terça-feira, dezembro 01, 2009

Abdulix entre os helvéticos

« -Alors, Obélix, l’Helvétie c’est comment?

- Plat. »


Goscinny e Uderzo, in « Astérix chez les Helvètes »


Anteontem, a Confederação Helvética decidiu em referendo proibir novos minaretes no seu território. Dos vinte e seis cantões, que são a modos como umas freguesias lá deles entaladas entre penedos e comunicando umas com as outras por túneis onde circulam comboios da Marklin em ponto grande, vinte e dois votaram contra as fusiformes construções.


Quando li a nova no jornal ainda fui traído pela minha crescente falta de vista: admiti, por momentos, que a conhecida paranóia suíça pela limpeza os tivesse levado a interditar certas badalhoquices indignas de tão asseado território. Mas esfregados os olhos e focada a notícia, verifiquei que treslera: era de minaretes que se tratava. Mais grave, portanto.


A ideia partiu de dois partidos tidos como ultra-conservadores, a UDC e a UDF, como não podia deixar de ser tendo ambos a palavra “democrático” no nome, que viam nas torres das mesquitas obstáculos à “manutenção da paz entre os membros das diversas comunidades religiosas”. Não sei bem porque é que a visão dos minaretes haveria de fazer perigar a paz religiosa. Possivelmente, a UDF e a UDC acharão que os católicos e os protestantes suíços são uma horda de selvagens que, irritados com a imagem de um minarete recortada contra os níveos picos alpinos, pegarão em catanas e caçadeiras e sairão pelas ruas de Zug ou Appenzell, decepando mulheres de “chador” ou fuzilando crianças com ar moreno. Eles lá saberão a malta que lá têm.


Tudo isto não augura nada de bom. A facilidade com que se vota na Europa em partidos inapresentáveis e em propostas que só à bofetada preocupa-me seriamente. Significa duas coisas: que estamos a perder a batalha contra a intolerância, atirando os balázios sistematicamente para os nossos próprios pezinhos; e que já nos esquecemos do perigo de brincar com o fogo. De facto, passaram setenta anos.


Poderíamos aliviar as nossas consciências considerando que o suíço é um ser tendencialmente esquisito, entalado no dicionário entre o suicida e o suídeo, na linguística entre o alemão e o francês e na geografia entre todo o tipo de montículos que lhe limitam os horizontes. Que durante séculos aquela terra pedragulhosa só produzia mercenários às riscas e buracos no queijo. Que em 1990 ainda havia um semi-cantão em que as mulheres não podiam votar. Que o suíço tem fama e proveito de tudo regrar e de entrar em parafuso quando as regras se desregram, rodopiando sobre si próprio à procura de uma lei que o sossegue.


Poderíamos, mas não podemos. O parágrafo anterior é meramente anedótico. Na verdade, a confederação tem origem numa das mais antigas associações políticas de homens livres, tão velhinha quanto 1291, a sua divisa diz “um por todos e todos por um” e a democracia directa e o reconhecimento da iniciativa, da contribuição e do valor de cada indivíduo são factos historicamente estruturais da especificidade helvética. A Suíça soube manter-se independente entre vizinhos poderosos e tornar-se um sociedade afluente e educada, com cidades cosmopolitas como Genebra ou Zurique que atraem sedes de organizações internacionais, capitais miscelâneos e bons concertos de “rock”.


Assim sendo, este voto não traduz nem tradição ditatorial, nem ignorância, nem fome, nem nenhum outro estado precário que justifique desvarios. Traduz sobretudo medo e ódio, e um ódio consciente de quão vergonhoso: nas sondagens, tendo do outro lado do telefone uma pessoa, os suíços afirmaram ir votar contra a proibição. No escurinho da cabine de voto, sem ninguém para topar, votaram maciçamente nesse disparate cujo único efeito prático será humilhar a comunidade muçulmana local.


Esse ódio vai fazendo o seu caminho, sufragado aqui e ali pelo voto de muitos europeus que se acham mais clarinhos e civilizados: em Itália, na Áustria, na Holanda, em França, na Polónia, os populismos ignorantes vão crescendo como bolores nas fendas abertas pelos regimes democráticos.


Certamente, o fundamentalismo islâmico é hoje um inimigo das democracias. Queira-se ou não, há um choque ideológico em curso. O que não quer dizer que tenhamos que colocar todos os muçulmanos no mesmo saco. Ter uns milhares de inimigos será chato. Mas ter uns milhões é estúpido. E a melhor maneira de tornar muitos dos muçulmanos que vivem connosco numa vanguarda dos fundamentalistas é humilhá-los gratuitamente, empurrando-os para o lado de lá. Como os suíços, essa cambada de “Einsteins”, acabou de fazer.


Surpreende-me ainda o relativo pouco barulho que o assunto causou na imprensa europeia. Quando os “talibans” no Afeganistão arrebentaram com estátuas de Buda, caíram, para além dos budas, o Carmo e a Trindade, que pior barbárie não havia. E com magotes de razão: os “talibans” representam uma versão caricatural e perigosa do que mais básico a imbecilidade humana é capaz. Ora os suíços acabaram de mandar abaixo com minaretes que ainda não foram construídos. Parca diferença e vitória de Pirro. Por cada voto de um suíço rosadinho contra a altura dos minaretes haverá um “taliban” a cofiar a barba, satisfeito por verificar que a sua intolerância é contagiosa.


No fim do dia, o Ocidente tem que meter este conceito na cabeça: ou ganha usando os seus valores fundamentais como armas ou perde. E os fundamentais deverão ser a tolerância e a liberdade, não a proibição e o sectarismo.


Escreveu o barão de Montesquieu, em 1748, no “Do espírito das leis”, o seguinte: “Quando as leis de um Estado crêem dever sofrer várias religiões, é preciso que elas as obriguem a se tolerar entre elas. É um princípio que toda a religião que é reprimida torna-se ela própria repressora: porque assim que, por qualquer acaso, puder sair da sua opressão, atacará a religião que a reprimiu, não enquanto religião, mas enquanto tirania.”


Na Suíça como na Europa, infelizmente, vai sobrando em leis aquilo que falta em espírito.

1 comentário:

NunoF disse...

Monetesquieu também disse:

"Não existem leis justas ou injustas. O que existe são leis mais ou menos adequadas a um determinado povo e a uma determinada circunstância de época ou lugar"

A leis suíças são um espelho do povo suíço.