sexta-feira, janeiro 04, 2008

A tentação esotérica

Cresci e formei-me num meio e numa época em que o racionalismo imperava.

Frequentei, desde pequeno, o Liceu Francês de Lisboa – a minha escola – uma escola muito laica, que nos ensinava que, da Revolução Francesa, interessavam mais as ideias que trouxe do que alguns excessos guilhotinescos, que o século XVIII fora das luzes da razão face à obscuridade da crendice e onde o sistema canalizava os melhores alunos para a área científica, onde um espírito cartesiano era condição essencial de sobrevivência.

Ao fim do dia, saindo os portões do liceu, deparava-me com uma sociedade portuguesa a viver um período “pós-vinte e cinco de Abril” em que a religião, basicamente a religião católica, aparecia associada ao obscurantismo salazarista. As estruturas religiosas existentes em Portugal andaram por isso uns tempos de bola baixa e o país aproveitou a deixa para mudar um pouco a sua mentalidade, especialmente na classe média dos meios urbanos. Debatia-se muita política, e cada um tentava levar o outro a mudar de ideias pela razão dos seus argumentos. Neste processo de mudança, a tecnologia foi muito valorizada – infelizmente mais do que o saber, mas isso é outra história.

Acresce que eu, em criança, lia muito sobre astronomia, física, evolução do homem e assuntos similares e, para mim, Deus encaixava mal naquilo tudo. Andei na catequese entre os sete e os dez anos e tudo o que me lá contavam parecia ilógico, afastado da realidade.

Na verdade, neste mundo de argumentos racionais, de maravilhamento com a ciência e as suas conquistas, de centragem na liberdade individual recém-reconquistada, havia pouco espaço para deuses e divindades. Acreditar em Deus era coisa de avós velhinhas e gente do campo. Se eu soubesse de um colega de escola que fosse crente, logo trataria de lhe fazer notar, com toda a arrogância, quão estúpido ele era ou desencaminhado andava.

Aquando do meu ingresso na universidade, quase todos os meus amigos, que tinham percorrido um percurso similar, eram como eu: ateus, convictos das suas razões, quando não anti-religiosos e anti-clericais.

Vinte e cinco anos passaram e algo mudou. Desse meu grupo de indefectíveis descrentes, mais de metade encetou um caminho a que eles chamam “espiritual”. Normalmente, não pelo regresso à nossa matriz cultural católica mas seguindo por uma via mais introspectiva, de procura pela diferenciação e de algum esoterismo. Um deles anunciou recentemente que vai passar quatro anos isolado do mundo num retiro budista, causando um choque de proporções cósmicas no pequeno universo dos seus amigos, que teve pelo menos a virtude de animar alguns jantares de natal.

Entretanto, eu fiquei na mesma. Talvez um pouco menos radical, porque leio os Evangelhos, o Corão ou ensinamentos budistas com prazer e consigo lá encontrar, por vezes, interessante filosofia, mas continuo ateu e racionalista. E assim sendo, em que acho esses meus amigos diferentes de mim?

Comecemos pelo ateísmo. Eu, como ateu, acho que sou e um dia vou deixar de ser. Não vai haver mais nada, nem consciências universais, nem almas para o paraíso, nem reencarnações em fauna exótica. Nada. Zero. Só umas moléculas por aí. E não é nenhum drama. A vida não deixa de ser coisa boa e continua a fazer todo o sentido. Pelo contrário: cada dia é uma dádiva, só que sem dador, e do que faço em cada dia posso e devo retirar gozo mas também utilidade, contribuindo para a melhoria ou maior perenidade de coisas maiores do que a minha modesta pessoa: o mundo onde vivo, a espécie a que pertenço, a cultura que partilho, a língua que falo, os valores que julgo importantes. Abster-me-ei de incluir nesta lista o glorioso Sporting, porque esse é imortal.

Não consigo deixar de pensar que os crentes não conseguem encarar bem de frente esta fria realidade. De facto, deve ser reconfortante pensar que algo continua depois. O que explica, aliás, o grande número de conversões à vigésima quinta hora, no leito de morte. O medo da morte é algo natural, provavelmente resultante, até, do processo de evolução por selecção natural: calculo que os bicharocos que ficavam, destemidos, a ver os tiranossauros a aproximar-se, deixaram menos descendência do que os cobardolas que se puseram a milhas em grande velocidade. Mas o facto do medo da morte ser natural não impede que o tentemos perceber e dominar, como fazemos ao longo da nossa vida com tantos outros receios.

