisos de viagem do elevador para falar em vez de olhar para os pés ou para o tecto.


Durante o jantar, assisto a Mário Crespo a entrevistar António Lobo Antunes. Contrariamente a Saramago, que está mumificado, Lobo Antunes está velho, optimamente velho. Com uma humanidade de eleito, fala como escreve. Diz a frase que vale o dia: “Tenho que viver com os meus amigos que já morreram. É uma responsabilidade fazer com que eles vivam dentro de mim com dignidade, com a mesma dignidade com que viveram fora”. Mais ou menos isto. Penso: no meu pai. Comovo-me um pouco, mirando os restos de salada que ajardinam o fundo do prato.


Dou uma volta pela casa. Um dos rapazes lê Vítor Hugo, resignado, pressionado pela data de um teste, iminente. Abençoados testes que velam pela vitória de Hugo sobre Horatio Caine, que à mesma hora ajeita os óculos escuros após mais um crime desvendado no AXN.


Sento-me ao computador, coloco os auscultadores, oiço o “Sticky Fingers” dos Stones, escrevo este estado de alma. A dado momento, no “iPod”, Mick Jagger canta o “I got the blues”. Comovo-me outra vez, desta vez com direito a lágrima ao canto do olho e tudo.


Penso: o vizinho de cima, Lobo Antunes, Mick Jagger. Nestes tempos pouco bíblicos, os anjos andam à paisana.

2 comentários:

Unknown disse...

Intenso... Às vezes, nessa linha de pensamentos, penso "e que faço eu para tornar este mundo melhor...?"

Parece que chega transmitir valores morais correctos à prole, ter uma atitude não bélica, ter a capacidade para reconhecer os momentos que descreves como trágicos e dedicar-lhes alguns minutos... Mas chegará?

Em conversa no outro dia com um nosso amigo em comum que gosta de enviar mails a despoletar a ira de Ra, perguntava-me ele: Que farias se ganhasses o Euromilhões? Respondi que entre outras coisas dava a maior parte.

- Isso é a resposta fácil, mas C"#$%os ma F&%$#"m se eu não tinha capacidade para fazer EU qualquer coisa para melhorar o mundo com o dinheiro!


http://www.cultureunplugged.com/play/1081/Chicken-a-la-Carte

Sempre um prazer ler-te.

kisses
©

Alex disse...

Há dias que doem se os pensarmos, e se não pensarmos somos umas bestas... Negando-nos a possibilidade real de termos dias bons, mesmo bons, muito bons.

Quanto ao masoquismo do crente... (e não me refiro a um senhor das barbas omni-seja-o-que-for, não vou por aí...)hum... talvez um dia tenhamos a chance de uns quantos dedos de conversa; seria um prazer.