domingo, outubro 11, 2009

Beggar State Thief

Nesta semana, uma reportagem do telejornal no campo militar de Santa Margarida, por ocasião do dia da Defesa, prendeu a minha atenção. O meu avô paterno trabalhou em Santa Margarida, no pessoal civil. Pelos meus dez anos, mais coisa menos coisa, num dia solarengo de verão, levou-me consigo pela manhã para uma das mais memoráveis jornadas que tenho na lembrança. Viajámos num autocarro militar que recolhia pelas terras da vizinhança um misto de tropas e civis de boca bocejante e olhar ensonado. Lá chegados, confiou-me a um grupo de soldados, com os bigodes e as patilhas da época, para uma volta pelas instalações:


- Esteja descansado, senhor Mata, a malta cuida dele.


E assim cuidaram. Pendurei-me em cordas no campo de treinos, macaqueando a distância segura do chão, visitei o interior de blindados, carregando em tudo o que era botão e quase caí ao chão arrastado pelo peso de uma G3 que me atiraram para os braços magricelas, rindo-se:


- Então, pá! És homem ou não és homem?


Eu, ser, queria, mas nunca imaginei que uma metralhadora pesasse tanto. Uma manhã em cheio, mas o melhor estava para vir. Próximo da hora de almoço, antes de me devolverem ao meu avô que por essa altura carimbaria requisições numa secretária não muito distante, passámos nas camaratas onde cada um tinha, junto à cama, um cacifo metálico, cada cacifo com sua porta, cada porta forrada no interior de alto a baixo com fotografias de mulheres nuas.


Senti-me invadido por um aprumo marcial como até então não experimentara. Perante o meu ar basbaque, os magalas gozavam:


-Olhó gajo…

- Em Lisboa não vês tu disto, pá!

- Ó pá! Ainda não conhecias isto, pá?


Percebi pelas deixas que tinha que pôr uma expressão entendida e balbuciei um “já, já”, tão baixinho quanto mentiroso. Mas por muito indiferença que arvorasse, o rabo do meu olho não descolava dos recortes colados com fita-cola, tanto que tive que ser levado pelo braço até ao meu avô: “Vamos, pá, já chega!”


No regresso no autocarro, o meu avô ia inquirindo sobre a manhã:


- Então, gostaste? Viste tudo?

- Vi tudo, avô – respondi, a minha mente ainda fixada na porta de chapa dos cacifos.



Foi meio-distraído por estas memórias longínquas que assisti à peça sobre os treinos militares, as participações nas missões de paz no Kosovo ou no Afeganistão, as dificuldades orçamentais. Sobre esta última questão, a jornalista foi revelando algo que me deixou quase tão varado como, na altura, a visão das fotografias com que os soldados se consolavam da solidão do quartel. Para fazer face aos encargos financeiros, a unidade contava com os rendimentos de uns eucaliptos e de uns sobreiros que existem no seu perímetro, bem como de seis rebanhos de cabras que por ali vão pastar.


Se isto é verdade, estamos no grau zero de tudo e mais alguma coisa. Uma situação destas diz muito sobre o estado a que o Estado chegou.


Vendo pela vertente cómica: a continuar assim, a Academia Militar poderia ser integrada em Agronomia com as correspondentes sinergias. Um exército que apascenta cabras não precisa de aprender estratégia ou balística. Basta-lhe saber os básicos da ordenha. A militares que exploram sobreiros não interessam conceitos tácticos ou psicologia militar, desde que consigam extrair o corcho sem ferir a árvore. Podiam tentar o trigo: a tropa que alguns acham uma seca deve-se dar bem com culturas de sequeiro. Os pátios de armas darão excelentes eiras e os mancebos, em vez de treinados para andar à bulha, aprenderiam as técnicas da debulha. Consigo imaginar, daqui, novas patentes adaptadas aos novos tempos: primeiro-tenente pastor ou alferes-ceifeiro. A Armada, essa, podia dedicar-se à pesca. E a Força Aérea a puxar ao longo das praias, durante a época estival, bandeirolas anunciando concertos do Tony Carreira e saldos no Ikea, para garantir o pagamento do pré.