A recusa da morte física poderia ser emblemática de um desconforto que esses meus amigos sentem com a realidade existente – tantas vezes difícil – e que os leva a deduzir que existe outra realidade, paralela à que é evidente, mas todavia mais perfeita e mais essencial. Essa realidade secreta oscila, consoante os casos, entre regras de funcionamento subtis mas mais poderosas (por exemplo, o equilíbrio “karmico”), que consubstanciam um universo afinal perfeito (a dor, o sofrimento, passam a ter uma explicação, ver mesmo uma razão de ser), até sociedades secretas e herméticas, que controlam a nossa existência, manietando-nos em nome de um bem ou de um mal superiores (neste caso, aquilo que para nós não faz sentido na sociedade aparente em que vivemos é explicado ou, melhor, legitimado pelos superiores interesses dos que secretamente nos controlam).




Para mim, o mundo real é o mundo real. Tem evoluído um pouco para melhor, com alguns altos e baixos. No entanto, paredes ou fronteiras meias com gente feliz, continuam a existir a fome, a guerra, a doença, a iniquidade. É um facto triste, mas tenho que reconhecer que é assim que as coisas funcionam. Consigo encontrar explicação para muitos dos desmandos políticos e sociais que observo no dia-a-dia na dinâmica de poder que se estabelece entre indivíduos e grupos, nas virtudes e sobretudo nos defeitos da humanidade e num ou noutro acaso. Não preciso de dados ocultos ou regras especiais para explicar o que vejo. Aceito, com pesar, que desgraças ocorram, por muito bem que nos organizemos. Não estamos a salvo de que nos morra um filho e que soframos durante toda a vida um sentimento de revolta e injustiça. A vida não é apenas finita, é também arriscada, mas é um risco que vale a pena correr.

Esta diferenciação entre realidade “aparente” e realidade “escondida” levanta um problema prático a esses meus amigos. A realidade “aparente” quadra bem com a realidade aparente, mas a realidade “escondida” não. A realidade “aparente” pode ser descrita por modelos ou medida por aparelhos. A ciência, o saber, são fontes de autoridade poderosas que validam a realidade “aparente”. Perante este problema, observo que são propostos dois tipos de solução: nuns casos, pretendem que a realidade “aparente” é forjada, em mais uma manipulação em proveito da tal sociedade hermética que nos controla; noutros, afirmam que a realidade “aparente” é incompleta, bem como as suas fontes de legitimação, sendo a realidade “escondida” mais global e atestada pela autoridade de certas personagens (mais sabedoras, mais clarividentes, mais experientes, mais perfeitas, mais felizes, em resumo, superiores).

Este é outro aspecto em que me sinto muito diferente destes meus amigos. A noção de que existiriam pessoas com uma autoridade especial que lhes advém de uma superioridade estrutural é uma noção que me horripila, para falar com franqueza. Pela simples razão que uma superioridade estrutural é incontestável. Quem o ataca só pode estar, por definição, errado e pode, no limite, ser calado. Esse limite tende, infelizmente, a ser atingido muitas vezes, como a História demonstra. Uma superioridade moral ou intelectual com um carácter estrutural, permanente, só pode gerar um sistema de ideias que seja fechado, no sentido que Popper deu à expressão, inacessível do exterior.

Na minha opinião, nenhum homem tem uma autoridade intelectual ou moral absoluta sobre outro homem, uma autoridade que não possa em dado momento ser contestada. Claro que existem pessoas mais sábias, mais ponderadas, mais inteligentes do que eu. Claro que faz todo o sentido ouvi-las com atenção e absorver o que têm para nos ensinar. Mas nada impede que eu possa ter razão, num determinado momento, num assunto de que pouco sei, contra o melhor dos especialistas. São as ideias que se confrontam, não as pessoas.

Vou mesmo um pouco mais longe, neste aspecto. Penso que o Homem só o é com as suas virtudes e as suas fraquezas. Cada um de nós pode alterar o seu comportamento, aprender com os outros, aproveitar as suas qualidades e mitigar os seus vícios. Mas será mais feliz uma sociedade em que saibamos controlar os nossos defeitos e perdoar os dos outros do que outra constituída por seres perfeitos, em constante beatitude.

Sobre isto, vem-me agora à memória um “videoclip” que estava a passar na TV do restaurante onde almocei hoje: “Jealous Guy”, do John Lennon. Se se recordarem, Lennon justifica o seu comportamento perante a amada invocando um defeito muito comezinho: “I’m just a jealous guy”. Daqui nasce a poesia: o que é sublime (o amor, o perdão) pode ser originado e justificado por um vício tão humano quanto o ciúme. Não teria um vinte avos da piada se fosse um guru qualquer a cantar “I did not hurt you and I did not make you cry. I’m just a perfect guy”.

Dito isto, amigos como dantes. E ao que vai quatro anos para o retiro: que encontres o que procuras e, se não, que voltes depressa.

9 comentários:

Cristina Rodo disse...

Achas mesmo que "o que vai quatro anos para o retiro" te vem aqui ler? Hum... duvido, quem decide isolar-se da sociedade durante uma eternidade de tempo como essa não me parece ter grande interesse pelas questões que levantas por aqui... LOL

Mas eu estou contigo Carlinhos! LOL

NunoF disse...

Primeiro lançam lagostas depois vão para retiros de "4 anos".

Enfim...

Unknown disse...

Eu tenho um amigo que "em criança","entre os sete e dez anos", "lia muito sobre astronomia, física, evolução do homem e assuntos similares".

Parabéns: Eras uma criança muito dotada.

Unknown disse...

Qual é a idade do capitão que:
1) É racionalista.
2) Leu muito em criança quando tinha 7 a 10 anos.
3) Passaram 25 anos.












































































... Óbvio: 44!

Unknown disse...

E agora a sério.

Para mim a questão é simples.

Viram-se para a espiritualidade:
1) Os que sofrem, têm fortes conflitos interiores, não se sentem bem na sua pele, não encontram o par certo, não encontram o trabalho certo, etc...
2) Os que têm uma forte sensibilidade ao sofrimento alheio.
3) Pelo que não sentem o mundo material justo nem feliz.


Continuam "racionalistas" ateus:
1) Os que estão na boa com a vida.
2) Não têm grande sensibilidade ao sofrimento nem ao desequilibrio alheio (ao ponto de olharem para seres que se sentem razoavelmente perdidos, e vê-los como encontrados).

Unknown disse...

Espiritual ou ateu.
Quem está certo?
Quem está errado?
São falsas questões.
Ambos estão certos face à percepção que têm do mundo.

CMata disse...

Caro Paulo, fiel leitor:

1) Quatro comentários seguidos era homenagem que este blogue ainda não tinha tido. Sequências de quatro, seja em que actividade fôr, vão-se tornando difíceis com o passar do tempo, por descanso que se tenha ou preparação que se faça. Por isso, obrigado.

2) Prestados os salamaleques, deixa-me dizer-te que és pouco faccioso, és.

3) Eu não escrevi em lado nenhum, por muitas voltas que dês ao texto, que entre os sete e os dez anos lia muito sobre astronomia. Escrevi que entre os sete e os dez anos andei na catequese e que o caso deles me pareceu fraco.

4) Escrevi também que, em criança, li sobre os assuntos que referes. Obviamente, não era o "Advanced topics in quantum physics". Eram livros de divulgação apropriados às minhas sucessivas idades (aos sete, aos dez e sobretudo aos doze a treze, em que li mesmo muito sobre essas coisas, porque me dava gozo). Por exemplo, o Atlas Universal da Verbo, com umas imagens de uma estrela a arrancar massa solar a outra, que me maravilhavam e que ainda agora me parece ver, uns livritos quadrados da Verbo, muito ilustrados, sobre coisas da natureza, a colecção Prisma quase toda, "energia nuclear para principiantes" da D.Quixote e, um pouco mais tarde, o "Cosmos" do Carl Sagan. Aproveito para agradecer a familiares e amigos, pais próximos ou primos afastados que me foram passando para as mãos, nas ocasiões festivas, tão motivante literatura, que me convenceu que, definitivamente, havia coisas interessantes à nossa volta para serem bisbilhotadas.

5) Era uma criança muito dotada? Por acaso até era, modéstia à parte. E tu também. Éramos todos uns gandas "nerds". Foi um dos factores que nos juntou.

6) Obrigado pelas aspas no racionalista. Ou de como transformar uma definição num rótulo semi-pejorativo. Olha que, para espiritual, conheces os truques todos.

7) Pelos vistos, tens mais sensibilidade do que eu para o sofrimento alheio. Se o dizes, só pode ser verdade.

8)Sobre quem está "certo" e quem está "errado": foi coisa de que não falei. Limitei-me a escalpelizar o que é que, na minha perspectiva e sobre estes assuntos em concreto, diferenciava a minha visão da de amigos que pensavam de outra forma.

9) Agora, os dois certos não devemos estar. Talvez possamos tirar teimas daqui a cem anos, nalguma nuvem ou, quem sabe, num aquário de cervejaria, a abanar as antenas enquanto esperamos pela panela.

Cristina Rodo disse...

http://youtube.com/watch?v=oXvV2ALV0bg

NunoF disse...

@paulo

"Do not speak - unless it improves on silence." - Provérbio Budista

"You can explore the universe, looking for somebody who is more deserving of your love and affection than you are yourself, and you will not find that person anywhere." - The Buddha - Sutta Nipata