Mas olhando pelo lado sério, que é o que deve ser, temos a vertente trágica: este é apenas mais um exemplo da degenerescência que o Estado português vem sofrendo, asfixiado pela incapacidade de se reformar e por aquelas ideias idiotas que proclamam a morte e a maldade absolutas do Estado, absorvidas sem espírito crítico por políticos e periodistas, só porque outros lá fora dizem igual e porque cai bem com a gravata de seda.


O Estado tende hoje a ser mendigo ou ladrão. Por vezes pedincha, como quando vemos os bombeiros nos semáforos, de rifa em punho, batendo aos vidros dos condutores. Outras gama, como atestam certos aspectos de fascismo fiscal ou a caça à multa da EMEL ou as dívidas escabrosas a fornecedores. Noutras, simplesmente circunda a lei, como faz com os milhares de trabalhadores que o servem sem perspectivas e sem direitos, anos a fio a recibos verdes. Noutras ainda, pelos vistos, pastoreia gado caprino, o que sendo um labor honesto não será propriamente a sua vocação. Toda esta situação não é nem moral, nem saudável.


O Estado é um conceito complexo e multifacetado, em termos de ciência política, mas numa democracia não deixa de ser, ou de dever ser, uma emanação de todos nós, povo ou nação. Não é por isso moral que uma entidade que nos representa dê o primeiro exemplo de falcatrua. Sempre que o fizer, será um convite ao fartar da vilanagem.


Como dizia, não é também saudável: um Estado fraco acaba por gerar um “nós” fraco. Não quero com isto dizer que o Estado tenha que ser prepotente ou intrusivo. Existe um espaço para ele e outro para o indivíduo. Um Estado excessivo, seja soviético ou populista, fascista ou teocrático, é sempre uma emenda muito pior do que o soneto. O Estado não tem por exemplo que se meter na esfera moral individual, nem no da iniciativa económica privada. O espaço do Estado é o das funções que só colectivamente se garantem e se justificam: a defesa da segurança será uma delas, a salvaguarda dos mais desmunidos será outra, a vigilância sobre o respeito dos direitos básicos de todos, outra ainda. O espaço que um Estado fraco não ocupa rapidamente se vê preenchido por outras estruturas, muitas vezes com a pecha de não serem eleitas. E quando menos damos por isso, a regra passa a chamar-se “lei do mais forte”.


Claro que haverá aqueles que defenderão, sobranceiros, o cada um por si e ganirão que o Estado atrapalha muito. Mas, enfim, ser civilizado não é congénito. É uma decisão reflectida que uns adoptam, outros não.


Obviamente, todos os Estados possuem defeitos, porque são homens que os fazem, e anacronismos, porque os tempos mudam. Precisam, como certas casas, de permanentes melhorias. Mas é melhor fazê-las do que morar na rua, à mercê da intempérie. Que o digam os milhões com contas em bancos a quem os Estados recentemente safaram a pele.


Em Portugal, as mudanças que o Estado necessita assustam pelo volume. Nalguns casos, só mandando abaixo para construir de novo. Muitas regras básicas de gestão deverão mudar. Só para citar duas, uma simpática e outra não, deveria ser muito mais fácil premiar o mérito e despedir aqueles que abusam descaradamente, que ainda são uns quantos.


Escolhas terão que ser feitas: devemos discutir que dimensão queremos para as nossas forças armadas, que tipo de serviço devem prestar, etc. Podemos até chegar à conclusão que não as queremos de todo e entregar as chaves da nossa defesa no palácio da Moncloa (o que eu acharia um pouco arriscado). Mas tomada essa decisão, que os meios necessários sejam dedicados à sua implementação e que esta não esteja dependente do número de litros de leite que as cabras decidiram dar ou do preço do estere de eucalipto.

1 comentário:

Mac disse...

Concordo, em género, número e grau!